Primeiro álbum do MC baiano DNGUNI é recheado de linhas venenosas na pegada do drill BA, e já chegou com clipe do single Cascavel!
O disco de DNGUNI chegou ontem às plataformas digitais, Cascavel (2021) é a estréia de um artista das ruas vivendo os corres e a cultura hip hop com muita intensidade e bastante verdade. Este álbum de estreia do MC baiano, que tem apenas pouco mais de 2 anos na cena, foi precedido por duas mixtapes DNGUNI (2019) e Exôdo (2020) e diversos audiovisuais muito bem dirigidos por Ramires AX, tudo isso num curto espaço de tempo. A qualidade e a intensidade deste último trabalho e o nível técnico que o artista vem alcançando podem ser rastreados através dos trabalhos anteriores.
Em um cenário onde pipocam “trap stars” e “drill makers” se fazendo no banheiro, meninos rimando em cima de beats sem nenhuma vivência e masturbando clichês, a música e a concepção estética que DNGUNI vem desenvolvendo é realmente venenosa. Ao longo de suas faixas lançadas nas mixtapes e nos seus audiovisuais e singles, percebemos com tranquilidade um artista verdadeiro. Com uma forma própria de compor suas vivências, um vocabulário cru das ruas e das quebradas, filtrado por ideias pan-africanistas, que ao entrar na sintonia do trap e do drill se apropria e singulariza estes subgêneros.
Longe de cantar meritocracia, ostentação ou droga, às léguas de discurso misógino e ou homofóbico, distante de buscar elos com a branquitude, DNGUNI segue de perto a melhor tradição do drill e do trap BA. Empretecendo uma seara que muitas vezes recae numa visão esvaziada do que é ser negro no Brasil, e cheio de inconsistências do que significa vitória para o nosso povo, DNGUNI apresenta em suas músicas como a cultura hip hop se atualiza perfeitamente no trap, no drill oou em qualquer beat, É esse o veneno que o MC inocúla na jugular dos “falsos que estão nessa parada”.
Sabe-se das dificuldades de se profissionalizar no cenário da música independente e da luta que é para um artista preto e nordestino, alcançar visibilidade no cenário do rap nacional. Cenário que tem cada vez mais abraçado trabalhos medianos ou ruins, escanteando o que realmente de novo tem surgido, e o que de mais genuíno possuímos na cena. DGNUNi parece simplesmente ignorar todas essas dificuldades, e como recentemente comentou o seu conterrâneo Vandal:
“UH HOMIH VERDADERUH KIH MAH TRAMPAH NESSEH EZTADUH”
E é nessa pegada real das ruas, que Cascavel (2021) chega iniciando os trabalhos do artista que tem produzido um paiol em plena era pandêmica, impossibilitado como muitos de fazer shows. O disco foi lançado ontem, no dia 04/02 nas plataformas digitais e hoje já recebeu a companhia do primeiro single, em um audiovisual a mais do grande Ramires AX, da faixa título “Cascavel”.
Há uma ideia um tanto quanto estúpida de que a esperança é um sentimento, uma ideia capaz de melhorar a vida, quando na verdade esse sentimento assemelha-se muito mais há um grilhão, ou a um chiclete que pode ser estendido indefinidamente. Nesse sentido, a esperança se configura como a postergação infinita de quaisquer sofrimentos, sejam eles de ordem individual e ou coletiva. Em uma das linhas da faixa single do album, DNGUNI dispara: “Verdade em ondas sonoras, Esperança morta por Pandora” e continua: “as ovelhas esperam vitória, continuam dizendo oh glória/ pro estado a morte é vitória”. Sem precisar dar uma chuva, de modo sintético como só bons poetas são capazes, DNGUNI mata o mito da criação grego e o cristianismo.
Colocando a luta como princípio ético e político calcado em uma visão preta e pan-africana, há um combate intenso aqui a ideia de esperança (mito de Pandora) e a ideia de que a vida após a morte será a verdadeira vida de felicidade. Em favor da imanência presente em religiões de matriz africana, DNGUNI no audiovisual prospecta o bairro do Engenho Velho de Brotas no beat nervoso do beatmaker carioca Terra. Esse antigo Engenho que pertencia a senhores de escravos, e que hoje é um dos bairros mais efervescentes culturalmente da cidade mais preta fora da África. O drone aterrissa na favela do Bariri, no campo onde rolam os campeonatos da quebrada, com o artista numa pegada “No Face, No Case”, real drill BA!
