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Marcos Valle & Azymuth: a coroação do padrinho no Festival Zunido

Quem já teve a oportunidade de escutar as gravações que contém Marcos Valle & Azymuth trabalhando juntos, sabe o quão especial é presenciá-los no fone de ouvido.

Ao vivo então nem se fala. Um dos shows mais concorridos do Festival Zunido, o show do Marcos Valle com participação do trio mostrou um pouco da ligação inexorável entre entre eles, além de ter sido um encontro histórico, digno da noite de abertura de um festival.

Antes do Azymuth virar um grupo, aconteceu uma fase de desenvolvimento que foi bastante importante para a banda formada por Ivan Conti Mamão (bateria), Alex Malheiros (baixo) e José Roberto Bertrami (teclados). Esse periodo de incubação aconteceu justamente com o reverendo Marcos Valle e teve início em 1972.

Esse foi o ano da gravação de 2 discos primordiais para o desenvolvimento dessa linguagem que é tão comum a ambos, tanto ao Marcos Valle, quanto o Azymuth. Me refiro a essa mistura azeitada que está presente na gravação do LP “Som Ambiente” e na prensagem intitulada “Brazil By Music – Fly Cruzeiro“.

Essas gravações mostram como o Samba foi incorporado ao Jazz, sem se esquecer que ambos estavam olhando também para a ritmica brasileira, junto com a Bossa, Funk e a improvisação.

Essas gravações são cruciais e mostram o caminho sendo pavimentado. Em 1973 o Azymuth colabora novamente com Marcos e seu irmão Paulo Sérgio Valle num trabalho que se transformou na trilha sonora do documentário “O fabuloso Fittipaldi”, lançado no mesmo ano.

Vale lembrar que o Marcos Valle gravou a faixa “Azimuth” no “Mustang Côr de Sangue”, lançado em 1969, mas foi graças a versão desse disco que o grupo foi nomeado. Foi com a benção de Marcos e Paulo Sérgio que o groove decolou, Mamão pediu pra usar o nome e foi prontamento atendido pelo padrinho do Rhodes. Vale lembrar que outro disco icônico que também conta com o Azymuth ao lado do Marquinhos é o clássico “Previsão do Tempo”, lançado em 1973.

Essa trilogia é pouquíssimo mencionada, porém sua importância é inegável para o som de ambos os artistas que tocam juntos desde o início dos anos 70. Essa parceria de mais de 50 anos está vigente até hoje, mas os encontros são bem mais esporádicos – até em função da atribulada agenda de ambos – o que não inviabiliza encontros pra fazer um show no Blue Note Tóquio, por exemplo ou para abrir a programação do Festival Zunido 2023.

Crédito da foto – Equipe Festival Zunido

Num show cuidadosamente planejado e ensaiado, Marcos Valle abriu a programação do mais novo festival do calendário do SESC e, além de tocar com seu combo – formado por Dudu Viana (teclados/voz), Jessé Sadoc (trompete/percussão), Alberto Continentino (baixo) e o baterista Renato Massa – ainda contou com a luxuosa participação do Azymuth – para relembrar a química dos tempos áureos.

Foi com a comedoria do SESC Pompéia lotada – e com a presença ilustra de nomes como Emicida na plateia – que o público foi arrebatado pelo som em 3 momentos distintos. Primeiro com o quarteto do Marcos Valle, depois com o Azymuth e no fim do set com as duas bandas juntas no palco. 

Quando você vê o  Marcos Valle fazendo música parece até fácil, mas quem já tocou qualquer instrumento por mais de 2 horas sabe da complexidade e da dificuldade que é swingar tal qual o carioca. Sua banda de apoio é extremamente sólida em todas as posições e o entrosamento é muito orgânico. 

Como se não bastasse, Marcos selecionou um repertório que consegue dialogar com diversas gerações de fãs, sejam eles da época da trilha sonora do documentário do Fittipaldi, filhos dos anos 80 ou fãs dos anos 2000. Isso por si só já resume como o compositor e também arranjador conseguiu construir uma carreira tão longeva e prolífica.

O groove andava décadas como se o tempo fosse apenas um detalhe. Entre hits radiofônicos como “Estrelar” (do projeto “Marcos Valle”, lançado em 1983), uma versão improvisada de “A Paraíba Não é Chicago” (do “Vontade de Rever Você”, de 1981), o revival das pistas de “Olha Quem Tá Chegando” (do disco “Sempre”, lançado via Far Out Recordings em 2019), ou com “Azimuth”, o tema que batizou um dos maiores trios da música nacional, fica claro como Marcos Valle parece ter todas as respostas para fazer com que seu público não pare de dançar, independente da idade.

