DaGanja Tá no Ar (2013) um disco fora da curva e fundamental!

O MC baiano DaGanja tem um dos seus excelentes discos agora disponível em todas as plataformas digitais, resenhemos:

DaGanja

Era 2013 na Bahia e como nunca fui afeito à avenida e aos trios elétricos me refugiei no Pelourinho e o seu carnaval mais tranquilo. No tradicional palco colocado em frente da Casa de Jorge Amado, cerva gelada na mão e a expectativa para ver o novo projeto do Dão Black que tocava naquele carnaval, junto dele dois nomes por mim desconhecidos: DaGanja e Princess La Tremenda. Já nas primeiras músicas o entrosamento era perfeito, meu carnaval estava em altíssimo nível, na tranquilidade do Pelô com cravinho até as tampas e o groove comendo solto. O nome do projeto era Quilombola Soul e tinha na banda grandes músicos de Salcity, como Alan DuGrave e Prince Addamo.. 

Ao fim da apresentação, DaGanja anunciou que iria distribuir alguns discos para quem tinha gostado das palhinhas de algumas faixas que ele tinha soltado no show. Obviamente que eu estava lá para ganhar uma cópia né? Passada a ressaca no dia seguinte, abri outra gelada e coloquei o disco no play e certamente não estava muito preparado para o que soava das caixas, apesar das amostras do dia anterior. Eu confesso, eu não ouvia naquele momento o rap feito em Salvador, talvez até por isso meu lado evangelizador nos textos que escrevo sobre a força do nosso rap. 

Na verdade, nesse momento da minha vida eu ouvia muito pouco rap e nada de rap baiano. E o que Tá no Ar (2013), o segundo álbum deste que é um dos nomes mais produtivos e importantes do nosso hip-hop me apresentava, levaria alguns anos para que eu desenrolasse e entendesse a magnitude do projeto. Nesta última semana o disco finalmente ganhou as plataformas digitais e com isso a oportunidade de destrinchar um pouco dessa grande obra, que além de ser um exemplar necessário da obra do DaGanja é também uma excelente porta de entrada para conhecer outros nomes da cena. Assim como, para entender a sonoridade única feita pelo artista naquele momento.

O disco Tá no Ar (2013) chama atenção pela sonoridade que apresenta, pelo flow do MC e por sua rajada de ideias, além de transbordar uma musicalidade ímpar naquele ano dentro do rap nacional. Não conheço nenhum disco lançado naquela altura que tenha uma construção musical parecida em termos de texturas, de produção e de ritmos tão próprios. A ausência de atenção de uma mídia especializada local e nacional para o que aqui estava sendo produzido, produz essas anomalias, discos com frescor lírico e musical são relegados ao esquecimento. O público, seja local ou de fora, desconhece os verdadeiros construtores de um rap baiano que literalmente não se parece com nada, todo trabalhado na criatividade e na falta de visibilidade e maiores recursos financeiros. 

Se faz importante ressaltar que grande parte desse processo de elaboração musical se dá ao fato do próprio MC DaGanja ter uma caminhada que sempre se mesclou com diversas expressões. Seja no exemplo citado acima com o projeto Quilombola Soul, metendo seu flow entre o Funk/Soul, seja em suas participações no soundsystem do Ministério Público, mas também com o Testemunhaz da Periferia (uma das bandas de rap mais importantes da Bahia). Ou ainda, no seu iniciático começo no grupo Verbo de Malandro, ou sua caminhada com o Afrogueto e o prêmio Hutuz no currículo, além do fortalecimento com a firma UGangue

“Pra ser mais claro, DEIXA DE FOFOCA E TRABALHA”

Dentro dessa versatilidade artística, temos ainda em seu processo de formação, a participação como percussionista no famoso grupo Marreta, surgido ali na esteira da Timbalada e que fez um grande sucesso local. E essa veia rítmica junto a caminhada poética lhe conferiu na altura da feitura deste disco, algumas de suas composições no disco do Psirico. Esse intercâmbio hoje comum e normalizado dentro do cenário do rap baiano, ali naquele momento ainda era mal visto por muitos atores da cena. Entre diversos outros feitos, nisto também DaGanja é um dos pioneiros.  

Se levarmos em conta todo esse histórico, fica fácil perceber, porque naquela altura de um primeiro contato com o Tá no Ar (2013) eu não estava preparado para absorver e compreender de onde aquilo vinha. DaGanja é antigo e sua caminhada pode ser comparada a maestria que ele também possui como um excelente cozinheiro, formado e atuante na área. Capaz de produzir os pratos mais ‘tradicionais’ e ao mesmo tempo capaz de misturar a “nouvelle cuisine” e os aspectos mais comuns da música de sua cidade, tudo isso com um tempero próprio dos grandes chefs. Tudo isso pode ser amplamente saboreado no disco ao longo de suas 8 faixas, fazendo-nos perceber a ampla diferença de sonoridade do seu disco de estreia solo: Entre Versos e Prosas (2008).

Inicialmente o disco Tá No Ar (2013) teria uma outra configuração e teria sido todo gravado com banda, e nesse caso que banda. Nessa altura, DaGanja vislumbrava voos autorais com um approach orgânico e todo o trabalho de pré produção foi feito com a exemplar cozinha do Dubstereo: Jorge Dubman (bateria), Alan DuGrave (baixo) e Prince Addamo (guitarra) além do elegantérrimo trombone de Manchinha. A falta de “tempo” ($) impediu o projeto de ir a frente, porém Daganja conseguiu o milagre criativo de “samplear” seu próprio projeto! 

