Lançado em 1973, Artaud de Luis Alberto Spinetta é um dos clássicos do rock argentino, uma obra prima do rock mundial!
Este ano uma das obras mais importantes do rock argentino e mundial, completa 50 anos do seu lançamento. E já desde a capa de Artaud podemos perceber que estamos diante de um disco nada convencional. Obra do designer Juan Orestes Gatti, Luis Alberto Spinetta resolveu quebrar toda a quadratura industrial que embalava os produtos musicais à época.
De certo modo, ao se deparar com essa capa ou mesmo apenas com o conteúdo musical do disco lançado em 1973, você ouvinte estará diante de um desafio que é o de conhecer uma obra que não possui contornos angulares muito definidos, senão pela força da criação.
Em toda sua carreira Luis Alberto Spinetta sempre buscou liberdade criativa, agenciando esse impulso dentro de linguagens musicais e poéticas diversas. Blues, folk, rock de garagem, prog e jazz são vertentes presentes na primeira década de sua obra, que vai de 1968 até 1978. Um compositor preocupado com diversas questões suscitadas pela sua curiosidade intelectual e pelos problemas existenciais que se lhe colocaram.
Os agenciamentos variaram deste modo, de acordo com as bandas em que esteve presente, assim como em momentos da sua existência pessoal e da história coletiva do seu país. Artaud, seu sexto disco de carreira, configura-se importante por ser expressão de uma dessas viradas nas concepções artísticas e consequentemente no aprofundamento de sua visão existencial e poético-musical. Situando-se como uma obra fundamental desse grande artista, o disco é também considerado o maior na história do rock argentino.
A intensidade, a variação das linguagens tanto poética quanto musicais, encanta pela suavidade e pelo humor, assim como pela força e a capacidade de domínio completo em sua execução e no seu canto. Muitos atribuem o disco a sua banda Pescado Rabioso, porém somente porque ele foi o último de seu contrato com a gravadora. Spinetta na verdade recrutou dois de seus chapas da primeira banda Almendra, o baixista Emilio Del Guercio e Rodolfo Garcia nas percussões e vozes, além do seu irmão Carlos Gustavo Spinetta na bateria, gravando na realidade um álbum solo.
Vivendo em plena ditadura argentina, Luis Alberto Spinetta esteve sempre em movimento artístico, montando bandas e projetos ao longo de sua vida. Para o leitor, ouvinte de primeira viagem que o descobrir através deste disco, resta voltar para o Almendra, sua primeira banda de relevo e dona de discos clássicos, mas também em resgatar os dois primeiros discos do Pescado Rabioso.
Após o fim do Pescado Rabioso, Spinetta ainda iria desenvolver diversos projetos, como as bandas Invisible, Spinetta Jade e Spinetta y Los Socios del Desierto. Além é claro, de dezenas de discos solo. Enfim, neste cinquentenário desse clássico absoluto do rock mundial, o leitor e amante dos bons sons terá de presente toda a obra de Luis Alberto Spinetta, um dos nomes mais prolíficos, talvez o mais, de toda a história do rock latino americano.
Aqui com Artaud, temos uma obra de robustez inventiva em termos poéticos e musicais pouco vistos, pois Luis Alberto Spinetta dialoga de modo central com a vanguarda europeia em termos de literatura e ao mesmo tempo com o que de melhor se fazia no rock mundial. A inventividade das imagens poéticas, as construções rítmicas produz um diálogo interno da obra com o niilismo presente na loucura produtiva de Antonin Artaud, com o surrealismo e com o pintor Vincent Van Gogh.
Artaud abre os trabalhos com uma doce balada, Todas Las Hojas Son Del Viento, uma música em franca pegada folk, foi composta para sua ex-mulher que nesta altura estava grávida de outro homem. Assemelha-se a uma bela carta poética com uma série de prescrições éticas de como encarar e criar essa nova vida. E dentro do diálogo interno com a obra de Antonin Artaud é uma faixa de pura afirmação da vida como movimento em sua lírica.
Cementerio Blues, como o título já evidencia, é um blues e pode ser encarado por sua verve surrealista, ou como uma crítica à situação política argentina, naquela altura vivendo uma ditadura militar. Poucas estrofes e muito senso de humor (quem disse que o humor não é sério), a guitarra que já aparecia no solo final da primeira música do disco, aqui toma a frente com técnica superior e muito sentimento, digno de um bluesman de raiz.
A capacidade de Spinetta em criar melodias de rara beleza, fica clara nas duas músicas seguintes. A faixa Por se constrói a partir de palavras desconexas que recebem seu sentido no canto e no violão, um jogo entre a linguagem e a música acertando-se na melodia. E que pode aqui ser ligada a noção escrita automatizada do surrealismo.
Supercheria é a quarta faixa do álbum e nos aparece primeiro como uma baladinha, onde a palavra supersticion é repetida sobre uma cama calma de guitarra, baixo e bateria, acompanhado de um laralala, até que Spinetta ataca com um riff pesado, mudando o andamento para um hard-blues. A letra critica a falta de vitalidade diante da vida, temática cara ao poeta e pensador que inspira o disco: Antonin Artaud. Poeta francês vinculado ao surrealismo no começo do século XX, fica claro como Artaud era naquela altura uma grande influência poética para Spinetta.
