O Ivan Sacerdote Trio abriu o Festival Eletrobras Chesf Arte & Natureza no Teatro Vila Velha oferecendo aos presentes uma integração entre si através da música.
Sacerdócio e comunhão através da música
No dia 01 de setembro, o Ivan Sacerdote Trio, abriu o Festival Eletrobras Chesf Arte & Natureza, realizado no Teatro Vila Velha. A maneira como Ivan Sacerdote (clarinete) conduziu a apresentação junto aos seus companheiros Daniel Neto (acordeom) e Raul Pitanga (percussão), mostra as várias camadas possíveis de serem criadas durante um show.
O clarinetista exerceu magistralmente o sacerdócio da música ao se colocar diante das pessoas ali presentes como seu semelhante. O fez através da maneira de se dirigir às pessoas, de falar das músicas constituintes do repertório escolhido para aquela noite, na forma de tocar suas músicas.
A liturgia própria de seu ethos construído através das ramificações sociais, culturais e afetivas resultantes da sua relação com a música, em particular com a música afro baiana, produziu um clima acolhedor, fazendo as pessoas sorrirem e se sentirem parte de um acontecimento. Promovendo a comunhão entre músicos e plateia através da música.
Perdeu-se, de certa forma, no nível da consciência pelo menos, o limite que separa o público do artista. Quando Ivan falou das músicas de seus mestres Moraes Moreira, João Donato, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Dorival Caymmi, das suas músicas autorais, que revelam laços familiares, culturais e sociais com Salvador e a Bahia, quando fala carinhosamente de seus amigos Daniel e Raul, com os quais segue lado a lado desde os tempos de estudante da Escola de Música da UFBA, quando falou do Teatro Vila Velha e da importância deste em sua formação pessoal e musical, encantou a todes, pois falou de forma afetiva e acolhedora.
Todos os sons emitidos naquela noite, seja pelos instrumentos, pela fala de Ivan, pelos aplausos, risos e gritos das pessoas na plateia foram costurados pelo ethos sacerdotal de Ivan.
Salvador em ritmos e sons nas composições de Ivan Sacerdote
A apresentação se dividiu em três partes. Duas delas, a primeira e a terceira, trouxeram músicas de grandes referências da música baiana e brasileira. No meio apresentou suas composições autorais, apresentadas com o anúncio surpreendente do lançamento do seu terceiro álbum, segundo Ivan, a ser lançado ainda em 2023.
Quando falou de suas músicas, certamente gerou uma identificação com muitas pessoas porque tratam de vivências pelas ruas da cidade, seja na observação na mudança da paisagem urbana de Salvador expressa em Cine Jandaia, seja na experiência desconcertante e provocante de se deparar com Jayme Fygura (se você não conhece o escultor Jayme Figura, assista a este doc para corrigir esse equívoco) pelo centro histórico de Salvador, seja nos laços familiares revelados em Coco Pra Vicente, feita para seu filho.
Cine Jandaia é um choro sobre essa obra arquitetônica localizada na Baixa dos Sapateiros, região de Salvador imortalizada por Ary Barroso, cujo período áureo se deu ao longo dos anos 30, 40 e 50 do século XX.
O Cine Jandaia gozava de tanto prestígio naquele período que ficou conhecido entre os frequentadores de Palácio das Maravilhas. Assistam aqui o curta documentário Jandaia para entender a importância cultural e social deste prédio há muito abandonado pelo poder público municipal e estadual, entregue à ação destruidora do tempo.
Seguiu-se o ijexá Jayme Fygura, música que pode ser ouvida clicando aqui. Jayme Fygura está envolto em mistério, portanto, nenhum ritmo para expressar melhor o mistério que o ijexá, ritmo dos orixás, presentes nos afoxés, que são formas de levar o candomblé pras ruas, apresentar a sacralidade do seu rito às ruas, ao povo.
Rua, habitat de Jayme, onde se revela ocultando sua identidade pessoal. Tal qual um orixá, Jayme é manifestação de forças além da nossa compreensão, impossíveis de conter em definições conceituais, permitindo-se revelar apenas pela sensação de sua presença.
