Crônica Mendes, saudosista do futuro em Eleve-se (2020)

Saudosista do futuro, em Eleve-se (2020), Crônica Mendes chega ao seu terceiro álbum de carreira, mais um trbalho consistente.

Crônica Mendes

“Pros dias quentes, recomendo repelentes. Pros dias de luta, recomendo quebrar correntes”. Fernando Anitelli. 

O hype é fake e o seu radar viciado pelo algoritmo talvez tenha feito você passar batido no mais novo trabalho do rapper Crônica Mendes. Eleve-se, entrou pelo seu rádio e você nem viu!

Conheci o trabalho desse baiano radicado no interior paulista ainda pelos idos de 2000, quando o jovem rapper então com 22 anos, foi apresentado ao Rap Nacional pelo grupo A Família, no qual, ao lado de Demis Preto Realista, do notável poeta de Ilhéus, Altino Gato Preto (in memorian) e DJ Bira, atuaram de 2000 a 2006, época em que paralelo ao trabalho desenvolvido junto ao seu grupo, também formavam a banca de apoio ao poeta Gog. 

O rapper radicado no interior paulista, Crônica Mendes chega ao seu terceiro álbum de carreira em grande estilo. Eleve-se (2020) veio à luz num período conturbado, sobretudo para nós, brasileiros, que nos acostumamos à morbidez da contabilização das mortes de nossa gente todos os dias. Além da necessidade do auto-exílio em um distópico Brasil de 2020, e que mesmo tendo chegado ao fim, prossegue nestes primeiros meses de 2021. 

E dentro desse turbilhão, recheado de incertezas, procuramos seguir sobrevivendo como podemos. E mais do que nunca a arte tem papel fundamental em nossas vidas ao nos apresentar como um antídoto ou válvula de escape anti-neurose para além do entretenimento simples.E eis que, pelo menos pra mim, o novo trabalho de Crônica Mendes tem se mostrado um remédio a ser administrado nesse período em que sobreviver tem sido além de tudo que já é, também um ato político. Muitas das tracks que compõem o novo trampo desse poeta, dialogam diretamente comigo, talvez por isso a identificação direta.

Assumidamente um poeta “dos anos 90” que “segue cantando problemas e mostrando alternativas”, como costuma dizer em um de seus versos, Crônica é o amálgama do clássico com o moderno, sem culpas o revanchismos, sabiamente entende-se como um artista a promover continuidades ao invés das erroneamente difundidas rupturas geracionais promovidas no Rap Nacional, por alguns das mais diversas gerações. A bagagem adquirida ao longo de mais de 20 anos de caminhada a serviço do rap brasileiro, deram a Claudiney de Souza Mendes, esse brasileiro de nome comum, uma bagagem essencial na construção da sua arte.

Como artista noventista que é, em seu mais novo trabalho, o artista reafirma o seu caráter de ávido pesquisador dos tesouros escondidos na música brasileira e mundial. Amante confesso dos samplers e dos scratches, ao passear pelos pouco mais de 35 minutos do seu mais novo trabalho podemos perceber muito dessa sonoridade característica da geração 90, mas também temos muita sonoridade orgânica e a exploração das novas tendências. Crônica Mendes utiliza o auto tune, (recurso comumente usado no Trap) por exemplo, e o faz com propriedade, bem encaixado e sem parecer forçado.

A faixa título que também apresenta o novo trabalho de Crônica, abre com colagens da suingada “Amazon Sisserou”, do guitarrista paraense Félix Robatto, que em seguida, num corte seco, nos apresenta os versos ritmados num beat que mescla os graves do boombap clássico e solos rítmicos de guitarras pesadas, rivalizando com scratches cirúrgicos do Dj Buiu Silveira e a bateria de Rafa Fagundes, com produção assinada por Bruno Okuyama e Diego Silva. 

Outra track suingada que merece destaque é a dançante “Sonhos”, com produção da lenda viva do Hip Hop brasileiro, o onipresente DJ Raffa, e que também conta com linhas de baixo do seu grande amigo Bruno Okuyama, parceiros desde os tempos do quadro Rap Voz, em que o poeta Crônica nos presenteava releituras de clássicos do Rap Nacional. A faixa também conta com as participações primorosas de Diego Silva, fazendo as linhas de guitarra e também no baixo, o músico Glécio Nascimento. 

A positive vibration permeia toda a atmosfera de Eleve-se e em “Nada Como Antes”, ela fica mais explícita, dando o tom de quase todo o disco. Aqui Crônica Mendes faz uso de um método característico de sua geração dentro do Hip Hop, o sampler, sampleando o beat de uma canção infantil – Pode Virar (Tiquequê) – de Diana Tatit e Wem, e novamente a guitarra de Diego Silva dá o tom da canção.

Como não poderia deixar de ser, em Eleve-se, Crônica Mendes também abre espaço ao seu rap combativo, linha que o consagrou como grande letrista  ainda nos tempos do grupo A Família. Aqui, o rapper divide a composição de “De Volta Para o Futuro” com o parceiro Ronds, a faixa também conta com assinatura de Daniel Lamar, que traz um beat em que o boombap se funde ao trap, trazendo uma sonoridade de resultado muito interessante com pitadas compassadas de funk, umas das vertentes musicais mais sólidas nas quebradas brasileiras dos últimos anos.