Junto com o Azymuth, o Marcos parece até que toca diferente. É até difícil imaginar o quão fácil deve ser pra ele se comunicar com o trio, com base nesses 50 anos de vivência. É possível sentir a pressão do groove e o swing que eles compartilham entre si é simplesmente único.

Quando os 2 combos tocaram juntos o espetáculo atingiu o patamar final de potência e o interessante é que durante todo o set – que superou a faixa das 2 horas – o som foi tocado sem precisar prejudicar a audição dos presentes. Marcos Valle e Azymuth além de swingarem muito, o fazem num nível de alturas bastante moderado e que favorece não só a dinâmica, mas também a história desse legado musical que eles levaram ao palco com tanto cuidado e esmero.

Com novos arranjos criados especialmente para esse show, foi muito legal ver que a casa estava lotada e ansiosa para presenciar essa noite realmente histórica. Em 2023 vale lembrar que Marcos Valle completará 80 anos de vida (sendo 66 deles de carreira). O Azymuth completa 50 anos de jornada em 2023 e essas marcas são grandes demais para serem ignoradas. Pra ficar ainda melhor, o Oganpazan conseguiu trocar uma ideia com o baterista Ivan Conti Mamão alguns dias antes da performance e a conversa completa você confere logo abaixo.

Entrevista com Ivan Conti Mamão do Azymuth:

1) Mamão, o Azymuth em disco começa com o Fabuloso Fittipaldi, né? Vocês gravam com Sérgio e o Marcos na trilha e aí o negócio começa a pegar fogo, de 73 pra frente. O que você pode falar da gravação desse disco?

Essa gravação foi muito importante. Na época eu era contratado da Odeon com carteira assinada e tudo. Eu era o segundo batera e depois virei o primeiro. A gente gravou a música “Azimuth” e ela serviu de tema pra novela “Véu de Noiva”, que ficou no ar entre 69 e 70.

Depois de um tempo, quando eu, Alex e Bertrami já estávamos tocando junto, ele convidou a gente pra gravar a trilha do documentário e novamente essa faixa (“Azimuth”) estava lá. O interessante é que na hora que a gente gravou a música,  o pessoal que estava no estúdio – entre técnicos e ajudantes – já falou: chegou o Azymuth.

Isso é interessante por que dá pra perceber como eles ficaram com a música na cabeça. A gente tinha ido pra lá gravar o restante das bases e eu lembro que fiquei surpreso com isso na época, pelo fato deles terem se lembrado. A gente chegou no Marcos depois e falamos: Pô, Marcos, dá esse nome pra gente. Ele disse que faria isso com o maior prazer e foi assim que ele virou o nosso padrinho.

E tem um lance que você conheceu o Bertrami tocando na banda da gravadora Equipe, não é?

Sim, eu conheci o Bertrami de fato no Canecão. Eu tocava num grupo de Rock que gravou muito a Jovem Guarda, chamava “The Angels” e depois virou “The Youngesters”. O Bertrami tocava com o Trio dele e o Alex tinha o grupo dele também. Nós nos conhecemos no Canecão, aí na saída, durante os intervalos de cada apresentação – que duravam mais ou menos 1 hora e meia – a gente ia num bar pra jogar pebolim e bater papo.

Num dado momento o Bertrami falou: escuta, vamos passar um final de semana lá em casa pra fazer um som? E foi assim que começou a nossa onda de tocar junto.

O que você pode falar sobre a experiência de vocês como músico de estúdio? Tem muita gravação de vocês pela Phonogram.

Exatamente, nós começamos a gravar muito e aí surgiu essa química e o pessoal adorava a gente. Nós começamos a gravar com vários artistas e eles se deram bem também, foi muito bom, tanto pra eles, quanto pra nós. A gente foi contratado e gravava para todos os artistas que estavam ali no cast.

Mas não era só na Phonogram né, a gente gravava bastante na CBS também. Nós ficamos bastante tempo ali gravando.

Esse lance dos seus créditos de gravação é muito interessante, já achei seu nome em diversos discos que não fazia ideia que você tinha tocado. Entrevistei o Dom Salvador e ele comentou que você que tocou bateria no disco dele que saiu em 1972. O Dom que arranjou aquele disco.

Sim, gravei mesmo, antes dele embarcar para os Estados Unidos. Foi um convite muito bacana, o produtor era o Élcio Milito, baterista e percussionista do Tamba Trio, um músico muito bom.

Tem um outro disco meio obscuro bem nessa onda swingada que você também tocou bateria na gravação que é o disco do Tony Bizarro.

