Quando foi anunciado que a vida de Kurt Cobain finalmente iria ganhar uma cinebiografia oficial o frisson foi à altura da popularidade que o Nirvana e o seu líder ainda possuem nos dias atuais. Os trailers que foram aparecendo enchiam os olhos e aumentavam as esperanças de fãs no mundo todo. Não era pra menos. Desde do seu suicídio em 1994 diversas obras surgiram com a proposta de desvendar as dores e angústias de Kurt Cobain, porém nenhuma delas ganhou o aval da família do músico ou mesmo dos outros integrantes da banda. O que significou produções sem as músicas do Nirvana e sem informações mais aprofundadas sobre a biografia de Kurt.
Montage of Heck viria então para suprir essa carência, e desde o início se vendeu como uma cinebiografia oficial em que a produção teve acesso ao extenso acervo de fotos, desenhos, diários, vídeos e gravações de áudio, grande parte da qual nunca antes revelada. Finalmente o grande público poderia conhecer facetas obscuras da vida e da criação artística de uma das figuras mais controversas da cultura pop do final do século passado. Pelo menos essa era a promessa.
Como um fã do Nirvana compartilhei da euforia e esperei ansiosamente para assistir o tal documentário que tem produção da HBO – o que só aumentou a expectativa devido a imensa qualidade das produções do canal no que se refere a documentários sobre celebridades da música. Não consigo mensurar até que ponto essa expectativa prejudicou a minha avaliação da obra. Mas o fato é que saí do cinema ligeiramente decepcionado e com um gosto acre na boca, acompanhado de uma incomoda sensação que não poderia descrever sem deixar essa resenha mais longa do que deveria.
Até a primeira metade do filme nada indicava que ele me provocaria tais impressões. O diretor Brett Morgen entrega exatamente o que prometeu, mostrando a infância e a adolescência de Kurt com uma riqueza de detalhes impressionante. Os depoimentos dos familiares acompanhados de imagens raras do músico em sua rotina doméstica dão uma dimensão mais profunda das feridas que o atormentaram pelo resto de sua vida. Quando algumas músicas do Nirvana irrompem dando o tom dos relatos (a versão infantil de All Apologies é certeira nesse sentido) senti arrepios e aquele conhecido nó na garganta que parecia avisar: “você vai ter que se segurar para não pagar de chorão na frente de todo mundo”.
A personalidade hiperativa do pequeno Kurt é mostrada através de uma edição muito bem elaborada que vai misturando os depoimentos de pessoas próximas a ele, à imagens caseiras do seu cotidiano familiar e os desenhos que ele produzia em abundância, além de imagens representativas da época numa colagem polifônica cheia de dinamismo. O resultado é um filme com uma linguagem visual exuberante como raramente encontramos em produções desse tipo. A solução de retratar a adolescência do músico utilizando uma animação (belíssima por sinal), nos faz esquecer por alguns instantes que estamos assistindo a um documentário.
Assim, conhecemos mais de perto os conflitos de Kurt Cobain relacionados à rejeição que sofria dentro de sua família e acompanhamos o desenvolvimento de uma personalidade rebelde e auto-destrutiva. A descoberta do punk o colocaria definitivamente em rota de colisão com esse mundo que sempre o rejeitou. O undergroud se tornaria o seu lar, o lugar onde podia expressar e compartilhar sua raiva. É mais ou menos nessa época que Kurt começa a usar heroína por conta de um grave problema estomacal que o atormentou pelo resto da vida. Também é nesse período que ele conhece Krist Novoselic e David Grohl e funda a banda que iria transformar o rock no início dos anos 90.
E é justamente aí que o filme começa a escorregar. A formação do Nirvana e a sua vertiginosa ascensão é tratada de maneira muito superficial, sem apresentar nada de realmente novo. Nenhuma referência é feita a outras bandas da cena grunge que o Nirvana ajudou a formar, nenhuma palavra é dita sobre as influências musicais de Kurt Cobain. Esta dimensão é completamente ignorada para que o foco se concentre no enorme desconforto que ele sentia com a rotina de celebridade. O que é uma pena, porque por mais que o Nirvana fosse o epicentro de um fenômeno cultural de larga escala, esse fenômeno ia além deles. Ignorar isso é perder de vista elementos importantes da trajetória de Kurt Cobain. Mas o pior ainda estava por vir.
Juro que não é implicância minha. Não considero Courtney Love a responsável pela morte de Kurt e nem acho que ela seja a encarnação do mal, como alguns fãs mais exaltados a costumam pintar. Contudo, no momento em que ela entra no filme a coisa degringola de vez. Devo admitir que a culpa não é dela, e sim do diretor que pesa a mão e não consegue manter o bom ritmo que tinha imprimido desde o começo da obra. Os diários do músico ganham uma importância desmedida, chovendo no molhado ao girar em torno de temas que já haviam ficado claros antes. Mas o que mais me incomodou foi o uso que ele fez de imagens que mostram a intimidade do polêmico casal.
Esses vídeos ocupam um tempo de tela que considero desnecessário e inapropriado. Não que toda a polêmica sobre a gravidez de Love e o nascimento de Frances Bean Cobain – num momento de grande exposição midiática pela qual eles passavam – seja de importância menor. Mas principalmente porque é muito difícil, depois de algum tempo de insistência, não começar a se incomodar com o teor invasivo que aquelas imagens trazem. Afinal não era justamente esse tipo de comportamento da mídia (e todo o julgamento moral que ele provoca) que tanto incomodava Kurt? Não consigo entender a necessidade de o expor dessa maneira. Se o objetivo era deprimir o espectador de uma maneira completamente errada eles conseguiram.
Apesar disso, a segunda metade do filme ainda tem bons momentos, como a tumultuada passagem do Nirvana pelo Brasil em 1993 na ocasião do extinto Hollywood Rock. Em suma, Montage of Heck é um filme para quem quer saber mais sobre alguns detalhes da vida de Kurt Cobain. Aqueles que buscam entender melhor o que o teria levado ao suicídio provavelmente ficarão satisfeitos. Porém, se seu interesse é mais voltado para a questão musical, então este não será um documentário muito esclarecedor.