Material de Estudo do MC mineiro Matéria Prima é um horizonte fantástico para se compreender a obra desse monstro do Hip-Hop Nacional
“Amigo, eu não me acho por isso eu não me perco”
Lançado há oito anos como seu EP de estréia, Material de Estudo (2012), ouvido atentamente hoje, se transforma numa porta de entrada excelente para a imensa obra – qualidade e tamanho – do MC mineiro Matéria Prima. Um dos maiores nomes do underground nacional, seus trabalhos estão localizados desde o pioneiro Quinto Andar (coletivo carioca pioneiro do underground nacional), passando pelo grupo Subsolo, pela banda Zimun e chegando ao projeto de excelência: Tetriz. Uma existência que ao longo dos últimos 20 anos construiu obras atemporais, numa das atuações mais sólidas do cenário nacional.
Desta forma, abri aqui no meu universo particular a temporada: Estudando Matéria Prima, onde vou buscar trabalhos sobre os quais nunca escrevi. E nada melhor do que começar do começo, sendo assim Material de Estudo (2012) nos dá um excelente ensejo para dixavarmos uma obra inesgotável e prepararmos o leitor para o lançamento do novo álbum que tem cobertura do Oganpazan.
Um primeiro dado importante de notarmos ao longo dos trabalhos solo do MC mineiro é a grandiosa qualidade dos beatmakers com quem ele produz. Em Material de Estudo não é diferente, e ao longo das 9 faixas que compõe esse EP que hoje poderia ser tranquilamente lançado como um disco, temos Gurila Mangani, Nave, Cabes, Renan Samam e um jovem Coyote Beats nas produças. O disquinho foi construíndo seguindo os beats, ou seja, a poesia se adequando a um ritmo pronto.
Material de Estudo abre a linha de uma poesia que Matéria Prima começa aqui a desenvolver de modo mais sólido pois solo, e que se constitui através de observações com um amplo horizonte de temas. Atravessando com sua poesia diversos aspectos do social e do afetivo, do histórico e do político, da subjetividade e do urbano.
“De dia instala o caos de noite outra realidade, o perigo está ali escapar dele é pra quem sabe, ou pra quem tem uma conexão melhor, com aquele que torna tudo maior”
Poesia fruto – como está no título do EP – de um estudo atento da vivência urbana, de suas contradições, alegrias e crueldades que são retrabalhadas pela mente desse artista negro, de excelência. Tudo isso e muito mais emparelhado numa rqueza de flows e métricas intricando razão e emoção, humor, ironia, vivências e criticidade de um modo bastante singular!
Um outro aspecto fundamental presente em Material de Estudo, é que o material auto-referido no título do EP está totalmente conectado a si mesmo e ao coletivo. Uma extração poética feita por Matéria Prima desse momento de sua vida e do contexto político e social daquela altura. Uma vida em movimento, começando uma carreira solo enfrentando o desemprego, a paternidade e ao mesmo tempo buscando equilibrar-se na vida artística de modo independente.
A pujança que esse disco contém – apesar de ser um EP – é também fruto do esforço que esse MC dispende e que se mantém até hoje, para fazer arte. Nessa época, Matéria Prima fazia diversos bicos, trabalhava numa loja de grafite chamada Detono, na famosa praça Sete em BH, além de garçom, barman, trampos em eventos. Juntos com os bicos, vinham os shows, mas a luta para sobreviver e manter o pivete recém nascido era a mais pura correria.
A banda Zimun da qual fazia parte então, agitava as noites belorizontinas, apresentando uma mistura de referências do jazz, dub e hip hop com muito groove, mas como sabemos o trampo com música independente não gera retorno financeiro facilmente. Restando ao MC seguir na batalha, como dito no início do EP (“Lá Vou Eu”), que não era batalha de rimas, porém de sobrevivência e de seguir fazendo arte. Aiás, não conseguir qualquer disputa ao longo de sua carreira, fazendo do Matéria Prima um dos MC’s que talvez utilize sua katana sempre para cortar os problemas não outros rappers.