A Faixa “Nossos Amigos” é um hino do rap baiano, apelando para um refrão que condiz e muito com o “ethos” desse artista: “Deixa de fofoca e trabalha! finaliza o refrão. A música além de possui uma letra que nos apresenta sua visão de mundo e conduta, possui um balanço irresistível muito bem ornada com a condução groovada no trombone do grande Manchinha. A faixa ganhou um videoclipe que registra os shows com a banda, lotados nas praças do Pelourinho, onde a galera sempre responde ao refrão. Com direção de Thiago Souza Campos, é um dos grandes registros do rap baiano…

“Deixamos bem claro, que nesse estado nos encontramos, formamos um laço”” 

Apesar do falatório neurótico da internet estar constantemente insistindo em questionar a união dentro do movimento hip hop, o segundo disco de DaGanja é um excelente exemplo da força de agenciamento da música preta na Bahia. Contando com a produção executiva da UGangue, direção de arte de Rangel Santana e ricamente ilustrado por XGuiX, o disco traz um time pesado, de primeira linha em todas as áreas de sua confecção. Essa pequena pérola do rap nacional foi gravada no lendário WR Studios por Bráulio Passos e com uma faixa no ITal Studio, tendo a mixagem e masterização por ninguém menos que Luiz Café.   

Abrindo o trabalho temos uma faixa que é múltipla de significações, DaGanja se reafirma após longa caminhada, ele Tá no Ar, assim como aroma almiscarado da planta sagrada. O artista que em seus começos não era muito bem aceito por ser um “sommelier” de primeira ordem da ganja, após mais de 13 anos de caminhada, seguia sendo um figura extremamente relevante e impactante, como um bom e velho barrunfo ao se falar de Rap na Bahia. DaGanja Tá no Ar!

As produções do disco ficaram a cargo de dois grandes nomes da cena local Victor Haggar. DJ Gug e do beatmaker Abel Vargas (joinvile). Reafirmando a iconoclastia e uma visão mais libertária dos possíveis modos de vida, os valores positivos seguem como vetor de todo o disco e isso tá presente em “Família em Primeiro Lugar”, a faixa que tem a Dona Liu e seu canto fortalecendo a faixa no refrão e com bonitas vocalizações, além do grande DJ Leandro riscando muito! As guitarras do Prince Addamo junto aos metais de Gabriel Elias (trumpete) e Manchinha (trombone), faixa cadenciada e organicamente preenchida com extrema qualidade, recebe a lírica do MC abordando a importância do rap e da música como paradigma para se manter de pé nas ruas. Uma reflexão sobre impactar positivamente outros, estar centrado como artista e ciente do poder da música e da importância do hip hop. 

Infelizmente, um dos projetos que foram soterrados definitivamente até ahora pela passagem do tempo foi uma parceria entre Dimak e DaGanja que se perdeu nos Hd’s da vida e na queda do myspace. No entanto, aqui em temos um registro de alto nível dos dois juntos, “Como Vai” traz produção do DJ Gug e apresenta o quanto os caras eram entrosados, com os dois MC’s construindo suas partes a partir da pergunta: como vai? O chefe da groove Alan DuGrave chama no baixão uma linha que transmite uma “Vibe” muito bacana e que ao mesmo tempo nos joga em outras dimensões: Vibe = Vai Bê.A Alexandra Pessoa de voz doce, equilibra com as rimas de DaGanja e do monstrão Yuti Loppo

A sonoridade dançante, as timbragens vindas de direções às mais diversas, as inserções orgânicas podem esconder de muitos a força lírica desse disco, mas é um erro de percepção. Grande parte da beleza, da força e da novidade desse disco está exatamente no flow e nas ideias rimadas por DaGanja e isso pode ser percebido muito bem na faixa “Nossa Conquista”, onde o artista faz uma auto reflexão muito bem urdida entre o eu e o outro, ou seja uma reflexão ética. Uma letra que certamente hoje é de difícil compreensão para um público acostumado a meia dúzia de frases de efeito e construção lírica enxuta quando não zerada. 

O disco chega suave ao fim, correndo pelo player com tranquilidade, empolgando, levando a pensar, ou seja, como um exemplar singular do hip-hop baiano. Curiosamente a faixa que finaliza é também um prenúncio do que seria desenrolado no futuro: “Quem Tá Comigo”, traz Ravi Lobo (Rap Nova Era) no feat. Os dois integrantes originais da família UGangue, segue até hoje juntos nos trampos, em uma amizade e parceria que já dura mais de uma década.

Finalmente, Tá no Ar (2013) chegou às plataformas digitais, uma obra que marca um tempo, um exemplar da força da arte de DaGanja mas também apresenta para quem não conhece diversos outros artistas que somaram no disco e que se você pesquisar verá a importância dos mesmos. O que está no ar é o fato que as obras em salvador sempre demonstram uma coletividade, um agenciamento coletivo em produções que representam nossa força. Certamente não há unicidade, mas alianças não nos faltam, ricas e potentes em mostrar o quanto a liberdade e a luta segue sendo refeita, ao longo dos anos! Facá a sua e bote no ar! 

-DaGanja Tá no Ar (2013) um disco fora da curva e fundamental!

Por Danilo Cruz

Assista esse vídeo raro, videoclipe gravado em São Paulo com direção de Mario 77 e lançado em 2011, dois anos antes do lançamento do disco!

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