Pena minha memória estar ladeira abaixo! Antes de Coco pra Vicente, música com a qual Ivan venceu o 17o Festival de Música Educadora FM em 2019 na categoria Melhor Composição Instrumental, certamente teve uma outra perdida nas profundezas abissais da minha memória carcomida.
A música nordestina e afro baiana
Há liberdade na sua execução das músicas, na forma de expressá-las, sempre ancorada nas estruturas rítmicas de gêneros musicais muitas vezes apresentados ao grande público como possuidores de formas fixas.
Ivan mostra não só a diversidade de combinações possíveis entre eles, as diferentes formas de execução dos mesmos, mostra todo potencial do clarinete enquanto instrumento popular, levando adiante o legado deixado pelo mestre maior deste instrumento, o divino Paulo Moura.
A musicalidade do Ivan Sacerdote Trio tem sua matéria prima no chorinho, na diversidade da música nordestina, que oferece o xote, o baião, o galope, o forró, o coco, na igualmente diversa música afro baiana com seu ijexá, o samba reggae, o samba chula, tudo muito bem combinado em arranjos criativos que dá novos sabores à músicas dos mestres.
Através destes ingredientes músicas como Guitarra Baiana e Chame Gente de Moraes Moreira, Ladeira da Preguiça de Gilberto Gil, Sol Negro de Caetano Veloso e popularizada através da versão em duo de Gal Costa e Maria Betânia, Pipoca Moderna de Sebastião Biano e Caetano Veloso, Bananeira de João Donato e Gilberto Gil, ou o samba chula E 700 Galinhas.
Todas apresentadas em novas cores, texturas e estruturas rítmicas pelo trio no show de abertura do Festival Eletrobras Chesf Arte & Natureza.
Teatro Vila Velha
Não podemos deixar de destacar a fala de Ivan sobre a importância do Teatro Vila Velha. Expressa sua alegria pelo fato da realização de evento tão importante em sua sala principal dar a este espaço cultural a relevância cuja sua história lhe garantiu.
O clarinetista relembrou as rodas de choro realizadas num dos espaços da casa, o Cabaré dos Novos. Reavivou em mim uma memória afetiva pessoal, pois no mesmo período que Ivan revelou frequentar a Roda de Choro do Vila Velha, durante a primeira metade da primeira década dos anos 2000, eu também colava lá semanalmente com meu amigo Geidison.
A roda de choro do Vila Velha possuía um jeito meio jazzístico de fazer o choro, uma vez que a roda estava aberta, ao modo das jam session, para músicos de fora tocarem junto com os componentes da “banda da casa”. Imediatamente me bateu o insight de que essa experiência teve influência direta na formação do estilo musical bastante próprio de Ivan Sacerdote.
Quero abrir mais um parêntese aqui e lembrar que entre os músicos fixos da roda de choro estavam os mestres Edson Santos, o Edson Sete Cordas e Cacau do Pandeiro, fundadores do importante grupo de choro soteropolitano Os Ingênuos. Imagina a importância dessa experiência para um jovem instrumentista em processo de formação do seu estilo!
Vou esticar um pouquinho mais esse parêntese para lembrar que o mestre Cacau do Pandeiro nos deixou recentemente, em fevereiro de 2022. Fica aqui nosso carinho a esta figura que tanto ofereceu à música baiana. Salve Mestre Cacau do Pandeiro!!
Outro destaque, neste sentido de trazer à tona a importância do Vila Velha, está na música Sol Negro. Isso porque pelos idos de 1964, marcado pelo Golpe Civil Militar que mergulharia o Brasil no horror da violência de estado, Caetano Veloso foi convidado a apresentar um show de MPB na inauguração do Teatro Vila Velha.