O apelo autobiográfico pode ser percebido em diversos momentos ao longo das faixas, seja pela força das impressões produzidas através das imagens poéticas, ou mesmo pelas colocações feitas em primeira pessoa. No entanto, como é muito comum e muito produtivo, há momentos em que Matéria Prima faz projeções daquilo que buscava, algo muito interessante de ser percebido em faixas como a excelente “Descansar”.
“Então relaxa, enquanto cada palavra se encaixa e o nível de pressão se abaixa, sai da internet cai em outra rede, ouvindo Sade e matando sua sede”
Muito antes da emergência de debates sobre os imensos malefícios causados pelas redes sociais, Matéria Prima já cantava uma pedra importante sobre a necessidade de uma solitude silenciosa. Ao mesmo tempo, podemos sentir aqui a projeção de uma obra que então se inicia e que ao longo dos últimos anos tem construído com a sabedoria dos grandes pedreiros, uma bonita e contudente obra poética, palavra por palavra.
Outro retrato de viés autobiográfico está em “Paraísos Artificiais” num beat do Cabes que utilizou um sample de guitarras psicodélicas acentuando lisergicamente as linhas poéticas que discorrem sobre as experimentações com substâncias alucinógenas. Longe de quaisquer moralizações bobas ou de reterritorializações abjetas, tomando-se como objeto dessa parcela do Material de Estudo, Matéria Prima produz uma auto exegese poética, bonita, sincera e sobretudo instrutiva. Esse ethos cultivado pelo artista pode ser percebido ao longo de seus trabalhos como umtraço distintivo.
“Depois ficou chato e chamava os caras para ver o raio que não brilhava na rua escura”
Em “Alucinações” são os absurdos políticos e sociais que batem onda nas linhas do MC, um storytelling surrealista e bem humorado num beat do Gurila Mangani. Nessa track, Matéria Prima faz citações direatas a Salvador Dali e ao cineasta João Batista de Andrade e o clássico O Homem Que Virou Suco. A linha de uma poética mais politica, se fixa em “Protesto” (prod. Renan Samam) através de uma crônica firme sobre as opressões sofridas pela classe trabalhadora em nosso país e o sempre adiado sonho de viver num país menos desigual.
O disco foi gravado nos estúdios Minueto (BH) e Track Cheio (CWB) e contou com a mix e a master do Ricardo Cabes. Curiosamente, o beat do Nave presente no EP, é fruto de um rolê do Matéria Prima por Curitiba com o Subsolo (discidência do Quinto Andar). A faixa “Vida” que conta com o beat do curitibano, é outra dos grandes momentos da bolachinha. É daqueles boombap’s que marcam quem ouve, e como prometido “ilumina o caminho de quem escuta”, longe de propor fórmulas fáceis.
Matéria Prima é um dos gandes nomes do hip-hop nacional exatamente porque ao ser muito inspirado pelo underground americano, ele consegue amalgamar as complexidades poéticas e rechea-las de ideias muito fortes. É daqueles MC’s que notamos a qualidade técnica na mesma proporção em que somos tocados pelo sentido das rimas. A riqueza de flows, o domínio e diversidade de métricas, vem junto ao forte conteúdo autobiográfico, às observações atentas da realidade e produzindo nesse escopo fortes criticas às questões raciais e de classe.
É um enorme prazer para os admiradores do hip-hop que é em si mesmo múltiplo de perspectivas dentro do rap nacional, conhecer mais a fundo o trabalho do Matéria Prima. É também, interessante notar como esse EP de estréia solo se tornou um obra de arte atemporal, as faixas deslizam pelo player com suavidade. Inspirando-nos ideias, nos enriquecendo com percepções singulares, com uma sonoridade que cadencia o pensamento e nos eleva, nos ilumina o caminho! Escutem…
-Estudando Matéria Prima – Material de Estudo (2012)
Por Danilo Cruz