Sim, outra influência nas leituras de Spinetta, era o filosofo alemão Nietzsche, que dizia ser necessário pensar a golpes de martelo, de forma a destruir todos os ídolos que tendem a povoar e controlar nossas consciências. A sede verdadeira está em buscar tornar-se aquilo que se é: ¡Ah! Mira el fuego. Las luces que saltan a lo lejos, no esperan que vayas a apagarlas, jamás. A canção termina com sons de Mar, e pessoas conversando, através do procedimento de colagem, artifício este que a música pop herdou das vanguardas da música clássica e que durante esse disco Spinetta usa com maestria. Dando-nos quase que visões contrastantes ou representativas do que está sendo tratado nas canções.
Cantata de Puentes Amarillos é um verdadeiro épico, com uma duração destoante de todo disco em seus mais de nove minutos. Considerada por muitos a melhor música do registro, ela é executada quase toda pelo forte violão e voz de Spinetta que segue num crescendo até ganhar riffs mais firmes no violão e acompanhamento de percussão. Preparando a entrada da guitarra, dobrando as frases do violão e solando no fim da música.
Um aspecto muito interessante das preocupações de Spinetta plasmadas em Artaud é a noção de movimento da vida, algo que ele levará consigo pelo resto de sua carreira, sempre se reinventando. E também nesta faixa em especial há uma citação a Van Gogh e o tema dos “cipreses”, muito influenciado pela leituras das cartas do pintor ao seu irmão.
Pode-se dizer que Bajan, é a canção mais descontraída do disco, apesar da seriedade da poesia, a guitarra tem um timbre mais leve, a cozinha produz um swing até então inexistente no disco. O baixo propõe linhas, enquanto a bateria segura o ritmo e aí o lado de improvisador de Spinetta aflora com todo vigor, a canção parece antecipar a última música do disco.
Os contrapontos temáticos estão presentes em todo o desenrolar da obra e a canção seguinte: A Starosta. El Idiota é o contrário de Bajan, com uma pegada melancólica em seu piano profundo, soturno e caminhando até outra inserção de sons numa colagem, desta vez reunindo trechos de Beatles cantando She Loves You e o choro de um homem. Mais uma excelente amostra da força da música deste argentino, e sua capacidade de experimentar novos caminhos dentro do formato canção.
Fechando o disco temos a deliciosa Las Habladurias Del Mundo. Baseada em fatos reais a música é um petardo de crítica e ritmo amalgamados, uma daquelas coisas que se ouvem uma vez e nunca mais esquecemos. Juras de amor, mais de um amor corporal, comunhão de almas, unidade. Embalados num Latin Rock de primeira, a moda de um Santana.
Spinetta em entrevista diz que o mote da canção veio a partir das fofocas que circulavam à época sobre ele. Dizia-se que o cantor andava com garotas por Buenos Aires, e de modo genial ele utiliza esse acontecimento para criar uma das mais lindas canções de amor para sua então atual esposa, afinal: “as fofocas do mundo não podem nos atrapalhar”.
Podemos perceber claramente que Luis Alberto Spinetta sempre foi um artista voltado à uma criatividade constestatória. Um buscador de outros pensamentos que pudessem ser expressos através de sua arte. A expressão artística capaz de combater as outras produções de subjetividades pret-a-porter, aos quais os poderes (igreja, Estado, mídias) tentam nos empurrar.
As fofocas são muitas e funcionam de modos distintos. Nomear como Artaud um disco de rock, significa alguma coisa além da mera pedância acadêmica, afasta-se do senso comum e propõe pensarmos em outras possibilidades para o rock como música dura. La Suicidada Por La Sociedad, por exemplo, tem o texto escrito pelo poeta-guitarrista, em formato de manifesto. Escrito que é totalmente inspirado na leitura do clássico Van Gogh – o Suicidado da Sociedade do Antonin Artaud.
Escutar Artaud 50 anos depois nos ensina que precisamos estar ao lado da arte como produtora de afetos diferentes do que nos é ofertado pelo mercado. Pensar e ter a coragem da experimentação como a sua música que nunca perdoou a mediocridade, que não se rendeu aos ídolos fáceis ou a quaisquer ídolos, a nenhum tipo de formatação industrial. Pois estes subterfúgios são como fórmulas de remédio que não produzem saúde, mas viciam o organismo e nos sedam a consciência, matando possíveis visões renovadas e criadoras de outra sociedade, de amores e amizades, outro corpo, sem julgamentos, para acabar de vez com o juízo de Deus.
-Artaud do argentino Luis Alberto Spinetta completa 50 anos de lançado, um clássico!
Por Danilo Cruz
Luis Alberto Spinetta – Guitarra, Piano e Voz
Carlos Gustavo Spinetta – Bateria
Rodolfo Garcia – Percussão e Voz
Emilio Del Guercio – Baixo