A sonoridade moderna se faz presente em “Mar Bravo”, com pitadas de auto tune, recurso comumente usado pelos trapstar, em mais uma faixa de autoria compartilhada, que além de dividir autoria com Crônica, Jakisom Filho do Justo também faz o feat. e assina a produção, mostrando a versatilidade desse promissor artista. A masterização e mixagem ficaram a cargo de D’Quebrada Produções.

De Mar Bravo, saltamos para “Deixa o Menino Cantar”, um Rap com beat boombap clássico de graves estralando, em que os versos acelerados do rapper casam em perfeita simetria ao beat, novamente assinado por Daniel Lamar. Aqui as linhas de Crônica nos dão a entender que muito do que é cantando, trata-se de experiências pessoais do artista ou de narrativas de garotos comuns da periferia que sonham em vencer na vida, driblando as patifarias para um dia ser rei. De todo modo, é um pouco de todos nós. E quem não…!?

Alguns dos grandes trabalhos de Crônica Mendes são marcados pelas boas parcerias que o artista conseguiu formar ao longo de mais de duas décadas de carreira. E uma dessas grandes parceiras é retomada em seu mais novo trabalho. Assim como em – Até Onde o Coração Pode Chegar (2013) – seu trabalho de estreia em carreira solo, Crônica convoca novamente seu parceiro Fernando Anitelli (Teatro Mágico), sete anos depois para repetir a parceria em mais um feat. que além de abrilhantar o trabalho em mais essa participação de peso, que além de dividir a autoria da obra com o rapper, faz as linhas acústicas do violão.

A produção da intimista “Em Construção (Nada Há de Ser Pra Sempre)” é do incansável DJ Raffa, que é acompanhada novamente pelas guitarras de Diego Silva e do baixo hipnótico de Bruno Okuyama, dando o groove e os tons psicodélicos a um das mais introspectivas tracks que do disco. Crônica Mendes também nos entrega o audiovisual desse trabalho com produção da já parceira BG Produções com a Galuz, onde ambas dividem a produção do clipe. 

Os versos acelerados de “Oração Para Dias de Paz”, contrastam com a canção anterior, bem como com a maior parte das canções que compõem o disco. O vocal em estilo sacro de Rafah Donato nos refrões dão o tom, digamos, mais religioso, que nos remete a crença do poeta, Crônica Mendes é católico e devoto de São Jorge. A track de produção de Daniel Lamar também ganhou videoclipe com produção assinada pela BG Produções e produção executiva da Galuz (produtora do próprio Crônica), câmeras: Beatriz do Espírito Santo e João Ribeiro, a edição é de Bruno Okuyama. 

“Do Que Você é Capaz?”, traz um poeta travando suas guerras internas, em que o mesmo externa suas contradições, medos, incertezas, dilemas existenciais, escolhas, e esse turbilhão de sensações de um artista que deixa aflorar em forma de versos, momentos de crises com seu eu interior. Esse mix de sensações é transformado em outra bela canção de Eleve-se.

Aqui mais uma vez a base rítmica é ditada pelo mago Dj Raffa e concebida pela tríade criativa: DJ Raffa Santoro, Diego Silva e Bruno Okuyama, produção, guitarra e baixo respectivamente. Além de uma letra de forte teor emocional, Crônica conta com seu parceiro de longa data e dono de um vocal poderoso, o Angel Duarte, para abrilhantar ainda mais o trabalho, trazendo como resultado final, uma canção de forte apelo emocional. (OBS.: Se não for pra escutar ao vivo, que seja em um bom fone de ouvidos).

Retomando a atmosfera mais zen que permeia boa parte do disco, “Uma Chance” soa quase como música incidental de relaxamento, a canção dá o tom de final de jornada ao percorrer os pouco mais de 35 minutos do disco. Por fim desaguamos em “Esvaziando Pensamento”, do poeta e músico Jarbas Mariz recitado por Crônica Mendes.

Mesmo com uma sólida e longa carreira dentro do Rap, ainda há muitos que não foram apresentados à consistente obra de Crônica Mendes. O MC é daqueles artistas que não foram contemplados pelos infames algoritmos que definem o hype, mas sem dúvidas, pelo que vem construindo até aqui em mais de 20 anos de carreira, sem dúvida, figura entre importantes nomes do Rap Nacional de sua geração. 

Além de sua carreira de trabalhos autorais, como já mencionado anteriormente, ele também desenvolve um outro trabalho importante na fomentação do Rap Nacional, é o Projeto Rap Voz, que atualmente está em sua terceira temporada, onde Crônica Mendes revisita diversos clássicos do Rap brasileiro em versões acústicas, rendendo tributos a grandes artistas que ajudaram a pavimentar a nossa cena. 

É um artista de trabalhos relevantes dentro do Rap Nacional, onde a arte dialoga naturalmente com a de outros expoentes de outras vertentes também, o que confere ao artista grande credibilidade no meio. 

Ter trabalhado com diversos artistas da música brasileira ao longo de seus três discos solos e também na época em que era um dos ‘frontmans’ do grupo A Família, atestam a qualidade e o respeito que esse artista adquiriu no meio. Nomes como Gog, MV Bill, Japão (Viela 17), Rashid, Edi Rock, Junior Vox (Sampa Crew), são só alguns com quem esse prolífico artista já trabalhou. 

Avisa lá que a favela não tá só… e Crônica também não. Incline seus ouvidos para os trampos de Crônica Mendes…

-Crônica Mendes, saudosista do futuro em Eleve-se (2020)

Por Paulo Brasil 

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