Lazzo Matumbi com seu disco de estreia Viver, Sentir, Amar (1983), ajudou a criar as bases do reggae nacional, 40 anos atrás!
Se a Bahia como polo cultural e turístico se respeitasse e logo, tivesse consciência do seu tamanho, neste ano estaríamos comemorando os 40 anos do lançamento do primeiro long play de Lazzo Matumbi: Viver Sentir Amar, lançado originalmente em 1983 que é uma das pedras fundamentais na fundação do reggae no Brasil. Sem dúvida alguma, uma das maiores e das mais bonitas vozes da Bahia, Lazzo reuniu uma super banda para gravar o seu primeiro álbum em São Paulo trazendo a reggae music como carro chefe, pela gravadora Pointer.
No final dos anos 1970, Salvador vivia uma efervescência cultural que rapidamente transformou as expressões artísticas e trazia uma micro revolução que foi chamada de reafricanização da Bahia. Em sua formação – o que podemos chamar de período de estudo e de vivências – Lázaro Jerônimo Ferreira já tinha passado pela Juventude do Garcia, Cacique do Garcia, pelo bloco Bafo de Jegue e na sequência se torna cantor do grande Ilê Ayê que capitaneava esse processo de resgate da auto estima da negritude baiana.
Apelidado como Lazinho do Ilê, o artista saiu no ano de 1980 do Bloco Afro Ilê Aiyê para tentar a carreira solo, com 23 anos na época, o cantor e compositor se junta a uma turma de músicos da liberdade. E estes se reuniam em torno das casas de Helson Francisco e de Otacílio Caria para comer um cozido, moqueca de peixe e outras delícias e obviamente levar um som aos sábados à tarde. Nesses encontros, Lazinho já levava a sua galera formada pelos músicos Natan, Ruy de Brito, Mandrake. Judinho e Lino Neto.
“Todas as pessoas que saiam dos blocos de samba, iam cantar samba, e eu disse, eu não quero cantar samba. Eu já ouvia outras coisas, eu já escutava os discos de reggae, muita música africana como King Sunny Adé, Fela Kuti, Touré Kunda, ouvia Marvin Gaye, Ray Charles, ouvia os caras do samba de roda aqui que me deixavam fascinado pela similaridades das vozes, Xangô da Mangueira, Joel Teixeira, Jorginho do Império, eu identificava um similaridade nas vozes desses caras com os cantores de blues, de soul nos EUA, eu falava caramba velho, como tem tudo haver”
É através dessas influências, dessas vivências e informações que Lazzo começa sua carreira solo, buscando se afirmar de modo próprio e autêntico. No entanto, estamos falando de um período onde o reggae ainda não era algo muito bem assimilado pelos músicos brasileiros. Com a exceção da banda pernambucana Grupo Karetas, da gravação/versão de Gilberto Gil para “No Woman no Cry” de Bob Marley, e do emblemático disco Bahia Jamaica (1980) da dupla Jorge Alfredo e Chico Evangelista, o reggae ainda era uma linguagem musical pouco utilizada no Brasil no início dos anos 80 do século XX.
O ex-ministro da cultura Juca Ferreira, recém chegado do exílio, apresenta ao artista neste período, discos de Bob Marley, Jimmy Cliff e Burning Spear comparando este último ao timbre vocal de Lazzo. Pouco tempo depois, o cantor recebe a indicação de um baterista recém chegado a Salvador vindo de Maragogipe, então conhecido como Jair Pelé, e ele vai até a escola de música buscar o batera. Um dos maiores nomes da bateria em nosso país, que depois seria conhecido como Jair Soares ou como assina agora Jahir Soares, fecharia o grupo responsável pelo emblemático compacto.
https://www.youtube.com/watch?v=jBD5g5uU7Cw
A banda então formada por Jair Soares, Lino Neto, Judinho e Marinho já se apresentava nos palcos de Salvador no ano de 1981, com o primeiro show no Teatro Vila Velha: “Luz no Escuro” anunciando no cartaz de entrada: “Primeiro show de reggae depois de Gil e Jimmy Cliff”. A dupla que tinha se apresentado no estádio da Fonte Nova, pouco tempo antes, serviu como chamariz e inspiração artística para o show de Lazzo. A curiosidade tomou conta do público local, a fim de ver o ex-cantor de samba Lazinho do Ilê, se apresentar como Lazzo Matumbi em um show de reggae. A casa lotou durante os três dias, com a apresentação começando à 00:00hs, sexta, sábado e domingo.
