Cronista do Morro em “Uma Possível Vingança”, vida e morte no Hip-Hop Baiano!

Uma peça musical, onde o “vingar” da Cronista do Morro diz respeito a vivermos e morrermos na luta pela vida do povo preto.

Cronista do Morro
Foto: Lucas Raion

O disco de estreia da Cronista do Morro conseguiu de modo muito acurado, reunir não apenas a força lírica de um Trap combativo – algo pouco visto hoje em dia – como fazer um retrato das influências do rap baiano, assim como da sua importância no cenário. Ao longo de pelo menos 5 anos, acompanhamos de perto o surgimento da artista do bairro da Liberdade e o seu “Uma Possível Vingança” que conta com 10 músicas e pouco mais de 30 minutos vem para coroar uma carreira feita com esmero e uma proposta estética que lhe é bastante própria. 

Com a estreia fonográfica da Cronista do Morro já era possível ver uma artista que além de apresentar um flow e uma lírica própria, já apontava a diluição pelo qual o Trap passava. De 2019 para cá, todos os apontamentos feitos em Torro (2019) só se confirmaram e aprofundaram o abismo social e político cantados na letra. Ao ouvir “Uma Possível Vingança” no ano passado, bateu uma felicidade de ver uma artista conseguir plasmar um disco de estreia com as condições técnicas necessárias, para deixar o “bagulho preto” no que de melhor isso pode suscitar. 

Porém, apesar de ter conseguido o apoio necessário para a confecção do seu disco de estreia, ainda assim problemas não deixam de assolar a vida de uma mulher preta e periférica. Em excelente entrevista ao site “Rapresentando”, Cronista relatou como a morte do seu parceiro e amigo Krr On The Beat, afetou todo o processo de confecção do disco. Ele que seria o beatmaker e produtor do disco, e foi o produtor de uma das faixas mais emblemáticas do disco com “Revolta parte dois” em amplo diálogo com a tradição baiana de “rima de rua” com a histórica música do Olodum “A Revolta” presente no disco 10 anos – Do Nordeste do Saara ao Nordeste Brasileiro de 1989. 

-Leia a entrevista da Cronista do Morro no site do Rapresentando!!

A história de Cronista do Morro talvez não tenha sido devidamente observada pelo público e pela mídia. Ao longo de 5 anos no cenário, a sua qualidade lírica e a sua entrega sempre pujante lhe fez participar de excelentes trabalhos, que lhe deram um portfólio pouco visto em terras baianas. Participações em discos do OQuadro, Zudizilla, no EP do Ravi Lobo, no “Taurus” da Duquesa, são afirmações da gigantesca qualidade do seu trabalho, em projetos de sonoridades díspares onde ainda assim a Cronista do Morro não decepcionou, muito pelo contrário. 

-Leia a nossa materia sobre a colaboração entre Cronista do Morr e o Afrocidade!

Tudo isso, vem coroborar a força de “Uma Possível Vingança”, onde a artista crava o seu nome no cenário com um disco de Trap que transborda um discurso nacionalista preto dentro da cultura Hip-Hop. E é bom que o ouvinte perceba que não estamos diante de um discurso meramente combativo, ou unidimensional, pois ao londo disco além dialógo já mencionado acima com a tradição negro baiana com o Olodum, Cronista consegue falar também de questões existenciais no capitalismo – que é um sistema que tem por base a exclusão racial – na belíssima “Só Vale Dinheiro”. 

-Leia a materia sobre a estreia da Cronista do Morro, aqui no Oganpazan 

Por mais que o Trap nacional seja constituído de um esvaziamento político e lírico, “Só Vale Dinheiro” joga com todos os elementos estéticos que têm construído essas produções onde dinheiro e ice são o monotema. Lá tem dinheiro e maconha, mas a luta é o que determina a construção poética, fumar maconha se transforma em sua veia rastafari de fogo na Babilônia e o dinheiro é associado ao vazio existencial do valor no capitalismo tardio que define o Outro. 

Cronista do Morro
Foto: Lucas Raion

A Cronista do Morro trabalhou muitos anos como diarista, e sabe muito bem o que é o valor do trabalho, assim como sendo uma mulher preta e lésbica entede todo o viés de opressão racial, de gênero e de sexualidade. Na entrevista supracitada, ela nos conta que começou como MC no Funk e é incrível o resultado musical de uma faixa como “Torro, a Cronologia”, onde o produtor JxvemBlvk insere do samba reggae no beat.  

Mesmo “Trajada de Oh”, o ódio lhe veste com elegância e nos emociona ouvindo ela reverenciar os ancestrais espirituais e musicais, construindo um disco que está em pleno aceno ao contexto que vivemos de modo crítico. Nos parece queOquadro algumas faixas também acenam para MC’s fundamentais para o rap baiano, em “Sentiu” ela utiliza o termo: “Filhos de Hitler” que já tinha sido cunhado por Dark MC, figura importante do cenário que infelizmente foi mais uma vítima da Guerra Racial de Alta Intensidade, que vivemos na Bahia. 

Mesmo que a referência não tenha sido feita com esse intuito, na música Cronista do Morro elabora uma crítica muito bem feita, denunciando o sistema caótico em que estamos inseridos e os corpos pretos que caíram 1750 vezes no ano passado. Tipo Kiriku, Cronista rapidamente e com poucos versos nos dá a noção da força da negritude baiana, e o desafio gigantesco diante não apenas da política genocida da Bahia como da construção imagética e sonora que exclui aquilo que quer ser elogiado, a cidade de Salvador como destino turístico. 

“Foda-se seu Hype, na rua é Control Strike!”   

A Cronista traz para si a verdade do Morro, e é doloroso perceber que nosso povo – inexistente – não se dá conta da eugenia que ela nos mostra em “Foda-se seu Hype”, abdicando de um discurso mais leve. A inserção do áudio de uma influenciadora negra que passou por um ameaça de morte junto a filha, dá conta de modo bastante direto do estado em que vivemos, ao mesmo tempo, que faz um crítica direta ao “sucesso” ostentando por muitos, e que não os livrarão da morte por ser preto. 

Diante do sistema democrático burguês e supremacista branco, é interessante notar que nunca está “Tá Tega”, mesmo com dinheiro no bolso, Cronista do Morro bagaça musical e poeticamente a noção muito propagada como um clichê: “Entre a esquerda e a direita, continuamos sendo pretos”. Na arte e na música da Cronista, é a abolição desse estado e dos seus pressupostos racista o que deve de fato estar em jogo.

Com a “Carta para o Presidente” escrita com sangue, como Nietzsche atribuía a literatura de Dostoievski, a Cronista do Morro volta ao começo de sua carreira e projeta sua arte como estandarte para um presente/futuro de lutas do nosso povo. No final das contas, ouvir o disco de estreia de Cronista é uma felicidade porque nos mostra uma mulher preta LGBTQIA+ que “Vingou” apesar de tudo que a envolve, e do território em que ela habita. “Uma possível Vingança” é ao mesmo tempo ganho particular e construção coletiva. 

A vendeta está presente como algo que precisa ser tomado pela mão de um povo por vir, de uma negritude cada vez mais consciente do território inimigo e das instituições feitas para lhe subjugar. No entanto, o que fica enquanto luta e arte é a vida exuberante da Cronista do Morro, é ela estar viva e nos abrindo os olhos, produzindo mesmo em luto constante, com um Trap, com um Rap que transborda a força do Hip-Hop embebido na força da história do rap baiano, Hip-Hop baiano!

-Cronista do Morro em “Uma Possível Vingança”, vida e morte no Hip-Hop Baiano!

Por Danilo Cruz 

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