Em seu novo disco, Marcelo D2 rasura as fronteiras entre o samba e o rap, como resultado de uma caminhada começada 25 anos atrás!
“Não sei se sirvo o rap ou o rap quem me serve” Marcelo D2
Nono disco de estúdio do MC e sambista Marcelo D2, IBORU chegou ontem – 14/06 às plataformas digitais. O disco que conta com 16 faixas e participações de nomes como Alcione, Mumuzinho, Metá Metá, Rodrigo Campos entre outros, já se configura como um dos trabalhos mais interessantes lançados no rap e no samba nacionais este ano. O já senhor Marcelo D2, aos 56 anos, não oferece ao público nenhum sinal de cansaço e muito menos de estagnação criativa.
Ouvir IBORU é reconstituir um trajeto que este ano completa 25 anos e que vem construindo uma história própria dentro do rap e do samba nacional. Nacionalmente conhecido a partir da metade dos anos 90 do século passado com o Planet Hemp, Marcelo D2 em sua carreira solo inaugurou um caminho estético até então pouco explorado ao unir suas rimas aos samples de samba.
E talvez seja através da noção de sample, a pista fundamental através da qual possamos não apenas entender essa sua trajetória como também o próprio desenvolvimento de sua obra. Com certeza, não são apenas as rimas e batidas que definem o Rap, afinal historicamente essa dupla já existia nas expressões afro diaspóricas, seja no Repente ou no Partido Alto brasileiros, ou em artistas como Pigmeat Markham e Gil Scott Heron, ou no dancehall jamaicano.
O sample por sua vez remete-nos às experimentações nos anos 40 do século XX em uma operação de ruptura com as formas tradicionais de produção estética ao produzir música através de ruídos, de sons urbanos e ou retirados de “instrumentos” não convencionais como sons de trem, martelos, xícaras quebrando etc. Procedimento Inicialmente criado por Pierre Schaeffer através da escola de música de vanguarda que ficou conhecida como música concreta, foi logo após nos anos 60 absorvida por grupos de música pop como os Beatles na Inglaterra e os Mutantes no Brasil, por exemplo.
A cultura Hip-Hop ao transformar o toca-discos e transformá-lo em um objeto musical e não mais apenas em um reprodutor sonoro, ao juntar as rimas e batidas com o sample e com a produção de ruídos – scratch – transformados em signos musicais, uniu esses elementos oriundos de diversas tradições e criou o modo próprio de criação estética do rap. Mas o que isso tem haver com com o novo disco do Marcelo D2?
“Para fazer o futuro precisamos resgatar o passado, então vamos lá, a hora é essa”
Já na faixa de abertura de IBORU, contando com a produção de Barba Negra, a inserção de samples em um “beat” drumless mais “brasileiramente” produzido dos últimos tempos, as rimas de D2 nos dão pistas interessantes sobre a construção desse novo disco. Se por um lado ele se insere em sua própria tradição de rap com samba, ao mesmo tempo é uma espécie de continuação de Assim tocam OS MEUS TAMBORES (2020) por outros meios.
Das ruas do Brooklyn até os subúrbios cariocas passados 50 anos de cultura Hip-Hop, Marcelo D2 colhe as sementes plantadas e que ele também ajudou a regar. Como bom jardineiro, como artista inquieto, o seu novo trabalho é reflexo não apenas de uma inventividade estética, mas também de um novo momento espiritual, como ele avisa na faixa de abertura: “Mãe, você pode ir que seu filho cuida da casa”. Em entrevistas recentes em podcasts, o artista revelou a sua aproximação com o culto IFÁ, após a partida da sua mãe e essa dimensão que já estava muito presente em seu disco anterior, ganha reforço e se expande em IBORU.
Como no disco passado, Marcelo D2 reúne um grande time, com a maior parte das produções assinadas pelo trio formado por Kiko Dinucci, do Nave e Mario Caldato, além do já citado Barba Negra, de uma produça do próprio D2 e duas onde o Fejuca também assina. Essas escolhas fazem com que haja uma inversão no procedimento estético de criação do que o senhor Marcelo Maldonado Gomes Peixoto tinha feito até aqui.
