O paulista Gelleia lançou A Vida é Simples 10 anos atrás, apresentando um clássico do rap jazz brasileiro, que você precisa conhecer!
“Eu sinto a música agir como fonte de energia, a batida, a escrita, a levada, a magia”
Uma introdução que se bem escutada nos ilumina e nos remete para dentro de nós mesmos. Assim o disco A Vida é Simples (2012) tem início, um álbum infelizmente pouco conhecido mas que como toda boa obra de arte, segue ao longo de dez anos guardando um vigor incomum. O beat do Eduardo Santoz é a abertura essencial para uma jornada, que ao longo de 14 músicas e uma faixa bônus apresenta uma mistura de jazz, samba jazz e bossa.
Integrante do coletivo Bossa Beats, parte do icônico grupo Primeira Audição, Gelleia cometeu um álbum que junto a algumas outras produções representa o que de melhor foi feito no Brasil em termos de rap jazz. Um tratado completo de positividade e elegância, de suavidade e técnica, de uma simplicidade que apenas os grandes conseguem alcançar às custas de muito esforço.
A faixa seguinte, a homônima A Vida é Simples (prod. Tiago Miotto), é um pequeno tratado que conjuga a sua própria história com a descrição de uma visão muito consciente do que é o papel do MC. Aliás, Gelleia aqui em seu disco de estreia trabalha nessa dupla intenção ao longo de todo o trabalho. Produzindo uma síntese que é resultado orgânico daquilo que se é, uma vivência da cultura hip-hop, uma pesquisa musical fora da curva, técnica poética e flow como expressão do pensamento e da conduta.
Apesar do título poder parecer um tanto pretensioso, em meio ao caos em que vivemos, a arte do Gelleia, sua expertise enquanto MC e beatmaker, flui e soa com tanta tranquilidade, as suas ideias são apresentadas com tanto groove e elegância, que não nos resta senão aderir, pelo menos ao longo do disco, a sua visão de mundo. É o que a obra de arte nos obriga quando bem sucedida.
Ouvindo “Trajetória”, mais um beat do Eduardo Santoz, onde ele imprime um sample com uma piano groovando por entre a batida, um boombap fino, somos apresentados a caminhada do MC. A descrição tranquila do rolê no underground, da paixão pelas produções na cidade cinza, da amizade que nos impulsiona a viver e produzir mais alegremente, formam um desenho poético de 3 minutos e 28 segundos que nos coloca como observadores de um cenário hoje perto da extinção.
Longe de fazer qualquer apologia da precariedade, há aqui um bonito retrato da simplicidade – um dos – que percorre todo o disco. Um estoicismo – se podemos remeter – invulgar, que entende o amor à música – rap – como algo primordial, fruto da união coletiva de almas que sentem o mesmo. A faixa seguinte “Pés no Chão” é uma produção da lavra do próprio Gelleia, um beat com um baixão acústico conduzindo e uma batera que caminha na chave afrobeat, um groove gostosinho e sem rimas.
“Ascenção espiritual que liberta, me livra da corrente e derruba o muro que me cerca”
Inserção de música, abertura e afirmação da música como esse motor que nos faz sentir e pensar de modo constante e ritmado. Não é preciso dizer que ao longo de A Vida é Simples não encontramos nada que remeta às formas pop daquele momento. “Melhor Hora” é um skit com produção do DJ Soares, aqui Gelleia versa de modo firme sobre o momento da criação como algo cultivado e acontecimento gerador de auto-reflexões. O DJ Sleep risca cadenciando inserções, e presentificando a cultura do DJ junto a um MC fundamental do rap nacional.
O entendimento da própria potência enquanto artista, e da arte como catalisadora de sentimentos positivos e ativos, pode entendido ser o mote para a faixa “249” mais uma produção do DJ Soares. Construída durante as viagens do ônibus 249 indo estudar em Guarulhos, a música traduz a meditação que muitos de nós fazemos na inspiração que as “janelas de ônibus” nos imprimem, como dizia o outro poeta que recentemente nos deixou: Miró da Muribeca.
Flagra o teaser daora que saiu pro lançamento do disco:
A essa altura da audição já estamos imersos nesse universo onde os pensamentos transbordam com suavidade e bastante técnica, conjugando os samples do jazz à reflexões éticas. A força de uma visão positiva da alteridade e da diferença e como isso pode ser re-flexionado em nós mesmos, nos levando a pensar em como o rap é rico de possibilidades para além do que o mercado nos empurra. Em seu trabalho solo, mas também com o “Primeira Audição”, Gelleia nos apresenta uma vertente diversa do que pode o rap informado através do jazz, da bossa nova, do afrobeat, com um boombap underground que caminha por outras direções líricas.
