Os tambores de Marcelo D2 são máquinas de matar fascistas!

Os tambores de Marcelo D2 são máquinas de matar fascistas! O artista reuniu uma gama imensa de aliados para produzir um disco de hip-hop Banto 

Discos como Assim Tocam Meus Tambores (2020) do mestre carioca Marcelo D2 muitas vezes podem parecer apenas mais um disco, gravado por um medalhão da nossa música. Os holofotes merecidamente conquistados pelo artista, ao longo de uma longa, marcante e prolífica carreira, por vezes cegam público e a própria critica. Esse “excesso de luz” levam a muitos a deixar de lado aspectos fundamentais da obra, que terminam passando despercebidos por conta da perspectiva adotada.

Às primeiras orelhadas, o disco me conquistou porém me pareceu menos bem resolvido musical e conceitualmente do que seu antecessor Amar é para os Fortes (2018). Impressão que foi sendo fortemente apagada na medida em que as audições se sucederam, e em que alguns aspectos formativos do disco foram sendo observados dentro de uma perspectiva político-histórica. Esse ponto de vista que adotei me parece, tem muito haver com o ponto em que a vida artística, política e familiar do nosso querido MC alcançou.

“Batuque na cozinha Sinhá não quer!” Martinho da Vila 

No que nos consta, Marcelo D2 nunca capitulou nada, se mantendo ao longo de sua carreira em uma trajetória musical em expansão constante, e se fazendo desde de sempre numa espécie de piloto de testes de nossa democracia. Um caminho que o tem levado desde o começo a ser um excelente arqueólogo da nossa música e um cartógrafo a mapear possibilidades para o rap nacional. E com isso, a pilotar muito bem o simulador de regime democrático em que vivemos, com seus aspectos racistas e desde sempre de tendências fascistas. Incialmente com o Rap Rock’n Roll Psicodelia Hardcore Ragga, incorporando o Samba, e produzindo um amalgama estético que terminou sendo sua assinatura musical.

Do Planet Hemp chegando agora em seu oitavo disco solo de carreira, uma das maiores forças de sua arte é bater de frente com o fascismo. Sim, incialmente questionando a lei anti-drogas através da tão propalado hoje direito de expressão , do proibicionismo que sabemos hoje melhor do que ontem, feito para matar pobre e preto. Depois rompendo uma tentativa de totalizar a cultura hip-hop do sample no Brasil em heranças hegemonicamente americanas do norte e caminhando inovadoramente para a tradição do Samba. E por fim, se aproximando da juventude e com ela produzindo novas direções para sua arte e maior capilarização com os mais novos. Tudo isso sem perder de vista vários artistas que não foram absorvidos pela tradição.

Em seu novo disco, reúne todos esses aspectos de modo a produzir um Quilombo Virtual, em meio a pandemia e às tragedias produzidas aos borbotôes em meio ao governo fascista miliciano. Fazendo no Twitch, o mesmo que Tia Ciatá fez no começo do século ou o que foi gestado via Cacique de Ramos, um quilombo virtual foi plasmado. Reunindo numa espécie de clube da esquina virtual, o espirito das ruas tão caro ao hip hop e hoje por muitos apenas simulado. Como bem escreveu Jeff Ferreira no portal Submundo do Som, a respeito do disco, Marcelo D2 é rua até isolado em casa!

Reunindo uma imensa trupe, uniu artistas diversos e de nichos diferentes, num processo criativo que foi transmitido ao vivo, e que encurtou distâncias. Servindo como local de fortalecimento coletivo e de acolhimento, em um momento de flagelos inauditos em nosso país. O resultado é um disco que reúne tantas direções, talentos e tantas expressões diferentes mas que mesmo assim, possui uma direção clara e uma coesão estética.

