Sistemas & Danos, é o novo disco do MC sergipano Dartha que traz um trabalho de excelência e abre caminho para outros Alquimistas Solares!
Com Sistemas & Danos, Dartha lança seu primeiro álbum, composto por 8 faixas e trabalhando dentro da sonoridade do Trap e suas variações. O disco conta com a produção do meliante Apollo 808 e marca um ponto histórico da sua caminhada mas também do cenário do rap feito no menor estado da república federativa do Brasil. Como já escrevi em outros momentos, Sergipe é um estado pequeno em tamanho mas extremamente rico em cultura. O cenário do Rap aracajuano é prova disso.
Hoje, o rap sergipano vive o seu momento mais rico, revelando jovens valores, com uma cena diversa em expressões do rap e da cultura Hip-Hop. Reflexo do momento nacional de crescimento da Indústria Cultural que absorveu parte do rap nacional, e o diluiu, o momento histórico do Rap sergipano é de afirmações e reatualizações de nomes que foram fundamentais para o cenário local e certamente Dartha é um dos pilares, quando se trata de rap nordestino e sergipano.
-Leia nossa resenha do EP Taciturno do Dartha no site!
Oriundo do grupo Alquimia Solar, cedo fizeram parcerias com o antigo Beirando Teto de Salvador, representando naquele momento o sumo do que de melhor se fazia no rap underground no nordeste e no Brasil. Com o fim do grupo, ou o stand by das transmutações líricas e sonoras, Dartha partiu para a carreira solo e resolveu experimentar sua caneta e flow no Trap.
Em sua carreira solo, o MC Dartha, uma das figuras mais relevantes da história do rap feito em Sergipe, possui quatro EP’s. Com Monolítico – O Argonauta de 2017, ele abriu os trabalhos com um disquinho contendo 3 sons, de lírica intrincada, cheio de referências fora do senso comum, ali Dartha já nos chamava atenção pelas críticas e posições que assumia. E ao mesmo tempo por trazer uma sonoridade que rompia com as formas de produção pelas quais nós o conhecíamos, que era o boombap under.
Mas a sua forma de pensar o rap e a cultura Hip-Hop estava plenamente presente, a forma “Alquimista Solar”, de buscar a sujeira na lírica, de uma espiritualidade difusa e contra-cultural, se mesclava com o recente fenômeno do Trap no Brasil. Com o EP “Taciturno (2020)” composto por 4 faixas, 3 assinadas por Davzera e uma por Apollo 808, o seu “Trap” debochava bonito em flow e lírica, do grosso da produção mimetizada dos falsos bandidos e adolescentes adultos que em breve iriam ser maioria neste gênero.
Prova disso, foi o single lançado em 2020, “Bandits”, onde em parceria com Black e com seu parceiro de Alquimia “MKM”, mostrava já a possibilidade de o Trap se pensar e utilizando dos maneirismo presente no sub-gênero produzia de dentro uma crítica às formas estilizadas em demasia. Dartha veio construíndo ao longo dos anos uma obra chapadamente crítica onde o “Lean” é substituído por dosagens potentes de “chá de trombeta”, capazes de explodir a mente dos sub-15 do trap nacional e o colocando novamente – pelo menos em seu trabalho – no cenário contra-cultural.
-Leia o artigo Panorama do Rap Sergipano parte 1 no site!
-Leia o artigo Panorama do Rap Sergipano parte 2 no site!
Já em 2021, foi a vez de um EP mais substancial com “L³ Golden”, onde as produções estão melhor manufaturadas e com um “sauce” plenamente sergipano sem perder a universalidade artística. Composto por uma intro e 4 faixas, com feats de Matheus Coringa e headB, foi um trabalho que plasmou com excelência seu estilo único de construção lírica, onde o MC mescla sem didatismos, suas referências literárias, crítica social, observações do cotidiano e da cena, assim como suas práticas do surf e de expansão da consciência.
Chegamos em 2024 e o lançamento de Sistemas & Danos {S.Da.S} trabalho todo produzido por Apollo 808 e com participações de seus velhos parceiros do Alquimia Solar: Avicena e Pedro Guaraná, assim como do sentimental HeadB (ex-Beirando Teto). Aqui, se me permitirem, é possível perceber a cobra mordendo o próprio rabo, o Ouroboros, tão apreciado pelos Alquimistas de Serigy. Para além de uma mera metáfora, estar atento aos movimentos da vida/arte e produzir uma leitura crítica do momento em que vivemos é fundamental.
Se manter fazendo rap em Aracaju, um cenário que apesar de rico artisticamente é insalubre como em qualquer cidade do país, é muito difícil. Nestes últimos 9 anos que acompanho de perto os lançamentos e que vou descobrindo a história fonográfica não apenas do Rap sergipano, mas da música produzida no estado, não é difícil perceber a quantidade de artistas e grupos que surgem e depois de um tempo são levados para outros caminhos, muitos abandonando definitivamente a arte.