O repertório do disquinho traz apenas duas faixas: Salve a Jamaica (Rai Cezar) e Guarajuba dos anfitriões: Helson Francisco e Otacílio Caria, que já eram experimentadas e recebiam boa resposta do público nos shows. A primeira não apenas um reggae, como um verdadeiro Nyahbinghi, onde basicamente ouvimos a bateria, teclado, percussão e a linha de baixo, como base instrumental, onde Lazzo canta acompanhado de um trio de backing vocals. E a segunda faixa, um soul tropical reverenciando a natureza e a espiritualidade da hoje famosa praia do litoral norte de Salvador.
Em 1982 Lazzo vai a São Paulo com o apoio da FUNCEB se apresentar em um festival de música baiana na cidade, junto a outros nomes como Carlinhos Cor da Águas, Zelito Miranda, o bloco Afro Ilê Ayiê, entre outros. Em uma verdadeira montanha russa de emoções, Lazzo vai durante a sua estádia na capital paulista, de uma apresentação vazia em um palco mal divulgado pela organização do evento ao convite feito por Moacir Machado para ficar no quartinho dos fundos do restaurante onde almoçava para tentar a sorte em uma gravadora.
Os artistas companheiros de viagem de Lazzo, falaram bem ao Moacir Machado daquele cantor que almoçava em seu restaurante e que já tinha gravado um disco na Bahia. No dia seguinte, Moacir interpela Lazzo e rapidamente o cantor volta ao dormitório para pegar um dos discos que levou consigo. Tendo ouvido, o produtor que tinha acabado de sair da Odeon, que não lhe prometi nada, o convida a ficar no quartinho dos fundos e ver o que poderiam conseguir na nova gravadora que estava iniciando e que Já tinha convidado Moacir Machado para trabalhar: a gravadora Pointer.
Único da banda de Lazzo a ficar na cidade, Jair Soares o acompanha a uma passagem de som onde as divas já contratadas pela gravadora Pointer: Célia, Miriam Batucada, Márcia e Rosa Maria Collin, ensaiavam para o espetáculo da noite. Eis que surge a oportunidade de Lazzo apresentar uma música e ser visto pelo dono da gravadora: José Maurício Machline. Ouvir o próprio Lazzo narrar essa história é algo único, o cantor conta:
“Eu não tinha levado meu violão pra São Paulo, o guitarrista não quis emprestar a guitarra e só o fez depois que o Machline disse que se eu quebrasse ele daria uma nova. Eu comecei a levar “Do Jeito que Seu Nego Gosta” e Jair Soares já meteu o groove, poucos minutos depois as “divas” já estavam repetindo o refrão. Quando eu acabei de cantar, Zé Mauricio tirou o cachimbo da boca e disse assim: Seu Lazzo, o senhor está contratado. Eu sai correndo e liguei pra minha mãe, mãe eu tô contratado, o cara da gravadora me contratou!”
Os olhos de Lazzo se enchem de lágrimas nessa hora, e a lembrança forte demais para qualquer um que mesmo que não tenha vivido isso, mas que conheça a sua história, sua importância musical e cultural e a desvalorização pela qual atravessa desde de sempre, com a elegância, a leveza e a dignidade e o porte de um verdadeiro rei, afeta. Após a contratação, Lazzo começa algo que lhe é bastante peculiar, o embate com a gravadora pois o artista entendia que sua banda tinha que participar da gravação do disco, e era preciso buscá-los em Salvador, são 3 meses de reuniões para que enfim, a primeira de uma série de batalhas com a indústria fosse vencida.