O ethos ativo se presentifica na faixa “Lavando a Alma” que nos traz as participações dos grandes Mascote, Raphael Lobato, do Henrick Fuentes e do DJ Crick. Abordando temas do cotidiano, a importância de sintonizarmos naquilo que nos causa prazer, conseguir nos desfazer do ressentimento e darmos atenção àquilo que nos encaminha a uma visão da impermanência da vida, são o mote. A vagareza certeira das notas executadas pelo piano que foi sampleado pelo Dr. Drumah, conduzem uma repetição que pontua com excelência, a necessidade de criarmos melodias adequadas a nossa vida que nos carrega e que carregamos.
Longe de lotar o disco com versos e rimas que funcionem como um espécime de auto ajuda lírica, A Vida é Simples nos comunica calma, paciência, empatia e atenção com o fundamental autocuidado que devemos cultivar em nossa subjetividade como uma práxis constante. Como uma axiomática que visa uma simplicidade que é difícil encontrar em vida. Tudo que é dito ao longo do disco, tudo que é tocado e nos faz sentir, encaminha-nos nessa direção, o caminho do pensamento como auto exegese.
Esse background filosófico é juntamente com o approach sonoro o que faz de A Vida é Simples, uma espécie de esfinge cada dia mais contemporânea. Em tempos onde o fervor, a gritaria, o êxtase conflituoso de redes sociais ditam o comportamento de boa parte do rap nacional, Gelleia deixou uma pequena garrafa sonora e poética no mar da produção histórica nacional para aqueles interessados em pensar contra. Não que não gostemos dos bate cabeça, dos refrões gritados, das palavras de ordem que impulsionam o ódio necessário contra o establishment, mas o sistema de coisas não caem apenas através do desespero ou da força descontrolada.
Aqui é como uma bússola rapper, a necessidade de equilibrar nossas visões e afetos, entender as convulsões que a indústria impulsiona no público como algo passageiro. As “Mudanças” (prod. Tiago Miotto)” sempre ocorrem, não que seja fácil enfrentá-las mas sem sabedoria diante daquilo que nos atinge e do que almejamos, é impossível resistir. A epicurista preta, “Gelada na Laje (prod. gelleia)” nos transmite em mais um beat gostosinho como a presença dos amigos em um sábado de sol, serenidade com um órgão em diálogo floreado com um baixo jamaicano da gema, onde o snare marca junto ao bumbo, um pulsação gostosa para o ataque final dos metais.
Conquistar essa tranquilidade não é fácil, sobretudo porque aqui não está embrulhado em senso comum. “A Cidade” (prod. Dr. Drumah)” traz uma veia mais explicitamente política porém dentro do seu ataque micropolítico que chama atenção para nós mesmo, o outro político como reflexo de nossas decisões e comportamentos. O fluxo de consciência é trabalhado no skit “Como Sempre (prod. DJ Soares)” sobre as dúvidas que obviamente ocorrem em quem pensa, naqueles que mensuram, julgam seu próprio proceder.
A anti-palmitagem não panfletária é o tema da bonita Cabelo Natural (prod. Dr, Drumah), o amor negro rimado com excelência pela dupla Gelleia e B.V-IN4, onde os dois MC’s tecem loas as mulheres negras. O cultivo do silêncio é a condição para que o som e o pensamento surjam com a força presente nas 14 irrepreensíveis faixas de A Vida é Simples. É certamente o que o faz “Ir Além” e sobreviver com uma duração tão impactante em quem o ouvir. Emergir neste trabalho tem sido uma experiência que certamente vai balizar minha visão do hip-hop de agora em diante.
Cala-me fundo pois é como encontrar um amigo à distância, vindo de outro amigo o que me faz pensar no quanto realmente a Vida é Simples, pois pequenos gestos e decisões nos colocam no caminho real daquilo que cultivamos. A força da certeza do que nos faz bem quando chegada de modo consciente nos apresenta este tipo de trabalho, nos leva a transcender as trivialidades do cotidiano, no sentido de reconhecê-las pelo prazer estético que estas experiências comuns guardam.
Isso fica mais concreto ainda na verdadeira entrevista simulada que compõem a última faixa do disco feita pela Michele Fernandes; E aí no final Gelleia não se dando por satisfeito mete um bônus track que me encaminha para ouvir os Copa 7 e toda a rapa que ele cita. São aulas o seu disco de estreia e infelizmente primeiro e único. Aqui estamos diante de um mestre que precisa ser mais conhecido por quem supostamente gosta de rap, de música, de uma negritude outra, equilibrando nossas batalhas.
Obrigado meu mano!
-Gelleia e a sua aula magistral em A Vida é Simples (2012) completa 10 anos!
Por Danilo Cruz