O disco abre os trabalhos com um bonito acolhimento, leitura crítica e humana do que estamos vivendo, no isolamento e uma convocação ao batuque na cozinha. Bem Vindo Meus Cria (prod. DJ Nuts), fala de algo que vai ser desenvolvido de modo muito potente ao logo do disco, raízes. Como veremos, a tradição congo angolana Banto, serve de caminho e herança norteadora principal a qual tantas outras se seguirão sendo sampleadas para produzir o toque fundamental de Assim Tocam os Meus Tambores (2020)    

Se apoiando em Ngomas (tambores), o MC Marcelo D2 produz um potente disco de rap, através de referências da cultura primeiro povo trazido ao Brasil para serem escravizados, sem com isso propor nenhuma regressão. Antes o que o artista molda de modo muito bonito são as Influências que  vividas na Zona norte do Rio de Janeiro e que foi belamente sintetizada como uma máquina de matar fascista. Ao botar os Ngomas para percurtir através do sampleamento de parte da cultura dos Bantos, e com a participação de vários aliados e crias, Marcelo D2 produz a sua própria máquina de matar fascistas, e nos oferta. 

 

“This Machine Kills Fascists!” Woody Guthrie

Já na faixa “Rompeu o Couro” com produção do grande Nave, que incorpora tambores ao beat, o refrão cantado de modo muito bonito e intenso já faz referência ao Caxambu, dança de origem Banto. A faixa reúne as divas Jussara Marçal e Anelis Assumpção e os jovens e bem sucedidos rappers BK e Baco Exu do Blues. Como no resto do disco ficará claro, são muitos os convidados, mas a cozinha é do Marcelo D2.

Em um beat classudo até não poder mais, da lavra do Kamau, dois dos maiores MC’s da história desse país: Rodrigo Ogi e Marcelo D2, fazem o um dueto do mais alto nível, com o refrão sendo executado com participação elegante da Jussara Marçal. A faixa em louvor da erva sagrada começa com um sample retirado do filme do Jom Tob Azulay: Doces Bárbaros (1975) que registrou a prisão de Gilberto Gil durante a ditadura militar por posse de maconha e o levou a julgamento. Nossos fascistas não apagarão a história.

Procedimento comum a cultura hip-hop e talvez definidora de sua riqueza musical, é também desde sempre elemento de educação do público que nesse processo é levado a descobrir novos artistas. Aqui o sample serve também de comentário político e na sequência resgata uma das grandes cantoras desse país que não teve o seu trabalho devidamente reconhecido, como antes o próprio Marcelo D2 tinha feito com a Claúdia.

Em tempos de fakenews sendo o veículo de comunicação oficial do atual fascismo federal, e produzindo um “duplipensar” em boa parte da população incapaz de reagir, a verdade não rima. Mas sempre irá se impor a medicridade, e a linda voz de Fátima Guedes é resgatada em outra produção excelente do Nave, sob a qual D2 desfia uma série de constatações sobre a atual situação do nosso país.     

O disco segue forte e amplo em suas perpectivas, na faixa que conta com a participação do baiano Russo Passapusso e do Helio Bentes, “MalungoForte” (prod. Nave) em referência ao contemporâneo Chico Science & Nação Zumbi, o maracatu é também trazido a baila, como parte do desenvolvimento da tradição Banto no Brasil. Cultura essa – o maracatu – que segue sendo hoje perseguido pela emergência de um fascismo neopentencostal (base de apoio do fascismo miliciano federal) como bem mostrado no filme Azougue Nazaré (2019) do diretor Tiago Melo.

A leitura feita pelo Criolo de um Mito da criação de origem Banto, recolhido pelo historiador Luis Antônio Simas na faixa “Tambor, O Senhor da Alegria”, nos mostra como a rica tradição Banto está presente em nós. Da mesma forma, que essa alegria do percurtir o Ngoma – oposta ao Viva La Muerte dos fascistas – é também uma arma, Fela Kuti nos dizia de modo extremamente groovado: A música é a arma”.

