De norte a sul do país uma série de artistas vem através do rap underground ajudando a nutrir a cultura Hip-Hop, você os conhece?
O advento da internet dificulta hoje estabelecermos como antes o que é underground e o que é mainstream dentro do rap nacional. Mesmo se tomarmos a questão estética como parâmetro, a quebra de mediação entre artistas, selos e público, podem gerar falsas impressões sobre o que está ou não no underground, e mesmo sobre o que é e o que não é underground. É um tanto óbvio que existe o mainstream, o midstream e o underground enquanto categorias de visibilidade, porém se tentarmos ir além e pensarmos na perspectiva artística como critério que define o que separa o mainstream do underground, a coisa fica um tanto nebulosa.
No atual mercado do rap nacional, trabalhos diversos em termos de construção sonora e poética ocupam posição no mainstream, de Djonga e Baco à Matuê e Orochi, podemos estabelecer muitas diferenças musicais e temáticas. Da mesma sorte, entre os artistas que ocupam as posições do midstream, que ganham prêmios e que estão nas listas de melhores do ano, vão de nomes como BrisaFlow, Tássia Reis, Glória Groove até Don L e nILL por exemplo. O que denota uma saúde interessante para o cenário artístico musical do rap nacional como um todo.
Em termos de visibilidade podemos citar como exemplos da dificuldade de estabelecer essa distinção nomes como os do cearense Edgar, do gaúcho Zudizilla, os baianos d’OQuadro, do paulista Yung Buda ou do manauara Victor Xamã, por exemplo. São artistas diversos entre si, que não apelam para fórmulas fáceis, em certos casos beirando o experimentalismo e transitando por outras sonoridades. E no entanto, já possuem uma certa visibilidade nacional transitando do underground ao mainstream, tocando em eventos de grande e médio porte. Ou seja, em um primeiro momento, não é tão simples assim conseguirmos distinguir o que é o que não é, se não nos atentarmos ou pelo menos buscarmos definir o que significa ser underground.
Há também em nosso país uma ideia estúpida de que o é mainstream é necessariamente ruim, preguiçoso ou repetitivo, enquanto aquilo que se considera underground seria intrinsecamente bom. Certamente essa dicotomia valorativa não se sustenta, pois teríamos que colocar artistas como Racionais MC’s, MV Bill, Marcelo D2 ou mesmo um BK como artistas que não possuem qualidade.
Nada impede um artista, ou pelo menos nada deveria lhe impedir, independente da posição que o mesmo ocupe dentro do mercado musical, de que seus trabalhos sejam desafiadores, inventivos. Basta olhar para a cena americana do norte, esse paraíso que muitos aqui no Brasil miram e buscam decalcar. O último álbum do Kendrick Lamar não deve nada em termos de iconoclastia e invenção ao mais underground dos MC’s de lá, o que não ocorre aqui em nosso país ainda. Pois por aqui é o underground que muitas vezes alimenta inventivamente o mainstream. Da mesma sorte, o underground norte-americano é um espaço mais saudável pois existe um mercado auto sustentável para tais artistas, o que aqui está muito longe de ocorrer. Por lá, é possível pela força de uma cultura que lhes permite que artistas undergrounds consigam viver minimamente de música, mesmo sem os milhões de views e seguidores em redes sociais. Esta realidade por aqui parece distante.
Em nosso país é difícil ver artistas fazendo turnês nacionais, mesmo tendo um grande reconhecimento. Pois em nosso país, a indústria cultural precisa esvaziar o conteúdo artístico e político de todo e qualquer artista (com raras exceções) do mainstream do rap nacional. A regra é clara, ou se alia à MPB e se estabelece uma relação saudável com a classe média branca e universitária, ou repete-se fórmulas exaustivamente em diálogo com a massa, o meio termo entre esses dois universos ainda é semi-desconhecido por nós. Quem está no meio do caminho pena, e apesar de conseguir reconhecimento entre o público e a mídia do rap nacional, não consegue furar a bolha.
Talvez isso se deva ao fato de que apesar do pioneirismo de muitos, a exemplo do Bocada Forte que se mantém até hoje como um veículo fundamental da cultura, nunca tivemos uma imprensa profissional do rap nacional. As iniciativas que tiveram alcance nacional e que conseguiram cobrir mais ou menos todo o território nacional não duraram muito e ainda assim estavam presas ao eixo sócio econômico do país, a exemplo da revista Rap Nacional. Sem contar que o jornalismo cultural branco levou anos para reconhecer que o rap era música, a penúria intelectual provinda do racismo destes só abriram espaço para o rap depois que o mesmo conquistou o país através de décadas de esforço de ativistas da cultura hip-hop.