O show foi batizado de Nós Por Exemplo e aconteceu na noite de 22 de agosto de 1964, portanto há 59 anos atrás. A música Sol Negro, uma espécie de canção lamento, quase um blues, foi aclamada efusivamente pelo público. Foi composta por Caetano especialmente para sua irmã Maria Betânia e a amiga Gal Costa cantassem na inauguração do Vila Velha. Você pode conhecer os detalhes desse momento histórico no livro Tropicália: a história de uma revolução musical do Carlos Calado.
Cheguei a esta informação pesquisando sobre a música pra escrever este texto. O que me faz levar mais a sério o aviso feito por Ivan em várias partes do show, em tom anedótico, que a adição de cada música do repertório foi friamente calculada para aquela apresentação específica.
Outro patamar e além
Outro momento importante do show foi quando Ivan anunciou o lançamento do seu terceiro álbum para este ano. Este anúncio o levou a falar falar dos dois álbuns anteriores. E aí, você se dá conta da aparente enrascada em que Ivan se meteu ao ter seu primeiro trabalho lançado ao lado de ninguém menos do que Caetano Veloso.
Imaginem a situação: você é um jovem músico, chamando atenção
pelo estilo musical em que vem trabalhando, aos poucos encontrando seu lugar na música de Salvador. Esse trabalho seduz os ouvidos experientes e refinados de Caetano Veloso, rendendo-lhe um convite para gravar um álbum. E não só isso, sem banda, só você e ele!
Disse ser aparente enrascada porque o cara começou sua discografia no topo! O que naturalmente aconteceria no auge da carreira de um músico, após uma sucessão de percalços, ocorreu já na largada.
Em termos de carreira, mentes focadas apenas no retorno material desta oportunidade, certamente se fechariam num casulo de vaidade. Não é o caso de Ivan Sacerdote.
Pra mostra porque essa enrascada é aparente, precisamos voltar ao que início deste texto, quando falei do ethos sacerdótico de Ivan. Como todo bom sacerdote, Ivan se coloca na posição de reverenciador, não de reverenciado, portanto mostra respeito àquilo que apresenta enquanto ofício, mas reverencia, enquanto fiel, sua arte, a música.
Nesse sentido, gravar um álbum ao lado de Caetano é uma das vivências permitidas pela música. Ele agradece a Caetano pelo gesto afável de fazer essa reverência a música ao seu lado, num momento do show que permite sintonizar, mesmo que rapidamente, a frequência na qual o senso estético de Ivan opera, que tem na música um meio, não um fim.
Um meio de realizar sua existência através da conexão com outras existências, seja com Caetano Veloso, com o percussionista e amigo Raul Pitanga, o acordeonista Daniel Neto, ou o parceiro Felipe Guedes, com quem gravou seu segundo álbum: Ivan Sacerdote e Felipe Guedes – Festival de Jazz do Capão 2021.
No fim tudo acaba em samba
Quando a última música foi tocada, vou lançar mão uma vez mais do super trunfo da memória carcomida, que não faço ideia de qual foi ela, o público aplaudiu de pé e assim permaneceu até o trio se retirar do palco.
Não demorou para que se iniciassem os pedidos da saideira. A volta do trio ao palco se deu com o convite de Ivan para que as pessoas descessem para frente do palco e sambassem ao som do samba chula E 700 Galinhas.
Música que faz parte do acervo cultural popular do Recôncavo. Nesse clima catártico no qual o samba do recôncavo baiano deu o direcionamento para o festejo instaurado, deu-se o encerramento da experiência agregadora ofertada pelo Ivan Sacerdote Trio.
Um show ao modo das dinâmicas próprias das rodas de samba, das rodas de choro e das jam sessions sob as quais todos estão convidados a participar contribuindo com as habilidades que lhes estão disponíveis. Por isso podemos considerar que foi uma experiência compartilhada do acolhimento feito pelo trio acolhendo de diferentes modos, as diferentes singularidades presentes.
Em 2017 Danilo Cruz escreveu sobre o vídeo lançado pela Bim Bom Records de Ivan Sacerdote tocando seu ijexá Jayme Fygura. Você confere a matéria logo abaixo: