O Duo Almare combina sensibilidade e técnica para oferecer a seus ouvintes uma experiência estética arrebatadora.
É preciso destruir o gosto musical massificado
No ensaio A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas, os autores Theodor Adorno e Max Horkheimer mostram a forma pela qual o chamado capitalismo tardio se apropria da produção cultural, transformando-a em mera mercadoria.
Concomitante a este processo se dá a formação do público que irá consumir as mercadorias culturais. Nesse contexto, precisamos partir do pressuposto que a arte é uma mercadoria, seu propósito é ser consumida e não apreciada, por exemplo.
Portanto, a arte não deve causar estranheza, não deve exigir do indivíduo reflexão, interpretação, a arte mercantilizada pressupõe a passividade do consumidor. Isso só é alcançado destituindo da arte seu valor estético.
Por esse motivo, na indústria fonográfica, por exemplo, são investidos volumes astronômicos de dinheiro para garantir que um produto musical se estabeleça no mercado como objeto de consumo, fazendo com que tudo diferente dele seja repelido pelos consumidores.
As pessoas acreditam que gostam de sertanejo porque identificam qualidades naquela música. Porém, elas gostam daquele segmento musical porque ele está presente nas trilhas das novelas, das séries, no set dos djs nas boates, nas festas populares, nas rádios, na prioridade dos algoritmos das redes sociais e das plataformas de streaming. Isso ocorre porque empresários deste segmento musical pagam montantes volumosos de dinheiro para que a música sertaneja seja veiculada em todos estes espaços.
Assim, a percepção das pessoas é afetada, sem que percebam começam a “gostar” daquele tipo de música. Dessa forma o gosto musical é massificado. Para que haja uma diversidade musical no escopo dos gosto das pessoas pela música, faz-se necessário combater essa massificação do gosto.
Jazz na Varanda, reconstruindo o gosto musical ponte-novense
Ocupei o texto dessa reflexão até aqui, porque o projeto Jazz na Varanda promovido pela escola de música Percepção Musical, sediada na cidade de Ponte Nova, na Zona da Mata mineira, cumpre um papel importante: o de buscar demolir o gosto musical massificado.
Significa fazer com que as pessoas deixem de exigir do músico o que ele deve tocar, como ocorre nos barzinhos, quando o público ou a casa contratante, impõem ao músico aquilo que ele deve tocar. Quase sempre ó hit mais recente da dupla sertaneja do momento.
O Jazz na Varanda escolhe suas atrações a partir de uma curadoria dos professores da Percepção Musical, em especial Arthur Vinih, Davi Primavera e Wesley Costa Melo. Ou seja, os caras param para conversar e analisar quais seriam os artistas que contemplariam os intuitos do projeto. Que trariam ao público uma experiência musical fora do lugar comum das rádios, plataformas de streaming e barzinhos da cidade.
Nesse sentido, a Percepção Musical cumpre o papel pedagógico de educar o público para o novo, para aquilo que ultrapassa os limites de sua zona de conforto enquanto apreciador musical. E é agora que chegamos na apresentação do Duo Almare.
Duo Almare no Jazz na Varanda
O diferencial da Percepção Musical está no fato dela ser mais que uma instituição focada em oferecer aulas dos mais variados instrumentos musicais. Ela se destaca pela preocupação em fomentar a cultura em Ponte Nova. O Jazz na Varanda, que ocorre na varanda da casa onde a escola funciona, faz desta, também um espaço de apresentação musical.
Para quem estuda música, poder assistir in loco grandes artistas se apresentarem, é estar diante de mais um instrumento de formação musical. Para fazer música é preciso saber apreciar, ouvir a música e as músicas.
Por isso a curadoria do projeto se preocupa em trazer grandes nomes como o mestre, que nos deixou a pouco tempo, Ian Guest, Elodie Bouny, Nelson Angelo, Gilvan de Oliveira, Carlos Valter, dentre tantos outros nomes.
Na última terça feira, dia 27 de dezembro, a Percepção Musical trouxe o Duo Almare. Fruto do encontro entre Minas e Paraíba, propiciado pelas interações por meio dos eventos realizados remotamente, durante o período de quarentena exigido pela pandemia da Covid 19, o duo combina sensibilidade com apuro e domínio técnico do violão e da voz. O violão do paraibano Jaelson Farias e a voz da mineira Adê Ribeiro.
O Duo Almare nasceu em Viçosa, cidade vizinha a Ponte Nova, onde Jaelson e Adê iniciaram o processo de construção da identidade musical do duo. Conseguiram urdir uma trama a partir do que cada um tinha a oferecer musicalmente e o resultado é uma sonoridade extremamente expressiva, sensível e intensa.
O virtuosismo flagrante de Jaelson ao violão é usado pelo músico com propósitos claros de criar tensões e expressões ao longo da execução de cada música. Mostra haver a sensibilidade criativa de quem sabe usar todos os recursos técnicos desenvolvidos ao longo de sua carreira musical. Foge, assim, do cansativo virtuosismo malabarista, infelizmente o comum entre instrumentistas, senhores de seus instrumentos, porém carentes de sensibilidade e criatividade imaginativa.
Aplica-se o mesmo ao canto de Adê, firme e múltiplo, articulado, expressivo, garantindo a dinâmica certa para cada uma das músicas, para cada um dos momentos, conseguindo, assim, transmitir ao público as emoções e sensações que ela própria experimenta ao produzir seu canto.
É nesse sentido que o som produzido pelo Duo Almare cria uma estética dos afetos. Porque existe ali uma vivência concreta na qual o público é enredado e se torna parte da experiência oferecida pela música. Isso só é possível porque existe o entrosamento entre cada uma das partes que compõem o duo, que resulta na comunhão entre ambos, transformando o duo em uno.
Esta experiência estética propiciada pelo Duo Almare é dos afetos, porque a música que fazem se conecta a cada um de nós diante dela através das nossas emoções. E essa conexão é tão intensa que durante a apresentação deixamos a razão de lado e não nos preocupamos em entender o que ouvimos. Apenas experenciamos as sensações e emoções que cada nota faz brotar em cada um de nós.
Como ponte-novense me senti extremamente feliz naquela noite em que na varanda daquela casa, que abriga uma instituição que é mais que uma escola, pude ouvir uma música tão rara e preciosa, mas também forte o suficiente para romper as barreiras do gosto massificado que nos assombra.
Abaixo o registro da performance do Duo Almare do afro samba Canto de Xangô, parceria entre Vinicius de Moraes e Baden Powell, durante o show no Jazz da Varanda na escola Percepção Musical.
Como o Duo Almare ainda é um projeto recente ainda não temos trabalhos lançados pelo duo, Contudo, Adê Ribeiro tem o excelente álbum Aconchego lançado em 2019, enquanto Jaelson Farias tem o Íntimo Violão lançado este ano. Deixaremos abaixo os players dos álbuns para que vocês possam ouvir e conhecer o trabalho solo de cada uma das partes do Duo Almare. .