Sim, exatamente. O Tony era um cara muito legal, foi precursor da Soul Music por aqui, foi especial gravar esse disco dele.

3)  Em 1972 o Azymuth grava 2 discos com o Marcos Valle. O “Som Ambiente” e o “Brazil By Music – Fly Cruzeiro”. Nessas gravações tem um lance muito sensível que é a linguagem. Acho que essas gravações mostram um pouco como o Samba foi incorporado ao Jazz, mas que vocês estavam também olhando pra ritmica brasileira, junto com a Bossa, Funk e a improvisação. Acho que essas gravações são muito especiais por isso, por mostraressa a linguagem florescer. O que você pode falar desses trabalhos?

Quando a gente começou a tocar na casa do Bertrami aos finais de semana, nós compartilhávamos também os discos que a gente estava ouvindo. Então tinha Milton Banana, Herbie Hancock, George Duke e cada um tinha o seu ídolo, vamos dizer assim. O George Duke acabou tocando com a gente quando fizemos o Playboy Jazz Festival, mas enfim, nós estávamos sempre trocando entre si com relação aos sons que cada integrante do trio ouvia.

Na minha opinião, acho que é muito importante para um músico entender o Samba, que é a nossa raiz e também o Jazz, principalmente quando falamos sobre improvisação. É uma escola ideal pra você ter uma base firme e acho que nós como banda conseguimos fazer esse mix muito bem. Era muito interessante por que os artistas chegavam pra trabalhar com a gente, davam uma ideia e nós sempre tínhamos uma carta na manga.

Vocês tinham recurso pra responder.

Exatamente e antigamente (dos anos 70 para os anos 80) você chegava pra fazer a gravação para os artistas e acontecia do arranjador chegar pra você e falar: Pô, Mamão, será que você consegue fazer aquela batida do fulano? Como eu, Zé e Alex estávamos sempre ouvindo de tudo, a gente já sabia o que fazer.

Teve uma gravação que fiz na Oden uma vez e o Wilson das Neves gravou uma caixa, chamaram outro cara pra fazer o bumbo e eu fiz o contratempo.

Que negócio de maluco

Era uma viagem, mas valeu a pena, viu? Com o tempo a gente conquistou o respeito de outros músicos consagrados também fora do Brasil. O Wayne Shorter – que infelizmente se foi agora – adorava a gente. O Dizzy Gillespie também.

4) É muito legal ver esse respeito Mamão. E já fazendo um link com a questão do mercado internacional, de 1975 pra frente o Azymuth se estabelece de maneira muito prolífica, com muitos discos via Milestone e a Far Out Recordings, mais recentemente. Como vocês conseguiram estabelecer esse canal com o mercado internacional tão bem por tanto tempo? Tem alguma relação com a ida de vocês pra Montreux em 1977? Nessa época era o André Midani que fazia essa ponte.

Eu creio que foi ali que tudo começou. Nós fomos o único grupo brasileiro que foi pra lá (Montreux). Quando nós estávamos no estúdio pra gravar o “Melô da Cuíca”, que foi trilha da novela “Pecado Capital” (1975) mostraram diversas bandas pra equipe do festival, a gente bateu um papo e ai oficializaram: “Vocês tem uma noite pra participar da programação”. 

O interessante é que nós fomos, viajamos e tocamos logo depois da banda do trompetista canadense Maynard Ferguson. O Azymuth foi um dos últimos grupos a se apresentar e o nosso som era totalmente diferente dos grupos que vieram antes. O pessoal gostou tanto da apresentação que a gente foi contratado pra ficar a semana inteira no festival. Foi daí pra frente que a gente foi pra Milestone e fizemos 10 discos lá. 

Foi uma experiência muito boa, a Milestone é uma gravadora importantíssima e só pelo fato de estar lá já nos permitiu conhecer muitas pessoas e muito lugares.

Com certeza, era um dos principais selos da época, a distribuição era gigante.

A gente gravou até com o Joe Pass.

Caramba, Mamão, quando que foi isso? 

Gravamos com ele no disco “Crazy Rhythm”. Lançamos esse disco em 1988.

Pô, o Joe Pass era magistral.

Gente boníssima e um músico da pesadíssima.

7) Mamão, um negócio que eu fico sempre impressionado é como o som do Azymuth ainda soa extremamente atual. E como ouvinte, reparando em nomes como Kamaal Williams, enfim, principalmente essa galera de Londres que gosta de Acid Jazz, é impossível ouvir o som deles e não lembrar do Azymuth.

Eu gravei com o Kamaal aqui no estúdio que tenho em casa. Esse intercâmbio acontece quase que automaticamente e se você reparar a linguagem é muito parecida.