Mas então, o que seria o underground quando se fala de rap nacional?
Os sites de música “alternativa” da branquitude nacional hoje, valorizam artistas que experimentam novas sonoridades, porém o fazem dentro da perspectiva mesma do que acima citamos: esvaziam o rap em prol de um vício antigo. O “mix” de colonialismo e imperialismo faz com que se desmantele aquilo mesmo que é mais próprio da música rap, a cultura do sample. Ora, se novamente observarmos o desenvolvimento histórico do rap norte americano veremos como cada região do país absorveu ao seu próprio modo o rap através da cultura do sample, gerando assim a riqueza intrínseca desta música e levando-a a se proliferar tornando as singularidades algo universal.
Em nosso país, a mistura de racismo e colonialismo junto a uma visão moldada pelo imperialismo americano que aqui se traveste de xenofobia fez com que até hoje os sotaques regionais sejam um empecilho para a aceitação de artistas pelo eixo. Enquanto o sul profundo absorveu ao seu modo e gerou vertentes fundamentais do rap americano como o Dirty Sound, o Crunk e hoje o Trap, se aferrando às características mais próprias da tradição musical sulista. No Brasil um artista como Marcola Bituca, que propõe misturas com o samba-reggae e com o pagodão por exemplo, passa batido pela crítica. Criadores da altura de um Calibre beats que desenvolveu as bases para o que hoje chamam trap pagodão, permanece amplamente desconhecido da imensa maioria.
Quando um artista do rap nacional busca outros vetores de invenção é elogiado pela crítica especializada e pela mídia dos boys como alguém que está indo além do rap, como se isso fosse possível e mesmo desejável. A assinatura musical de produtores e beatmakers é pouco reconhecida e ainda hoje debate-se se os mesmos são músicos ou não. É a história se repetindo como piada e só quem tem perdido com isso é a cultura hip-hop enquanto movimento político, pois no nosso país é preciso que se dilua a cultura negra para que ela seja consumida pela classe média branca.
É nesse contexto que se faz necessário buscar o sentido do que é ou não underground no rap nacional hoje. Que essas manifestações existem isso nos é evidente, porém diante de uma conjuntura onde a velocidade, o ruído e a imensa quantidade de informações e produções são em geral mal digeridas, alguns entraves ocorrem. Cravar uma única resposta é difícil, mas se tomarmos únicamente os aspectos estéticos e os hábitos de consumo musical da massa, veremos que alguns artistas fazem trabalhos que nadam contra a corrente.
São grupos, beatmakers e MC’s que produzem seus próprios fluxos criativos, buscando alianças e influências que fogem do que está dado e aí cavam sua trincheira artística, independente do que estão alcançando em termos de visibilidade ou de grana. Pense-se por exemplo em nomes como Parteum e Matéria Prima, com carreiras de décadas e imensa importância histórica mas que seguem mantendo uma independência criativa que os “impede” de sair do underground.
Há também, uma completa inexistência de um cânone que seja nacional quando se trata de rap, algo até hoje mantido pelas próprias mídias de rap que tem cada vez mais se moldado pelos hábitos de consumo propostos pela indústria, com raros exemplos de pesquisa e real independência editorial. Ora, a inexistência de uma tradição solidificada e unificadora em termos de país é fundamental para retroalimentar o que é produzido atualmente.
A cada dia mais vemos as relações entre assessoria de imprensa se imiscuindo ou vemos também a emergência dos “jornalistas e colunistas amigos dos amigos”, os brothers que fortalecem as caminhadas e essas bobagens que impedem uma produção intelectual honesta, ampla e inclusiva. Não existe propriamente uma história do rap nacional consolidada, a não ser que se pense que o rap nacional só existe em SP e RJ e mesmo assim na capital. Pense-se por exemplo, quantos jornalistas do rap nacional já ouviram falar ou ouviram e sabem da importância de grupos e artistas como Cabanos, Agregados, Inquilinus, Afrogueto, Afronto, Duke1Soldado, Jackson, Yabas, pra ficarmos em poucos nomes?