Adentrando o universo lírico e existencial do rapper, o audiovisual é uma abertura e tanto de um álbum composto por 7 rajadas que configuram o trabalho mais sólido artística e tecnicamente do MC, por isso mesmo o mais adequado como estréia. Porém não se engane, não estamos diante de um mero efeito produzido por fogos de artifícios, a faixa seguinte “Crime” mais um pesado beat drill do OGMANSH4, sem conversa fiada que mata carambola. Longe de fazer como muitos punheteiros que se masturbam com as ideias de arma e crime, mas que não passam de um cosplay de bandido, as linhas DNGUNI informam com visão apurada como essa vida é ingrata. Indo de encontro a sedução que o crime produz aos nossos jovens, como a beleza do canto da sereia que enfeitiça para matar,
“ A família batiza nas águas do mundão/Eles batizam no Rio Jordão/ Meu povo sofreu colhendo algodão, lhe matei sem refrão/ Eu não falhei na missão, Hoje DNGUNI, eu morri Lampião””
Afastando-se também de ego trips e produzindo uma auto reflexão muito potente, em “Do Nada” DNGUNI passeia no beat do Coelho, denotando sua aparição no cenário, as relações entre o crime e o rap, as verdadeiras relações. As faixas de DNGUNI se confiram – e nessa faixa fica muito escuro – como o rap/cultura hip hop ainda é linha de fuga para a juventude negra. Porém, no processo deste artista ele arrasta nessa fuga uma visão da negritude consciente das mil dimensões do racismo, conscientes historicamente para empreender uma resistência combativa à ideia de democracia racial e miscigenação, por exemplo.
“Bateram no peito como se fosse de aço, odeio a trama e o laço, Salvador em festa tem balaço, acham lindo a adoção do Gagliasso, que não viu o choro do palhaço, sorrindo tirando estilhaço”
Um dos pontos altos do disco, a faixa “Darth Vader” bate em diversas questões e talvez a principal delas, a missão que homens pretos possuem de reconhecer, e assim se curar do auto ódio injetado pela branquitude – a bela das mulheres negras, sua dignidade e a busca pela construção de uma família preta. “ Eles querem um preto que vai pra o Orún com a Grazi Massafera/ meus ancestrais vão gritar não é ela/ Eu morrerei duas vezes, na alma na matéria”!
Com uma formação racial muito forte, as linhas de força que DNGUNI dispara uma atrás da outra, caminham também ao longo da sua recente e prolífica obra, por referencias à diversidade africana. Estabelecendo uma geografia intensa, que nesse disco por exemplo caminha poeticamente por Lesoto, África do Sul, Serra Leoa, Madagascar, Nigéria chegando em Uganda. Com uma produção do grande Dactes, a faixa fecha o ciclo de Cascavel, mas alerta para a caravana que segue, dentro desse deserto do real, que o MC povoa de referências e de posicionamentos de luta, visando o povo preto.
Com Cascavél (2021), DNGUNI firma de vez seu nome no cenário baiano e de lambuja como uma das figuras mais interessantes a trabalhar com a estética do trap e do drill, subvertendo os clichês e apresentando uma lírica preta até o tutano. Orgulhoso como preto e nordestino, ciente do papel da cultura hip-hop não apenas na sua vida, como também na história coletiva do povo negro em diaspora, o rapper faz uma estreia em disco muito potente.
Envenenar os processo de apropriação e esvaziamento do rap nacional cada vez mais transformado num circo pela indústria cultural, seja na absorção de artistas que se rendem a fórmulas desejada pelo público branco da classe média, seja na apresentação de grandes nomes no atual coliseu romano em voga no BBB, se configurando como uma rendição à mídia hegemônica. DNGUNI tá na rua botando fogo no Engenho Velho, desses e de quaisquer outros. .
-DNGUNI “Se não mata, aleja” – veneno nas linhas em Cascavel (2021)
Por Danilo Cruz