Matéria Prima na de nos Iluminar (2020) em meio ao caos, nos apresenta uma música “velha” que dialoga perfeitamente com o atual e o possível
O sacerdócio mundano ao qual o rapper mineiro Matéria Prima devota todo o seu dom e o seu suor, o altar ao qual ele sacrifica e fortalece o seu corpo negro, é o do hip hop, mas especificamente ao boom bap. Há dois anos atrás o mano soltou o seu disco Bem Boom Bap (2018) que apresentava naquela altura 13 faixas com produção do beatmaker Dario Beats e as participações de DJ Novset e Zudizilla. É um daqueles discos que estão por aí, que flutuam entre as nuvens do virtual apenas esperando alguém atualizá-lo. Se você tiver a oportunidade – e essa é a hora – verá que o boombap produzido pelo MC de BH é alguém que transcende gêneros.
Hoje é comum se ouvir discussões bem a moda do tempo em que vivemos (falsos problemas), entre o que seria o estilo mais “atual” no rap nacional, o trap ou o boombap. Sem contar na redução brutal em definir o ritmo e a poesia a duas escolhas mortais que definiriam de saída o que é a “wave” ou o “zeitgeist” de uma época, é algo que somente a ignorância pode escolher.
Sempre que tratamos de arte, esse tipo de encapsulamento da expressão artística em gêneros, ao qual gostamos de fugir, pois entendemos que é algo no mínimo empobrecedor para não dizer estúpido. Dito isso, a arte do Matéria Prima é a de buscar a artesania em cada linha, em cada escolha de como compor seus versos, sem se render a moda, mas também sem deixar de estar atento ao que acontece. Suas vivências são as essências que esse mano transforma em arte, em contribuição sempre relevante para não apenas a cultura hip hop mas para a cultura negra brasileira.
Essa percepção é notória ao ouvirmos seus discos solo assim como sua participação do excelente Tetris, mas sobretudo quando nos deparamos com um trabalho como esse que agora ele nos apresenta. Pois, carregado de diversos signos extra musicais que apenas reforçam a mensagem, que fortalecem as linhas, a pessoa, para além de uma imagem pública de artista.
Se você não for playboy, não tiver um investidor por trás, se não tiver no hype, no mercado nacional do rap seus trabalhos precisam de boas doses de suor, sangue e lágrimas para vir à luz. Essa é uma constante tanto para a turma da velha guarda que “milita” no boom bap, quanto para os novatos, do ice, do lean, do kunk e os adoradores das Bih do Trap. Essa condição comum demonstra o quanto as ilusões e as condições precárias são comuns aos dois campos que pretendem definir o que seria o rap no século 21.
A precariedade, a luta por melhores condições é a tônica de uns e outros, e suas diferenças só podem ser definidas através daquela prática iniciática do hip hop. A disputa de quem é melhor, o capitalismo já captou isso faz tempo, e ao invés de alimentar a sublimação da agressividade em busca de uma arte superior, hip hop, trata de colocar os manos e as minas numa luta constante por espaço, tendo todos as mesmas dificuldades e no limite buscando o mesmo.
Hoje com três discos na conta, além do Bem Boom Bap (2018), tem o não menos excelente Dois Atos (2017) e a mixtape em parceria com DJ Lotek , Rascunhos de um Momento Conturbado (2019). São dois discos e uma mixtape que reúnem muito bem todas as qualidades líricas do MC mineiro, mostrando além da sua imensa qualidade lírica, seu dote de um canto muito único, como é possível perceber muito bem na primeira metade do Dois Atos. Uma audição mínima por esses trabalhos e vamos perceber o quanto o Matéria Prima faz rimas que duram no tempo, abordando aspectos da vida, percepções da sociedade, contando-nos episódios de sua vida ou mesmo retrabalhando a história do hip hop mundial e sua relação com ela.
Mas o principal disso tudo, é que percebemos sempre um artista em guerra constante, em um combate ativo consigo mesmo, como expressou de forma lapidar o poeta Leminski: Guerra dentro da gente. Essa luta ele trava com o tempo, ele trava consigo mesmo, mas também com as condições de produção, e sempre nos entrega o mel do melhor. Costumo sempre pensar nas condições de produção ao avaliar um trabalho, o importante sempre será o conteúdo e a forma, essa dupla sempre vem primeiro. Mas driblar com habilidade as dificuldades técnicas impostas pela ausência de condições plenas de produção – que custam muita grana – é um dado importante. Mas não é desculpa para avalizar trabalhos ruins, e Matéria Prima sabe muito bem disso.
Se passaram dois anos desde que Iluminar veio à luz como parte do disco Bem Boom Bap (2018) e agora você deve está se perguntando, mas por que lançar um videoclipe de uma música de álbum de dois anos atrás? Diríamos o mesmo que afirmamos acima, aqui é arte, não uma peça para mera diversão. Lançar agora pelo simples motivo de que faltou grana antes cara pálida.
Iluminar sempre chegará no tempo certo, pois não é música com data de validade. Não está presa à década de 90, não esteve presa em 2018 e ainda perdurará enquanto lhe houver suporte. A faixa ganhou um audiovisual que captura o MC caminhando pela cidade, mas o caminhar de poetas como esse só é perceptível se entendermos os passos que foram e os que estão sendo dados e aquilo que ele arrasta pelo caminho.
A letra de Iluminar é exatamente isso que o verbo enuncia, um conjunto de versos em cima de batidas que nos auxilia a entender a força do rap, da cultura hip-hop para enfrentarmos a vida. A direção de RodrigoMSvideo privilegia os planos mais próximos ao artista capturando os movimentos e as rimas que caminham em cima da excelente produção do Dario Beats. Tudo em uma estrutura básica, comum até, mas que é reforçada pela força da música, pelo conteúdo lírico que nos ajuda a lutar também diante de uma realidade que só possui normalidade assim, capturada em suas aparências cotidianas.
Já falei demais, nesse período de Quarentena o Matéria Prima tem iluminado meu dia a dia, esse clipe é mais uma contribuição que esse que consideramos o maior MC do hip hop mineiro, e um dos maiores do Brasil em atividade, nos oferta! Deixe-se Iluminar e tenha em mente que a lux da arte não cega, talvez seja o equivalente a luz de uma estrela que nos chega depois da sua morte a uma distância que você desconhece ou é capaz de mensurar!
-Matéria Prima na de nos Iluminar (2020) em meio ao caos…
Por Danilo Cruz