Esse desconhecimento, essa desvalorização histórica ou a própria inexistência da história do rap nacional produziu e segue sendo cotidianamente reificada pelos influencers do rap nacional, o que não nos permite romper com os hábitos acima mencionados. Algo que também se traduz nos prêmios das mídias independentes e especializadas que trabalham assim como a indústria cultural em nosso país, através de cotas e de uma visão mercadológica que se rendida. Apontar essas questões não significa desvalorizar o importante trabalho feito por essas mídias e muito menos tentar destruir a incipiente vitrine que eles criam, mas antes buscar que essa vitrine e esse trabalho se ampliem rompendo com os ditames daqueles que eles pretensamente parecem criticar.
No entanto, o underground permanece, pois é contra esse status quo que o mesmo se erige. Nos últimos anos excelentes trabalhos têm sido lançados dentro desta seara e enumerá-los aqui seria anti produtivo. Apesar da pouquíssima visibilidade, esses trabalhos lançados vem revigorando a forte tradição do rap underground nacional, mostrando-nos os lençóis freáticos do rap underground, de norte a sul do país. São trabalhos que fincaram sua bandeira na invenção, na luta política do Hip-Hop e em modos de rimar e produzir que não vão de embalo na última moda. São artistas que orgulhosamente se colocam à margem do pensamento e do gosto geral produzido pelos mecanismos da indústria cultural acima tratados.
Estes e estas tem estreitado laços, buscado outras formas de produção e divulgação e sobretudo feito uma arte que não abre mão de ser vista como rap, que não quer ser descolado para os boys, que buscam “sujar e confundir”, batendo de frente com os tilelês e com os pautadores de internet, a rua se conhece. São nomes que entendem a cultura hip-hop como algo que funciona enquanto base para a produção artística mas também como luta política, sendo assim esses artistas buscam com que os seus rap não sejam apenas rimas e batidas. Há uma independência nos temas, nas sonoridades, uma busca por um apuro maior nos flow, nas líricas, nas produções etc… Ora, essas escolhas que não buscam se adequar ao que está dado, conseguem esteticamente uma posição politicamente aguerrida, realmente contra cultural.
No entanto, essas produções parecem não entrar no game e ao mesmo tempo não possuem um game próprio. Se o game diz respeito ao rap é preciso que essas produções alcancem o público que possamos criar um ambiente e um público para os artistas do underground, algo inexistente em nosso país. Ora, apenas dentro de uma dialética que vise contrapor a verticalização que a indústria cultural impõe, será possível construir uma perspectiva mais horizontal de consumo.
Houve um tempo onde MC’s por exemplo, vestiam e apoiavam as marcas da cultura Hip-Hop e assim exemplos como a 1daSul e a Laboratório Fantasma vivem. Hoje estamos dentro dessa lógica liberal branca instalada na cabeça de alguns MC’s, eles imploram para comprar Lacoste. Esse é um dado da realidade que talvez demonstre a necessidade dessa problematização ao qual o texto se dirige. Ora, a liberdade de consumo só é liberdade realmente se houver possibilidade de escolha, Arte Bastarda, Banal e SVM são marcas que se voltam à cultura hip-hop, você as conhece?
Da mesma sorte, os artistas undergrounds precisam buscar contato profissional com as mídias, entendendo que a estas. faltam braços, talvez não tenhamos nem 100 pessoas no país inteiro dedicadas a escrever e fazer a manutenção dos sites e redes sociais dos mesmos. Se há falta de pesquisa é obviamente porque também há uma falta de profissionais dedicados a trabalhar de fato nisso. E muitas vezes por isso, algumas mídias buscam a solução mais fácil, reproduzir releases e falar o assunto do momento para que tenham alcance nas redes, dar atenção a quem gera mais cliques. É um círculo vicioso, quantas marcas que lucram com o rap, quantos selos que lucram com o rap investem na mídia especializada? Os problemas são grandes, e não cabem em apenas um artigo.
Por enquanto, fica aí este questionamento, pois é sobre isso e tudo bem. Aqui no Oganpazan o nosso lema é “rarificar o vulgo e vulgarizar o raro”, seguimos trabalhando.
-Fluxos subterrâneos que alimentam o Hip-Hop também vem do Rap Nacional Underground!
Por Danilo Cruz