IBORU não sampleia o samba sob batidas de rap, mas sampleia as formas de produção do rap para ritmos do samba compostos através de programações e instrumentos orgânicos. Com samples e violões se valendo os graves tão em voga hoje na cultura pop, frutos das máquinas de produção (Objetos Musicais) como o 808 por exemplo. Inverte-se aqui a lógica de criação presente na trinca inicial de discos solo do Marcelo D2 composta por “Eu Tiro é Onda (1998)”, “A Procura da Batida Perfeita (2003)” e “Meu Samba é Assim (2006)”.
Há músicas de um hibridismo muito bonito, onde a rasura entre o samba e o rap é levado a um ponto muito interessante. Faixas como “Saravá”, “Tambores de Aço”, “Duras Penas”, onde o drumless, o trap, e as programações estão mais abertamente voltadas ao rap. De certo modo, não seria exagero dizer que neste último trabalho, Marcelo D2 rompeu com o binarismo lógico Aristotélico, MC ou sambista? Rap com samba? Aqui o artista se apresenta como MC sambista, rap e samba, juntos. Haja vista, e é bom lembrar, que em 2010 o artista lançou um disco inteiro cantando em homenagem a Bezerra da Silva clássicos do seu repertório.
Essa veia de sambista fica muito nítida em sua qualidade nas faixas “Povo de Fé”, “Até Clarear”, “Fonte que Eu Bebo”, “Só Quando Meu Samba Morrer”. Ao longo dessas músicas Marcelo versa bonito sobre a ancestralidade, sobre o axé que move o povo negro de terreiro no Brasil. Em “Povo de Fé” a baiana de São Francisco do Conde, Nega Duda para dividir os vocais e que evoca a grande Clementina de Jesus no timbre vocal.
Reminiscências na chave de “Eu Tive Um Sonho” (Presente no seu primeiro disco solo), “Até Clarear” ao invés de nos remeter a um céu cristão onde o hip-hop era-nos contado pelo Skunk, o sonho aqui vem do Orum e nos coloca na imanência das ruas da Zona norte carioca e os seus pagodes, grandes nomes do samba e proteção dos Orixás. Na composição da dupla Fred Camacho e Carlos Caetano: “Fonte Que eu Bebo” e em “Só quando Meu Samba Morrer” parceria de D2 com Marcio Alexandre canta o que tem buscado e tomado como fonte de alegria e paz e exalta os grandes arquitetos do samba.
Um dos pontos altos do disco a música “Kalundu” que traz o grande mestre Mateus Aleluia, apresenta uma construção baseada em programação, percussão e o violão potente do Kiko Dinucci, além das cordas de Maycon Ananias. O canto ancestral de seu Mateus Aleluia se encontra com as rimas e o flow do Marcelo D2, uma das mais bonitas e instigantes composições do disco.
O bom humor se faz presente nos três “tenores”: Zeca Pagodinho, Xande de Pilares e Marcelo D2 com a faixa “Bundalêlê”. Um outro ponto de destaque é a parceria do Marcelo D2 com o compositor, professor, escritor e pesquisador das macumbarias das encruzas, Luiz Antonio Simas. A composição da dupla “Para Curar a Dor do Mundo” encerra o disco após os pouco mais de 48 minutos, onde sob o clarão de Zambiapungo – o deus supremo na tradição do candomblé de origem Banto – D2 recita suas multiplicidades, os seus ancestrais diretos e os seus descendentes.
Com IBORU, que na língua yoruba significaria em tradução livre: “Que sejam ouvidas as nossas súplicas”, a obra de Marcelo D2 não cessa de caminhar em uma linha evolutiva própria. De modo reverente e humilde, o artista vem desde 98 abrindo um veio extremamente criativo e livre dentro da sua carreira solo, mas que não encontrou seguidores, para além de raps com samba aqui e ali.
O artista carioca ao contrário dos pseudo gênios do rap nacional que não param de surgir todos os dias, vem desenvolvendo uma obra onde a singularidade das expressões musicais, a busca por novas rítmicas e nos Ngomas mais diversos, e agora mais do que nunca, com novas líricas, amplia-se a olhos vistos. O soundsystem jamaicano – pai do Rap –
que impulsionou o grave que atualmente domina o pop mundial, foi trazido às rodas de samba carioca, junto a toques de rima e flows do rap, sampleando de dentro pra fora o nosso samba, expressão maior e base da música nacional.
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Por Danilo Cruz