Querendo ou não você está muito interessado em coisas que eles também estão.

Exatamente, isso favorece bastante essas colaborações e sempre surgem coisas novas, principalmente nessa ponte com o mercado externo.

8) Mamão, tem um ao vivo do azymuth que foi gravado no copacabana palace que eu acho um disco primoroso. É o único disco ao vivo que vocês gravaram mesmo?

É o único ao vivo mesmo. Aquela época foi muito estranha, por que um cara gravou, outro levou a ravação pra trabalhar, enfim, o projeto acabou ficando muito confuso, mas aconteceu e valeu a pena.

O disco tem uma sonoridade massa e acho que ele serve como um retrato muito bonito do som de vocês, numa fase chave que foi a década de 1970.

Nós fizemos “A Linha do Horizonte” pra novela “Cuca Legal” (1975), mas nessa época o instrumental era muito mais aceito, atualmente desconheço lugares que ainda consigam dar esse espaço que um dia a gente já teve. Lá fora na europa você tem canais e rádios que tocam Jazz. Não vejo isso acontecendo aqui na mesma proporção. 

Eu conversei com uma galera da europa e eles comentaram que lá não acontece tanto essa distinção de música instrumental e música que tem vocal. É engraçado por que eu já ouvi sons instrumentais com amigos que não tem esse costume e em dado momento eles sempre perguntam: mas e o vocal? Vai entrar que horas? Você tinha que ver a cara deles quando eu falava que não tinha voz!

Sim, é uma mentalidade completamente diferente.

9) Mamão, vocês gravaram mais recentemente pela Jazz Is Dead e o som da banda mudou totalmente nessa gravação. Achei o disco interessantíssimo. Como que foi a gravação com eles e essa troca? Acho que pra vocês deve ter sido um laboratório muito interessante.

Nossa, essa gravação foi muito interessante, eu gravei a bateria sem cabine, coloquei ela no meio da sala e a gente foi direto. Foi 1, 2, 3 e sai da frente, vamo embora.

O jeito que eles pensam a música – tanto o Adrian Younge, quanto o Ali Shaheed – é muito interessante, eles são ótimas pessoas. Foi uma experiência muito boa.

E abriu até uma janela de shows né, por que eles tem a produtora.

Exatamente, tem isso também. O estúdio que eles tem ali (Linear Labs), nossa senhora! Parece que vocês está num parque de diversão, eles tem tudo quanto é instrumento.

O Marcos Valle disse que eles tem um Rhodes muito bonito.

Ele gosta pouco de Rhodes né? 

Achei essa gravação muito foda por que mostra essa preocupação que vocês possuem com relação a manter o som sempre atual. 

Isso é importante demais, você precisa se atualizar. E eu vou lhe falar uma coisa: eu acho que os DJ’s empurraram o barco de muita gente de volta pra água. 

Sim, eles ajudam a fazer com que os sons voltem.

Direto algum DJ entra em contato comigo e fala: Mamão, você que gravou isso e eu digo: eu? Naquela época – nos anos 70 – não tinha crédito de gravação dos discos.

Pô, Mamão, isso é foda, nos discos que vocês fizeram com o Marcos Valle em 1972, por exemplo, vocês não estão creditos. E eu conheci muito da carreira de vocês por causa de um DJ, que foi o Nuts.

O Nuts é fantástico, é um DJ da pesada, dono de um acervo maravilhoso. Direto ele me apresenta coisa que eu gravei e não lembro mais. 

Isso que você falou faz todo o sentido, por que em termos de geração vocês não dialogam com muita gente, então precisa desses caras pra fazer essa ponte, seja por meio de um beat ou um sample, remix, enfim.

Exatamente. Agora nós estamos conversando entre nós pra ver o que lançar em comemoração aos 50 anos de Azymuth.

Esse ano vai ser bem movimentado né, vi que vocês em breve vão rodar a europa novamente.

Sim, vai ser muito legal, estamos estudando as ideias e devemos começar a gravar lá pra julho. Estamos em contato com um produtor de Londres. Ele quer que a gente grave por lá.

Dependendo da estrutura vale a pena.

Com certeza, eles tem bastante recurso. Além desse novo disco que estamos planejando tem um trabalho que o Bertrami participou antes de falecer também. Seria muito legal concluir isso e lançar em homenagem ao nosso grande companheiro.

Ainda mais nesse ano de comemoração.

Exatamente.

Pô, Mamão, muito obrigado, é sempre uma honra ver vocês ao vivo e ter essa chance de trocar ideia.

Obrigado você, meu irmão. Nos vemos no show do Marcos Valle.

Com certeza!

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