Haika volta a sua essência com um disco de estreia político e com produções do trap e do boombap, cortesia do UrsãoRecords!
“mais que merecido pela luta madrugadas amenizadas só pela chuva
e eu esperando esse clima mudar
eles esperam só para desfrutar
não tem como disfarçar
única solução Readaptar
o único jeito é nos salvar “
De volta às suas raízes, o MC baiano Haika lança o seu primeiro álbum RealNordeste buscando no boombap/trap sua forma de expressão mais original. O disco conta com a produção de UrsãoRecords e traz 7 músicas com participações do seu parceiro 071dio, de MCDO do Afrocidade e do mano TUFF. E apesar de possuir já uma mixtape na rua, podemos considerar de fato, esse disco como uma estreia.
No desenvolvimento que podemos chamar natural do rap nacional, diversas sonoridades foram exploradas dos anos 80 até pouco depois da primeira década deste século XXI. Natural pois, até alguns anos atrás a Indústria Cultural não entendia a possibilidade de lucrar com esse gênero musical, basicamente, de 2015 para cá a indústria cultural adentrou o rap, transformando o gênero em um sucesso nas plataformas de streamings.
Porém, em nosso país enquanto gênero musical “estrangeiro” que passou décadas sem nem ser considerado música, o rap sempre buscou olhar e muitas vezes se inspirar nos modelos americanos, singularizando-os com nossas próprias raízes musicais e com os nossos próprios problemas sociais, para produzir o tal do rap nacional. O sucesso do trap nacional com a associação da indústria cultural, produziu um fenômeno que não acontece nos EUA, que foi o de apagar qualquer outro modo de fazer rap no Brasil.
Sem entrar no mérito do conteúdo lírico do trap, a questão é que durante uns bons anos de 2015 para cá, frases como o Boombap está morto, a desvalorização progressiva dos nomes que resistiram e produziram o terreno fértil onde hoje o rap se encontra, passaram a ser senso comum entre a nova geração, nas redes sociais. Pois, muitos atores e o público dessa forma de fazer possuem ou possuíam um aspecto juvenil onde a ignorância é vista como rebeldia.
Óbvio que com o sucesso dessa forma de fazer rap, quem chega na cultura, que absorve esse tipo de música entende – via a produção da ignorância intrínseca ao funcionamento das redes sociais – que é essa a onda que se deve surfar para dar certo. O discurso meritocrático que quer ligar os milhões de ouvintes ao talento como se fosse apenas uma questão de causa e efeito, esqueceu de avisar para todos o quanto de investimento se teve para alcançar tal “sucesso”. E isso é deveras sedutor para jovens negros periféricos que possuem um sonho de viver de sua arte, de ajudar a sua família, enfim de ascender socialmente.
Atualmente com 21 anos, o MC Haika possui já 7 anos dentro da cultura hip-hop, e a mixtape Realplot (2022) onde o artista trabalho dentro da sonoridade do Trap e do Plug, com muita qualidade, diga-se de passagem. Ao escutar o novo disco do artista camaçariense lhe questionei sobre essa virada de chave, do trap para o boombap, e sobre isso Haika nos informa:
“Comecei em 2016, fazendo boombap, depois que comecei a ter contato com Studio, o que estava dando certo era o trap, então deixei de lado essa essência inicial e comecei a focar mais em aprender o estilo que todos ouviam, porém a minha origem é no boombap, então 7 anos depois estou lançando com segurança o primeiro álbum no estilo que comecei, sacou?”
Longe de qualquer maniqueísmo bobo e simplista, com RealNordeste (2023), o MC encontra-se no estilo que ele acredita, melhor serve de veículo para as suas ideias e neste sentido, mostra-nos que para além do mercado, o coração ainda deve ser a bússola que guia a produção da arte. O que ele faz com bastante consistência, não apenas por trazer sua essência para o disco, como pela experiência em outras sonoridades e métricas, como nos casos acima mencionados.
“Sem pular fogueiras nessa geração hipócrita prefiro voar com hipogrifos eles te respeitam te abraçam e te sufoca em queda livre a paisagem é paraíso”
O disco abre com uma produção drumless do UrsãoRecords com uma lírica afiada e um flow que se equilibra muito bem na ausência da batida do Haika. Com “#CVMN” abreviação de “Camaçari Vivi Meu Nego” e é em seu território que sua lírica se insinua de modo introspectivo e reflexivo, onde ele nos levar a pensar nas suas relações com a cidade, com o estado, com a cena e com sua própria arte, desde uma perspectiva coletivista: “Não podemos voltar atrás”.
