Em seu terceiro disco de carreira, Kurt Sutil propõem um passeio pelas suas vivências, afetos e contradições com “Me Pergunta Como Foi Meu Dia”!
Em termos de produção, Kurt Sutil vem progressivamente entregando trabalhos cada vez melhor acabados. Em termos estéticos, essa busca por produções que estejam à altura de suas ideias, nos tem apresentado um artista muito seguro do que quer, com uma série de referências que não se submetem ao momento, ao que está na moda. E neste terceiro álbum essa postura e qualidade ficam muito bem exemplificadas.
Com “Me Pergunta Como Foi Meu Dia”, o MC manauara nos propõem um mergulho dentro do seu universo íntimo, dentro de suas vivências como um jovem artista afro-indígena distante do centro, numa vida mais ao norte. Apresentado em 11 faixas que no youtube, recebem representações imagéticas com visualizers, o resultado é um trabalho coeso e reflexivo. Os visualizers tem a direção de Wesley Simplício e produção executiva de Patrícia Patrocínio e Kurt Sutil assina a direção criativa. Passeando por diversas sonoridades, o MC aqui adequa aos temas sonoridades correspondentes, como vetores musicais para os sentimentos e conceitos abordados.
Abrindo os trabalho com “Faz Bem Pra Mim”, a faixa que traz as participações de “Keys Carvalho” e “Bêonin” em cima de uma produção do JXX$, fala sobre relacionamentos em ritmo de um trap mais cadenciado, e ao mesmo tempo em que nos fala sobre relações nos apresenta as contradições do Kurt Sutil, com um retrato muito forte e autoconsciente. O visualizer nos apresenta uma semiótica muito bem construída, ao captar o MC regando as plantas em sua casa. Nos levando a refletir sobre de que modo nós cultivamos sentimentos e práticas que podem contribuir para o fim ou o crescimento de nossas relações.
Pouco afeito a fórmulas simples que tendem a tornar o produto musical cada vez mais esvaziado e palatável ao gosto médio, com o boombap “Divina Comédia”, uma produção do RVL$, o sample inicia a música por pouco mais de 34 segundos. Nos convidando a aguardar no loop do sample, até a impactante abertura do Andrewxx que rima sobre luta e amor, até a chegada de Kurt Sutil que preenche a outra metade da faixa com diversas referências cinematográficas sobre o mesmo tema.
Tendo iniciado com o Trap, “No Way” segue no boombap, ampliando mais o espaço sonoro do disco, como se fosse o olhar para o infinito do Kurt no visualizer. A música que é uma produça do Vittor Clover, conta com a participação de DaPortela e do Bêonin, que rimam sobre a busca por uma vida melhor e os desafios que obstaculizam jovens periféricos. Kurt Sutil segue essa linha mas logo volta a versar sobre sua própria subjetividade:
“Que meus problemas não afetem ninguém/ e que essas letras te faça sentido/ que a solidão não me assole, pô! Tá foda esses dias/ mantive por perto meu egocentrismo e afastei quem eu não deveria/ eu não queria/ vida vadia/ joguei meus traumas na mesa/ insegurança e como a Lua que foi embora no raiar do dia/ eu que fui burro de não vê sinal/ eu que fui pego na volta do anzol/ fui na vontade no calor da carne e nem me liguei que teu nome era sol!”
Para o ouvinte interessado em nuances, o Kurt Sutil longe de transformar dores em clichês, tem construído uma obra que dialoga com muita qualidade com outros tantos jovens que enfrentam os mesmos problemas. Sempre colocando esses problemas mentais em suas origens sociais, históricas e políticas, o que o diferencia de muitos que individualizam esses transtornos e ou não consegue encontrar suas causas.
“Que eu me perdia no copo de skol/ que eu criticava o que meu pai fez/ e que eu tava fazendo igual/ e que tu tava indo embora de vez!”
Aulas de barras e de uma coragem lírica muito tocante. A quarta faixa “Confia 2” (prod. Custic) traz os feats de DaPortela e Greeg Slim, apresentando uma sonoridade mais soturna no beat e nas linhas. Crime, vivência nas ruas, pista, política, são os temas e tem na faixa gêmea “Galeroso de Grife” a inclusão do mano Will o Índio, variações sobre a mesma ambiência e temática. Essa é a faixa com cara de hit no disco!
Outro momento muito bacana no disco “Me Pergunta Como Foi o Meu Dia”, a música “Entidades” que conta com a produção de Wander Reisss, a faixa trata de questões de raça em nosso país e faz um link com as dificuldades de se manter produzindo no norte do país. Desfilando uma caixa de ferramentas líricas e de flow sujos, aqui temos uma música onde o MC exalta a importância do hip-hop como arma de resistência e ao mesmo tempo como potência para seguir mesmo com toda xenofobia – que é um outro nome para racismo!
Ao longo de todo o disco, Kurt Sutil vai desvendando questões que lhe preenchem, e para tal feito ele se utiliza de sonoridades como o trap e o boombap, como roupas que lhe vestem melhor naqueles momentos. A relação entre forma e conteúdo no disco, se mostra solidamente elaborada pela construção imagética e rítmica, assim como fica explícita a grande qualidade do manauara como MC. Não à toa, é em um beat do Victor Xamã que o MC mete uma pegada mais underground em termos líricos e estéticos, quase que dialogando com a influência do Victor em seu trabalho!
Em “Flow De Quem”, Kurt esbagaça os xenófobos que não se dignam a ouvir o que foge de suas realidades mais imediatas e dos seus interesses pelo hype. E ainda deixa um beef em forma de imagens para as mídias e o público que é incapaz de reconhecer as singularidades de artistas que não são do eixo. Aulas!
Contando com a bela voz da Bukana, “Capciosa” mais uma produção do Custic, Kurt Sutil volta ao tema dos relacionamentos e seus problemas. E o próprio Custic assina a pesada “Sinal de Alerta”, mais uma aula suja! O groove e o tema dos amores retorna com a produção do Rob & Dotghostit e a volta da Bukana. E finalizando o disco a música Tudo é Nosso com participação de Ligeirinho AM e beat do VM.
Escute “Me Pergunte Como Foi Meu Dia” e veja os visualizers no youtube, e conheça um jovem artista afro indigena diretamente do norte, com uma estética própria e um dos MC’s mais destacados de sua geração! Um excelente retrato do mundo ao norte.
-11 Raps sobre a vida de Kurt Sutil em “Me Pergunta Como Foi Meu Dia”! Resenha
Por Danilo Cruz