Doug Carn é um dos gigantes do Jazz que ainda caminha sobre a terra

Doug Carn é uma figura fundamental da música negra. Uma verdadeira lenda, sua abordagem única nas teclas foi lembrada pela Jazz Is Dead.

Um dos meus grandes passatempos é relembrar alguns dos artistas que realmente me deixaram estupefato depois que ousei apertar play em certas gravações. Recentemente voltei a escutar a discografia do arranjador e multi instrumentista americano, Doug Carn e outra vez o sentimento de arrebatamento foi marcante.

Pesquisando sobre sua carreira e discografia, é impressionante como apesar do organista/pianista/tecladista ter gravado discos realmente primordiais para o desenvolvimente da música negra – principalmente nos anos 70 – sua perícia nas teclas é poquíssimo citada nos anos 2000, se comparado a outros mestres como Roy Ayers, por exemplo. 

Doug Carn é responsável por 5 discos históricos, sendo 4 deles lançados pela Black Jazz Records e uma gema até mais obscura que os discos gravados para o selo do pianista Gene Russell e o percussionista Dick Schory, dessa vez liberada via Tablighi Records. Entre 1971 e 1977, Doug gravou alguns dos LP’s mais desafiadores da música norte americana, não só em termos estéticos – com fusões entre o groove (Funk/Soul/Disco) e a música modal – mas também com relação as novas possibilidades tecnológicas que trouxeram os sintetizadores e as gravações quadrifônicas, conhecidas hoje em dia como Sorround.

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Os discos essencias de Doug Carn nos anos 70:

  • “Infant Eyes” (1971)
  • “Spirit Of The New Land” (1972)
  • “Revelantion” (1973)
  • “Adam’s Apple” (1974)
  • “Al Rahman! Cry of the Floridian Tropic Son” (1977 – liberado sob o nome de Abdul Rahim Ibrahim, após sua conversão ao islamismo)

Basicamente, essa tecnologia possibilitava gravações por 4 canais, recriando a experiência do show ao vivo, com requintes tridimensionais. Traduzindo em miúdos, essa novidade possibilitou que Doug criasse sua própria identidade sonora, registrando todos os discos citados com uma abordagem que parecia que o norte americano estava sendo acompanhado por uma orquestra e não por uma grupo compacto, como era a realidade das gravações.

Com um conhecimento bastante profundo sobre arranjos, experiência tocando metais – vale lembrar que o músico (natural de Flórida) estudou oboé na universidade de Jacksonville no final da década de 70 – Doug também foi professor de piano e improvisação na mesma instituição. Um grande sideman, sua astúcia nas teclas pretas pode ser admiradas em discos de artistas como Earth, Wind & Fire, Dr. Lonnie Smith e Lou Donaldson, por exemplo.

Outro ponto importante, digno de ser mencionado, é que apesar de estar separado da cantora Jean Carne (ela coloucou o “E” no sobrenome depois da separação que aconteceu na metade dos anos 70), eles ainda tocam juntos, recriando uma pouco da magia que a dupla eternizou em 3 magníficos projetos de estúdio.

Gosto de citar a Jean, pois sua participação nos discos “Infant Eyes” (1971), “Spirit Of The New Land” (1972) e “Revelation” (1973) é crucial. Sem ela os discos não causariam o mesmo impacto. Apesar de ter migrado para o Pop/R&B logo depois de se separar de Doug, a cantora (de raríssimo alcance vocal), atingiu o sucesso com discos que apesar de radiofônicos, não diluíram o brio técnico de sua voz.

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Mas infelizmente, apesar de todos os discos citados, Doug acabou ficando a margem. O movimento que sua ex esposa fez acaba mostrando um pouco disso, pois foi cantando uma música mais comercial que ela conseguiu pagar as contas.

Escute os discos mencionados e conclua como é quase inacreditável que nenhum grande selo da época, como o Blue Note e IMPULSE!, por exemplo, lançou esses trabalhos. Vale lembrar que Doug foi rejeitado por ambos na época. O selo Black Jazz Records foi vital para materializar a música de Doug & Jean Carn.