Desde a capa do trabalho, que é fruto da arte do fotógrafo Rafael Rodrigues, onde o MC e capturado pelas lentes do artista entre dona Marielza Lacerda sua avó e seu Cândido Barbosa, um mais velho importante na vida de Haika, podemos perceber como não apenas sua arte, mas a sua própria vivência dialoga com a tradição, com sua/nossa história. Obviamente que isso transpira no trabalho, pois estamos diante da estreia de um jovem negro periférico que vive todas as agruras que o estado supremacista branco nos impoem.
Sem deixar a peteca cair, a segunda faixa caminha com um beat boombap com pitadas de groove voltado ao R&B, onde Haika reflete sobre a existência nas cidades, o concreto e a solidão como cercas as quais enfrenta. As ilusões produzidas pelos poderes, que mas do que colocar mantém a margem a população negra neste país. A música tem participação do seu parceiro 071dio, que chega forte no feat complementando as ideias e unindo forças contra as distrações que tiram vários dos nossos, dos trilhos.
O álbum segue encadeando poesia e ritmo, de modo muito consistente, longe de apresentar faixas soltas, o que temos aqui em RealNordeste é o encadeamento poético e rítmico de ideias e visões, conceitualmente alinhavadas por uma existência real que frutifica ideias reais. Prova disso é a sequência com a música “Ar Que Sufoca”, que mantém o nível das faixas anteriores, sem se tornar repetitivo no tema, na lírica e no flow. Com participação do MCDO (Afrocidade), que preenche sua participação com punchlines certeiras contra a hipocrisia e as falsas posturas dentro da cultura hip-hop.
Já em Santos e Almas, a sonoridade muda para o trap, porém as técnicas do gênero são empregadas em uma lírica de combate e resistência ancestral com uma forte citação do professor Nailton das intenções poéticas e da visão político cultural, que Haika encarna neste seu trabalho. Um bate cabeça, produção do UrsãoRecords, chega na 5º música do álbum com “Tártaro” que traz a participação de TUFF, com a dupla discorrendo poeticamente sobre a prisão subterrânea que molda as subjetividades nas periferias.
A faixa título do trabalho RealNordeste, mostra para o ouvinte que com o seu trabalho Haika se coloca para além de nichos estéticos, encarnando uma visão política de resgate e de inserção na luta do seu povo. Neste seu trabalho, podemos perceber como há uma fragilidade imensa no mercado e nas tretas de internet, assim como no público guiado por algoritmos e views comprados, especialmente quando se trata dos jovens que consomem rap no nordeste.
Aqui temos um legítimo trap no que tange a métrica e flow, assim como na produção da batida por Ursão, porém o conteúdo composto coaduna as ideias que são fortemente trabalhadas ao longo do disco. A “estética gringa” recebe uma atualização nordestina diretamente da região metropolitana de Salvador, na cidade de Camaçari, que vive e respira rap, com uma geração de novos atores e atrizes que tem produzido em alta qualidade, a exemplo das participações presentes nesse trabalho, todas deste território.
Finalizando o trabalho e fechando conceitualmente o que se inicia no produção visual da obra, e nas ideias que percorrem o álbum temos a música “Aos Ancestrais”, com uma ambientação muito bem construída, e uma cadência do beat que chama atenção para a lírica. Onde Haika trabalha poeticamente entre passado e futuro, compondo uma imagem poética bastante interessante para o momento de violência brutal que vivemos em nosso estado:
“Vivemos em uma nação morta, onde navios resgatam na porta”
Ali, relativamente próximo a Haika, há 9 anos o menino Davi Fiúza foi “resgatado” por um dos navios negreiros da Polícia Militar baiana e até hoje não retornou. Citamos esse, que é apenas um dos milhares de casos que poderiam ser ilustrados por essa triste e verídica imagem produzida pelo MC, que demonstra como funciona o extermínio da juventude negra no Brasil. E contra esse estado de coisas, a escolha política do artista é retornar e homenagear os seus ancestrais, olhando para um futuro onde o real dos jovens nordestinos e brasileiros não tenha na morte, no encarceramento ou nos subempregos um destino comum.
Ouçam RealNordeste!
-MC camaçariense Haika lança seu primeiro álbum com RealNordeste (2023)
Por Danilo Cruz