Neste sentido, Dartha não apenas pelo seu trabalho artístico mas sobretudo pela resistência desde o período com o seu grupo, nos leva a pensar não apenas o seu disco como o momento que o cenário do rap sergipano vive e o que está por vir. Já na primeira faixa de Sistemas & Danos (S.Da.S}, o MC reflete essas questões:
“Prince Serigy só Atalaia
A cidade toda é meu refúgio
As vez essas parede me odeia
Vou cavar concreto vai dar fruto”
Para artistas independentes, todo trabalho é sempre um recomeço, e de modo mais geral para qualquer artista que busca o novo, também. Falhamos miseravelmente, quando não entendemos isso, mas sobretudo quando não buscamos atenção nas formas que se repetem se renovando nestes trabalhos, se diferenciando nas obras de artistas com pouca visibilidade e de cenários que vivem de altos e baixos. Poeticamente, alguém poderia negar que durante a sua carreira artística Darthayan aka Dartha, é um Argonauta em constante movimento e mutação? e mesmo numa escala macro, pensando o cenário sergipano, não estariam todos no mesmo Nau?
São esses processos que vão se descortinar ao longo do disco, Sistemas & Danos guarda já no seu título essa visão mais ampla, de uma realidade complexa que se nos enreda através de estruturas que falsificam e alienam. Em se tratando de cultura hip-hop, rap nordestino, o sempre presente problema da xenofobia e falta de políticas publicas e de visibilidade local para artistas que constituem cenários. Que só conseguem se manter, a custa de muita luta, muitas vezes contra o próprio publico local que se aliena através dos algoritmos e das mídias sudestinas que avalizam quem merece e quem não merece atenção.
Após a faixa de abertura que situa o problema, as duas faixas seguintes chegam na pegada do Drill, Dartha e HeadB em beat agressivamente e sujamente cadenciado do Apollo 808, onde a dupla cospe barras. “Oceânica Street” é daqueles momentos em que se separa os homens das crianças e onde os reais MC’s se afirmam em qualquer beat, mantendo sua essência. A faixa é um duplo, e continua na sequência com o mesmo beat, porém com o feat do Pedro Guaraná, onde encontramos os MC’s refletindo o tempo, as voltas que o mundo dá e o movimento de busca evolutiva.
Com “O Que Mudou” há uma pergunta e uma afirmação que dialoga com as relações entre os indivíduos e a cultura:
O que mudou?
Você não moscou, se desafiou,
Se desconstruiu, se elaborou,
Mas o que mudou?
A escuta preguiçosa e a incapacidade de contemplar trabalhos artísticos para além das projeções pessoais, muitas vezes deixarão passar sutilezas estéticas como as presentes nestas duas faixas e que são fundamentais para o entendimento do disco e do momento em que ele se insere. Entre a agressividade diante do presente estado de coisas e a reflexão mais arguta sobre o movimento que os trouxe até aqui, Dartha, HeadB e Pedro Guaraná, elaboram nas duas músicas, um movimento lírico dos mais interessantes presentes em Sistema & Danos {S.Da.S}.
Há um claro movimento a percorrer todo o disco de estreia do Dartha que coloca em jogo nossa percepção acerca da arte, dos artistas independentes, da cultura e suas relações com o capitalismo no século XXI. Tudo envolvido em uma narrativa sonora que não abre espaço para didatismo primário, para ressentimento ou culpa individual, muito menos para o egocentrismo neoliberal que prega a meritocracia. Mas sobretudo, como dito pelo poeta, nos oferece uma visão de que não é o sucesso o que se tem em mira, dito de modo poético/surfista: “O lip não é o destino,o lip é só a passagem”. Para quem não está versado na linguagem do surf, lip = a crista da onda.
A faixa “Índigo”, reedita em momento mais do que oportuno a parceria com Avicena, seu parceiro do grupo Alquimia Solar e que esteve presente no EP Refugo (2018) quando o anfitrião assinava Darthayan. Em um beat Trapsoul, os Mc’s destilam elegância rimando sobre relações afetivas, matrimoniais, éticas, com algum erotismo também. E mais uma vez, dentro de uma perspectiva singular presente na música em questão, há uma repetição:
“Tudo que é vivo, retorna ao início
atento aos detalhes, eu vejo os indícios,
tão livre minha arte, eu criei
o preço que eu pago é em Prana”
Para um público acostumado com conceitos mastigados e regurgitados por marketeiros, trabalhos cheios de sutilezas e com ideias poéticas e sonoras realmente fortes, realmente é de dar um nó na cabeça. Quando muito se mistura a ideia de arte com a noção de dinheiro, perde-se de vista o quanto de energia vital é despendido para a criação e o quanto essa mesma energia vital nos é transmitida. Sobretudo hoje, onde grande parte das letras do Trap falam sobre o corre das notas, Dartha é um alienígena, ao trazer a noção de Prana oriunda da filosofia hindu.