“Os nossos inimigos, eles pintavam quadros de Romero Brito” Vandal 

Estamos ainda no meio do disco, e graciosamente o mesmo não dá nenhum sinal de cansaço pelo contrário, segue ritmando poesias variadamente e em “Deus de Outro Lugar” é o Tropkillaz o responsável pelo beat. Marcelo D2 segue ao longo de todo o disco apresentando uma entrega incrível fruto de uma vida e de obra que envenenou-se com a busca por cultura e arte de modo a matar quaisquer “germes” fascistas, que porventura queiram florescer. Com a participação do Rogê, ele faz mais uma bela faixa onde o hip-hop é exaltado como cultura de resistência, de pesquisa e de transformação, algo que o Marcelo Maldonado Peixoto encarnou com maestria.

O produtor Nave assina a  maioria das faixas, e que trabalho bonito faz esse artista, em “Sementes” ele esculhacha – mais uma vez – produzindo um beat com pitadas groovantes do Joãozinho Paraíba, coro d’Os Crias e o baixo do Kassin e com uma guitarra invocada, que não consegui identificar. O Marcelo D2 segue nesse disco anti-fascista de hip-hop Banto regando um jardim onde é o amor uma potência capaz de produzir um novo amanhã.

E nesse pique entra em cena o Dr. Drumah, que produz um beat com uma aclimatação aconchegante, para dar o sentido musical de É Manhã (Vem) com linhas impossíveis do Don L e o canto da Luiza Machado. A confiança necessária para o amanhã, uma continuação perfeita da faixa anterior na exaltação da nossa crença de que o sol voltará a nascer no dia seguinte, mesmo que nada nos indique isso, além das boas experiências anteriores. O bumbo e o clap produzidos pelo Dr. Drumah nos impulsionam a essa confiança ritmando nossos corações enquanto as poesias e cantos da faixa alimentam nosso pensamento.

Em “Pela Sombra (DJ Nuts)” temos o que poderia ser visto como o fechamento de uma trilogia de faixas: “Sementes”, “É Manhã (Vem)”, “Pela Sombra”. Aqui com a partipação “sambista” do Jorge Peixe, e com a batera do mestre Ivan Conti Mamão, nos dando avisos importantes para seguir no caminho desse amanhã prenunciado em ritmo e poesia, em meio aos desafios antigos e novos.

“Amar é para os fortes!” Marcelo D2

Já “Magrela87 ” penúltima faixa do disco é uma ode ao amor do Marcelo D2, suave e contundente como a vivência de uma amor harmozidado e seguro imprime em nossa vida, mesmo com todos os desafios. Inclusive uma tábua de salvação e de afirmação nesse período de isolamento social, em que tanto precisamos de afeto e onde ficamos sabendo do aumento de feminicídio e de agressão às mulheres durante a desadministração do governo da “fraquejada”.

O disco fecha com “Pelo Que Acredito” uma exaltação quase ou mesmo como um bragadoccio do Marcelo e do Stephan Peixoto (Sain), sobre si mesmos e seus desejos, contando com a participação do Djonga. Ainda hoje Marcelo D2 segue evoluindo com seu filho, segue batendo de frente com o sistema, seja no twitter ou na vida. Assim Tocam Meus Tambores (2020) é um disco importante pela riqueza coletiva, pela forma nova através da qual que foi concebido, e pelas raízes que traz sampleadas e projetadas para o futuro.

Marcelo D2 não se cerca da juventude para permanecer relevante, antes ele é relevante por se cercar da juventude e ainda assim permanecer mais fundamental do que as últimas novidades. É um jovem senhor, um griot contando e levando a frente a luta antifascista/antiracista em nosso país, com muito som e muita fúria, com a alegria dos seus tambores (ngomas) enquanto máquina de matar fascistas.

Um artista da cultura hip-hop com uma obra extensa e que no alto de uma carreira consolidada segue procurando, criando, aliando-se ao que de melhor existe em nossa música. Dando visibilidade a artistas que precisam ser melhor conhecidos pela juventude e que aqui produz um album de aquilombamento Banto. Mas um trabalho memorável na eterna busca, no seu próprio caminho rumo a batida perfeita!    

-Os tambores de Marcelo D2 são máquinas de matar fascistas!

Por Danilo Cruz 

Consultoria por Raphael Garcez 

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