Os anos 80 viram o músico gravar bem menos, se comparado a década anterior. Na verdade, sua música só voltou a superfície graças ao movimento Acid Jazz que injetou novo ânimo na música dançante, principalmente na Inglaterra. Uma nova geração de músicos e DJ’s – catapultados pela cultura Hip-Hop – redescobriram a música desses discos e foi exatamente por isso que o norte americano voltou a lançar material inédito nos anos 90 e começo dos anos 2000.

Recentemente os discos da Black Jazz foram relançados por selos como o “Real Gone Music” e o resultado é um renovado interesse na arte de uma das maiores lendas do Jazz. Todo esse reconhecimento – ainda que tardio – com certeza foi fundamental para as gravações mais recentes do músico, principalmente o seu disco via Jazz Is Dead, lançado como o quinto projeto da série, em dezembro de 2020.

Um dos trabalhos mais coesos de toda a série até aqui, o disco de Doug Carn é um dos mais longos (junto com o trampo do Azymuth) e a música que sai dos falantes passa longe de recriar os trabalhos da Black Jazz. Organistas como ele, Dr. Lonnie Smith e Jimmy Smith, por exemplo, são associados a um som muito específico do Hammond. Esse disco mostra a importância de ressignificar a tradição para as futuras gerações.

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Track List:
“Dimensions”
“Autumn Leaves”
“Processions”
“Windfall”
“Down Deep”
“Desert Rain”
“Freedom At Sunset”
“Underwater”
“Lions Walk”
“Nunca Un Mulandro”
“Desires”

Doug Carn & Jazz Is Dead

Esse long play mostra o que o multi instrumentista ainda é capaz de fazer com horas de estúdio. Depois do fim do disco é praticamente inviável não pensar na quantidade de música que ele podia ter lançado, caso tivesse apoio de um selo grande.

É importante relembrar a importância do estúdio Linear Labs para o sucesso de mais uma empreitada da dupla Ali Shaheed e Adrian Younge.  É relevante falar sobre o estúdio, pois seus instrumentos vintages são responsáveis pela sonoridade e essa versatilidade de timbres e abordagens é um grande traço da música de Doug Carn, junto de seus desdobramentos milimétricos, particularmente nos arranjos de metais.

E dessa vez é particularmente praseroso falar de sua música no presente. O tempo de todos os temas que recheam essa bolacha é urgente e é agora. A forma como a arquitetura musical de “Meditations” toma conta do ambiente e estrutura uma dinâmica onde a sessão rítmica segura o groove e os metai e as teclas se empoderam do canvas sonoro parecia poesia em movimento.

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A maneira como os elementos contracenam, hora no primeiro plano, hora no segundo também é digna de nota. O pulso da bateria é o segredo pra manter a pungência no tema. O arranjo de metais nessa faixa é digno de escutar a track no repeat. Entre grooves tortos como em “Autumn Leaves” e irresistíveis baladas – com o órgão uivante em “Windfall”, Doug conduz os ouvidos do ouvinte no instrumental com o feeling de sempre.

As harmonias eternizam um claro momento de inspiração. Nesse cenário, faixas como “Downdeep” enobrecem a sensibilidade do compositor. A maneira como ele pensa no papel dos instrumentos de sopro nas propostas é sempre surpreendente. “Desert Rain” enaltece essa habilidade.

A abordagem para construir universos únicos em todas as passagens é dona de um lirismo inspirador. A forma como Doug usa o espaço no seu som também é uma característica importante. Os seus grooves respiram. Escute “Freedom At Sunset” e perceba essa oxigenação contínua. É o molho que possibilita propostas intrincadas como em “Underwater” e up tempo – como acontece na faixa “Lion’s Walk” – que ainda aparece com o luxuoso saxofone de Gary Bartz

“Nunca Un Mulandro” é o puro creme da América Latina e mostra o que aconteceria caso o Doug estivesse na seara do Latin Jazz. É compreensível observar esse movimento, até por que, depois de gravar com o João Donato, Marcos Valle e Azymuth, seria até um sacrilégio caso o Adrian Ayounge e o Ali não dessem uma experimentada na cozinha.

Quando o disco termina, após a soturna jam de “Desires”, é difícil não pensar em como Doug parece ter todas as respostas. Um dos grandes momentos da série JID, esse disco mostra a força motriz que é a música de Doug Carn ou Abdul Rahim Ibrahim, para os islâmicos.

 

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