“Quem com ferro me fere meu bem, por trás, pensa que saí ganhando mas qual, você chora pra gente depois”
É curioso demais como sempre que se fala de Reggae no Brasil e esse disco é deixado de lado, pois é o primeiro álbum onde a grande maioria das faixas apresentam essa rítmica e sonoridade de modo hegemônico em um long play. Seja pelo hit composição de Lazzo e Zelito Miranda: “Do Jeito Que Seu Nego Gosta” ou pela deliciosa “Parceiro” composição de Lazzo que traz a participação da cantora Rosa Maria Collin. Todo o disco respira reggae…
A composição de Filó Machado e do Zé Maurício Machline, Viver Sentir Amar e que dá nome ao disco, traz um Lazzo dominando perfeitamente e de modo original um soul/funk de pitada caribenha, a voz de Lazzo dispensa comentário, né? O baixo groovadissímo de Tinho Santana abre os trabalhos para a canção do compositor do “Engenho Velho de Brotas” Moá Bonfim, “Regue No Balanço”, um reggaezão pra cima. Encerrando o lado A do LP, outra composição de Moá Bonfim em parceria com Temo Verçosa e lindamente executada por Lazzo: “Aquela Gota No Olhar”, acompanhado apenas dos teclados de Eduardo Assad e do trabalho de percussão de Jorjão Bafafé e Júlio Lopes.
Abrindo o lado B, uma imposição da gravadora no repertório do disco, a clássica Madalena (Ivan Lins e Ronaldo Monteiro) ganha uma versão reggaeada, mostrando o porque Lazzo insistiu em levar a banda para São Paulo. A combativa e groove master “Coisas Que Não Entendo” traz arranjos muito bem construído e intrincados por Lazzo – que também assina a produção – e a banda Estúdio 5, interrogando: “Será que você não quer lutar por isso, não tente esconder esse amor tão bonito”. Como o artista nos conta: “Falar da negritude era minha forma de falar de amor ao meu povo”.
Na Salvador dos anos 80, o grande Luiz Melodia que vinha se apresentar no “Manga Rosa” se tornou amigo de praia e rolês pela cidade com Lazzo e este lhe oferece a composição “Destino Coração”: “aqui pra você colocar no seu disco”, a música é mais um pesado reggae com a poesia linda e leve de Melodia no disco. Composição de Gileno Felix, “Cada Cabeça É Um Mundo” é mais um exemplo da riqueza poética e musical dessa estréia de Lazzo, com um arranjo puxado para uma mescla indefinível numa espécie de xote, reggae e música caribenha, mostrando a singularidade do seu próprio mundo musical.
O disco se encerra com a composição de Lazzo, “Desabafo” somente com Eduardo Assad, somente teclado e voz, em uma interpretação magistral do cantor e compositor baiano. Lançado em 1983, o disco era o mais popular da Pointer e Lazzo chegou a fazer matéria no Fantástico da rede Globo, infelizmente esse vídeo não está na internet. Há 40 anos, uma das vozes mais impactantes da música popular brasileira, estreava com um LP quase todo dentro de uma estética musical do reggae, infelizmente esse disco não está hoje nos perfis de streaming oficiais do artista, ainda.
Estamos diante de um marco, porém a falta de pesquisas mais aprofundadas sobre os primeiros registros fonográficos do reggae e os conceitos elitistas e provenientes do racismo brasileiro, legam a Lazzo o papel de voz importante – apenas – da música baiana, que de resto é algo no mínimo superficial. O que podemos perceber ouvindo 40 anos depois, o álbum Viver Sentir Amar, é a voz e as composições de um artista plenamente consciente daquilo que queria, que negociou e brigou para a manutenção de uma trabalho que envolvia pesquisa e vivência, e que dentro do possível se tornou uma firme realidade.
Depois desse disco, Lazzo ainda gravaria mais um álbum pela Pointer: o Filho Da Terra (1985), e na sequência produziria a sua maior obra prima: Atrás do Pôr do Sol em 1988, de modo independente, mas isso, já é papo pra outra oportunidade. Porém, é importante que se diga que a banda Studio 5 que Lazzo começou, depois seria a base para com outras formações, dar prosseguimento com trabalhos como o disco Reggae Resistência (1988) de Edson Gomes e como parte do embrião onde Nengo Vieria, que tocou com Lazzo e junto a outros grandes do reggae baiano fundaria o Remanescentes do Paraguaçu.
Escute:
-Lazzo Matumbi estreava e lançava as bases do reggae nacional há 40 anos!
Por Danilo Cruz