LEALL Esculpido a Machado (2021) na descêndencia hip-hop

Primeiro disco do MC carioca LEALL, Esculpido a Machado (2021, demonstra o quanto a cultura hip-hop é a base da dinâmica do novo

LEALL

O ruído de comunicação e a ausência de reflexão tem obviamente contaminado tudo, e com o rap não seria diferente. É comum ver opiniões muito mal fundadas e falsos problemas levantados/vomitados pelas redes sociais. E nesse contexto, a rapidez com que bobagens como trap não é rap, grime não é rap, drill não é rap, se espalham ou se tornam pautas, é assustadora. Óbvio né gênio, os nomes distintos implicam coisas diferentes, porém essa diferença possui um suporte real em todas as favelas do país, e o nome desse suporte é hip-hop.

Nesse momento, percebemos que a produção de conhecimento é fundamental para a cultura hip-hop, como o seu quinto elemento capaz de situar as coisas de modo escuro.. No Brasil, a “recente” chegada de subgêneros como o trap, o grime e o drill tiveram acolhida e se desenvolveram no seio da cultura hip-hop. Isso não significa que todos que produzem dentro desses subgêneros de ordem rítmica, com origem, influências sonoras e características poéticas e musicais sejam parte do hip-hop, muitos são apenas rimadores mesmo. Sobre esse assunto o LEALL nos diz:

LEALL“Eu acredito que todos esses estilos que você citou estão muito interligados uns aos outros, todos são feitos por pessoas pretas em diferentes lugares do mundo. Talvez seja algo que corre no nosso sangue, algo que possa vir das nossas raízes africanas.” LEALL

Os que se vinculam à cultura hip-hop são artistas que independente do beat sob o qual aplicam suas rimas, possuem uma visão crítica da realidade e conhecem ou buscam a história da cultura! Transformando assim suas produções em armas de diversão e elevação do hip-hop nacional. Ao mesmo tempo, em que consciente ou inconscientemente dialogam e enfrentam os problemas dentro de uma tradição.   “Um por amor, dois pelo dinheiro, três pela África, quatro pros parceiros”, a lei é clara!

Com o seu primeiro disco “Esculpido a Machado”, o MC carioca LEALL nos parece produzir um disco que apesar de apresentar sonoridades distintas, se enquadra perfeitamente a cultura hip hop. Sua estreia de algum modo demonstra na prática tudo que dissemos acima e vai além. Pois LEALL, incorpora influência da música popular brasileira, misturando com Funk Proibidão, grime, drill e porque não? boombap! No final das contas, o que temos é um disco de RAP sim, pois todos esses elementos estão sampleados a favor da cultura hip-hop.  

“Genesis que se encontram e continuam!”

Assim como no clássico dos Racionais Mc’s: Sobrevivendo no Inferno (1997), o LEALL utiliza o mesmo expediente para começar o seu álbum 24 anos depois. Há sem sombra de dúvidas uma tentativa de atualizar as causas e circunstâncias, contextos, afetos, subjetividades que nas favelas do Rio, encarnam o porquê desse inferno. E a busca pela sobrevivência em 2021 passa necessariamente por entender o acirramento das exclusões e o recrudescimento da repressão em um estado governado pelo fascismo militar.  

Não se trata aqui de buscar a mera atualização, mas de perceber como demos um salto na direção do abismo. Por isso, há também um avanço no nível de agressividade nas linhas que antes davam uma panorâmica, propunham quadros da violência. LEALL em alguns momentos de seu disco de estreia propõe uma mudança fundamental de perspectiva narrando de dentro a guerra com cores muito vivas. No entanto, não é apenas o reflexo mas sim uma reflexão dos destinos decididos de fora por um estado dedicado ao genocídio da juventude negra. Será, sem sombra de dúvidas um exercício interessante num futuro próximo analisar as mudanças e permanências nas favelas do Rio, tomando o clássico do MV Bill, Traficando Informação (1999) e esse Esculpido a Machado (2021). Sobre as influências dos clássicos do hip-hop nacional:

“Eles são minhas referências, professores que ajudaram a formar meu pensamento, chega ser espontâneo eles me influenciarem.”LEALL

O rapper carioca vem numa trajetória muito interessante e nos últimos anos alcançou reconhecimento com uma série de singles e videoclipes pesados, a exemplo do grande sucesso de “Moda Síria”. Perguntamos a ele porque fazer um disco, já que os singles estão sempre dando muito certo: 

“A música título (Esculpido a Machado) foi escrita em 2018, ela fala bastante sobre o tema, mas acho que eu precisava ser mais profundo e eu só conseguiria fazer isso com o disco.” LEALL

Característica que tem chamado a atenção de geral em seu primeiro disco é exatamente a profundidade que o artista conseguiu imprimir nesse disco de estréia. LEALL consegue ao longo de 12 faixas abordar questões importantes e com uma estética musical que varia ao longo do disco. Como dissemos acima, o disco traz beats de grime, drill e boombap, mas o sentido de Esculpido a Machado (2021) é de resgate e transformação. Os instrumentais possuem diversos autores: Luna, Babidi, DIIGO, Putodiparis, Tarcis, Nagalli, VHOOR, com a mix e master a cargo de 2f U-Flow e traz apenas um feat, com o VND na faixa “Desfile Bélico”;

Situando muito bem o seu discurso e abordando problemáticas raciais sob diversos prismas, Esculpido a Machado (2021) mete bala na palmitagem, no racismo estrutural, na falsa percepção de poder advindo da violência. O disco foge do mero elogio fruto de uma narrativa insossa daquilo que se “vive” e produz um caldo complexo misturando as imagens da violência com as críticas pertinentes ao contexto abordado. Isso pode ser percebido no audiovisual da faixa “Encomenda” que tem a direção do Guy Pinheiro.

Assim como o Pedro Bala do romance Capitães de Areia do escritor baiano Jorge Amado, caminhando junto aos seus parceiros de produção, LEALL nos  apresenta aquele tipo de “marginalidade” que é fruto da cultura hip-hop. Daqueles que diante de uma realidade cruel, racista e de uma sociedade excludente, produz uma narrativa passível de ser sentida e de gerar uma produção de sentido para a luta de todos os negros , pobres e periféricos. E ele abre mão de diversas formas de produzir esses afectos, num leque de sonoridades que encontra no hip-hop seu transcendental, ou seja aquilo que pode ser universalmente entendido. 

O Rio de Janeiro e o que se convenciou chamar de Trap de Cria, vem aos poucos criando uma cara própria musicalmente, misturas são efetuadas, o flow do funk é absorvido, sonoridades inglesas e americanas se misturam ao clima carioca. O LEALL apresenta sua própria receita, onde o clima sombrio do drill e do grime, estão dialogando com originalidade com o funk proibidão, pois recebem o tempero da tradição; Fazendo passar a tradição de autores como os Racionais MC’s e o MV Bill, suas pesquisas sobre música brasileira em autores como Milton Nascimento e Jorge Ben, por exemplo, Esculpido a Machado (2021) se apresenta como um disco forte e que reafirma a importância do hip-hop.

Se isso não é hip-hop, pode cancelar minha carteirinha!

-LEALL Esculpido a Machado (2021) na descêndencia hip-hop

Por Danilo Cruz 

 

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