Ao mesmo tempo, há um leve aceno no verso destacado, a noção de que tudo que é vivo retorna, que podemos entender aqui como ele mesmo, enquanto artista, como os seus parceiros do Alquimia aqui presentes – e que já há algum tempo não gravavam. Assim como a própria cena sergipana, viva e em renovação, mas necessitando estar atenta à tradição, que o Dartha, o Alquimia Soltar, e vários outros e outras artistas da história, representam.
De “Sangue e de Ouro” é mais uma afirmação de que o Poeta se dedica a poesia, a arte, não a busca alienada do vil metal. A faixa faz uma transição sonora entre as partes que compõem o disco, propondo e convidando a uma apreciação mais musical. A noção da busca pela poesia é reafirmada na introdução de “Onion Rings”, onde se declama acerca do poder e do aspecto multifacetado da poesia. As linhas de Dartha nesta faixa, já se direcionam ao cenário que se dilui para surfar a onda do momento.
Acostumado, vivido e vívido no outside da orla de Atalaia, Dartha sabe o momento certo de dropar as da série e entende o perigo de descer em uma intermediária e tomar a série na cabeça. Atento aos movimentos do mar, que possui muito do entendimento dos antigos em analogia aos momentos da vida/arte, cheias e vazantes, Dartha utiliza também de sua prática do surf como alimento de sua poesia.
As duas faixas que fecham o disco, voltam ao começo, com uma vibe mais cadenciada e reflexiva, mostrando também a diversidade e concepção estética presente na construção do álbum. Em “Disparada” novamente Deborah França abre a track com uma declamação poética, onde Dartha faz uma explanação muito “didática” sobre os aspectos que atravessam sua arte. Os riscos em apostar a vida na arte, o cenário inóspito, o caos social e o cenário cultural sucateado em que se insere, suas origens familiares e raciais, assim como suas concepções estéticas:
“A cada verso, uma mensagem/ a cada batida, uma paisagem / dos versos que ainda resistem
e das lutas que ainda existem / além desse sangue no espelho/ da luta e do tardar sem fim
seguindo minha identidade e o sonho sonhado bem antes de mim”
Particularmente, não consigo observar um single apenas, muito menos isolar uma peça presente em disco, ou mesmo um artista em um cenário e “Respawn” é a prova semiótica, poética e musical do porque essa prática impulsionada pela Indústria Cultural é extremamente danosa. Como afirmei acima, este trabalho, o disco solo de Dartha, deveria ser entendido como uma peça capaz de nos fazer pensar o próprio cenário independente, o trabalho e o papel do artista, da arte, e de lambuja o próprio rap sergipano, que é de onde parte.
A palavra “respawan”, retirada do inglês, e que se traduz como reaparecimento, parece demonstrar que esse que vos escreve não estava delirando. Toda a sua construção, desde o loop de um assovio maroto até o sample da música “Começar de Novo”, reafirma e retrabalha a temática do ouroboros, aqui entendido como eterno retorno da diferença. Círculos, circularidade, infinito, que subjaz ao trabalho enquanto forma de arte perene, mas também à carreira do próprio Dartha, assim como ao “Caduceu” título do único EP do Alquimia Solar.
Obras de arte são compostas por signos, afetos, percepções, construídos através da utilização dos materiais técnicos presente em cada forma de arte. No caso do Rap, Ritmo e poesia. O signo mais potente presente em Sistemas & Danos {S.Da.S} está presente desde a capa, que podemos ler – com algum conhecimento histórico – ao líder Serigy. Movimento circular e dialético que coloca em jogo as relações do rap sergipano com o resto do país, de modo insurgente e anticolonial. Que é forte o suficiente para se afirmar e caminhar com suas próprias pernas, pois qualidade não lhe falta.
-Leia o artigo 6 nomes para conhecer a renovação do rap sergipano no site!
Esse retorno ao passado com olhos no futuro, poderia ser também pensado dentro da lógica do Sankofa, afinal 2024 marca o momento da volta de seus companheiros de Alquimia Solar: Avicena e Mukamo ao cenário, com lançamentos já engatilhados. Por outro, lado Dartha também segue reaparecendo como a possibilidade de um trap que não seja misógino, infantilizado, diluído, neo-liberal e meritocrático como em geral percebemos.
O fato é que eu queria agora estar tomando uma gelada com minha rainha, com Valtinho, Felipe, Paula e Ane, assando uma carne, comendo pilombeta na Coroa do Meio, ouvindo “respawn”, depois de ter pego umas ondas em frente ao Farol. Mas a vida é isso, em breve estarei por lá, e enquanto isso, sigo pensando e ouvindo Sistemas & Danos {S.Da.S} do mestre Dartha. Mas vou reaparecer por aí!
-Dartha em Sistemas & Danos {S.Da.S}, reafirmação da Alquimista Solar de Serigy!
Por Danilo Cruz