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Nem Beyonce conseguirá tornar Country Music música negra e nem será preciso!

Beyonce ostentando um chapéu Stentson, clássico acessório da música country!

A country music é desde seus primeiros registros fonográficos, uma música e uma cultura predominantemente ligada à branquitude nos EUA.

Black Country Music, sempre existiu!

A Country Music é um dos gêneros mais importantes da música norte americana e certamente é um dos pontos nevrálgicos de sua construção branca de identidade nacional. No último mês de fevereiro, a artista estadunidense Beyonce causou furor nas redes sociais aqui no Brasil. Primeiro a diva apareceu de modo surpreendente em Salvador, no evento de lançamento do seu filme Renaissance no Centro de Convenções da capital baiana. Mas, este texto não é sobre isto. O fato que nos levou a escrever esse texto diz respeito às duas músicas lançadas pela artista.  No intervalo do Superbowl a cantora lançou: “Texas Hold’Em” e após um outro single “16 Carriages” que são singles do seu próximo disco.

A recepção por parte do público destas duas faixas beiraram o delírio ao confundir o fato histórico de que a música country possui fortes raízes na música negra norte americana e a afirmação de que a artista estaria preparando um evento histórico de resgate da Country Music como música de origem negra. Há aí, uma distinção fundamental que separa as duas afirmações e que remonta à própria história de segregação nos EUA. Muito diferente das apropriações culturais que tem no Rock’n Roll, o seu maior exemplo contra artistas negros norte americanos.

A música “Texas Hold’Em” é uma música composta dentro da estética clássica da Country Music, onde a cantora aborda o famoso joguinho, que inclusive é muito apreciado pelo seu marido Jay-Z. Já “16 Carriages” é um épico country onde a artista faz uma reflexão sobre sua história na música. Ora, até aí nada problemático, a questão é que uma parte da militância negra no twitter e no instagram aqui no Brasil, passaram a considerar – sabe deus como – que esses lançamentos da Beyonce, singles do seu próximo disco Act II, revelariam a “verdadeira história negra do Country”.

Sabendo o quanto a produção de desinformação tem se tornado um dos principais vetores das redes sociais, recebemos ainda assim, essas afirmações com bastante surpresa. Alguns internautas alegaram que o banjo é um instrumento de origem africana e por isso a música Country é de origem negra. A lógica mandou lembranças, pois pelo mesmo raciocínio, os toca discos são aparelhos inventados por brancos, logo o Hip-Hop é de origem branca, europeia diga-se de passagem, o mesmo valeria para a gaita ou para a guitarra elétrica.

Qualquer pessoa que possui um contato mais aprofundado com a música country americana sabe que sempre existiram artistas negros neste gênero musical. Desde o seu surgimento, desde as suas raízes, a música negra ajudou o desenvolvimento da Country Music. Esta música se confunde muito com a própria formação dos EUA como a nação , tal qual os conhecemos hoje. Isso se deu através das imigrações europeias, da escravização de homens e mulheres trazidos do continente africano e a sua imensa expansão territorial pós independência em direção primeiro ao sul e depois ao oeste.   

Uma breve resumo sobre a formação dos EUA

O processo de colonização praticado pela Inglaterra nos EUA, obedecia duas lógicas de ocupação territoriais distintas. Colônias de povoamento e de exploração, ao sul rico em terras cultiváveis o emprego da mão de obra escravizada vinda de África e ao norte o incentivo do livre comércio, das manufaturas e do trabalho assalariado.  

Depois da independência dos EUA e da sua ratificação como nação em 1783, o seu processo de expansão territorial começa já na ocupação de uma grande fatia de terras que ia dos Montes Apalaches até a borda do Rio Mississipi, cedidos pela Inglaterra. Na sequência, a nova nação aproveita problemas financeiros por parte da França e da Espanha e compra os territórios da Louisiana (1803) e da Flórida (1819), respectivamente. 

E será durante o século XIX, que através da “corrida para o oeste” impulsionada pela crença no “Destino Manifesto” – a ideia de que os EUA tinham o “dever divino” de expandir o seu território e civilizar a América do Norte – que o território americano vai tomar a forma que conhecemos hoje. Após vencer a guerra de Invasão contra o México, anexando uma parte grande do seu território, o país toma a forma que conhecemos hoje. Estima-se que haviam 25 milhões de povos indígenas e cerca de 2.000 idiomas diferentes nos EUA. Ao final das chamadas “guerras indígenas”, ocorridas ao longo do século XIX, restaram apenas 2 milhões.

Pintura de John Gast que ilustra o destino manifesto, importante para a construção de uma visão de nação branca e para a própria Country Music.

    

Observar e pensar a história é um exercício complexo, uma prática que demanda estudo, porém, hoje, isso parece não ter mais importância alguma nas redes sociais. Por isso, se faz fundamental reafirmar coisas que deveriam ser um tanto quanto óbvias, em plena era de conectividade total, onde “dar” um google evitaria se munido de um mínimo de senso crítico, uma série de delírios. 

Atualmente, vivemos há 159 anos desde que a escravidão foi abolida nos EUA com o fim da Guerra de Secessão em 1865. E esta dinâmica histórica é importante, senão fundamental para que entendamos o desenvolvimento cultural daquele país, através da formação de sua sociedade. Tudo isso envolto dentro da lógica da colonialidade, pois por mais que por lá tenham se desenvolvido duas formas de povoamento, o que determinou a sua estrutura como nação foi o racismo, a segregação e o genocídio gigantesco da população nativa. 

As origens da Country Music pré século XX

O que se convencionou chamar “Country Music” quase na metade no século 20, possui diversas origens culturais e musicais. E aqui é interessantíssimo notar como há um desenvolvimento que remonta a um processo de pelo menos 300 anos e passam por pelo menos três eixos raciais na sua formação – branco europeu, negro africano e latino. Daí, a importância de conhecer minimamente a formação histórica dos EUA.

A costa leste dos EUA, em suas grandes cidades, tinham a música clássica europeia como espelho no final do século 19 e início do 20, assim como toda a cultura europeia como espelho ao longo dos anos de formação da nação. O desenvolvimento do Blues, do Ragtime e do Jazz, todos gêneros musicais de origem negra, formam a base inicial do que seria a futura música popular daquele país e que desde o começo buscou através da indústria supremacista branca ser apropriado – no caso do Jazz.

Original Dixieland Band primeira tentativa da indústria musical de se apropriar do Jazz. O grupo gravou o primeiro disco de jazz da história em 1917.

O que viria a ser chamado de Country music era até o início do século XX, música do interior profundo, assim como o Blues eram a música das plantation e de diversão do negros norte americanos. O Jazz já tomava aos poucos conta dos grandes centros urbanos da costa leste, porém o primeiro disco de jazz gravado foi por um grupo branco, assim como muitas orquestras e grupos se apresentavam tocando foxtrot, one-step, charleston ou black-bottom e chamando tudo isso de jazz. Ou seja, a uma intricanda história que nos remete a contribuições e a tentativas de apropriação cultural, ao mesmo tempo que surge uma indústria musical no começo do século 20. 

Todos os historiadores sérios, nos mostram que a base inicial de formação do que viria depois se chamar de country music, surge com os imigrantes europeus que trouxeram consigo o fiddle (violino), o “dulcimer” e a carga sentimental no lirismo e melodias de baladas e canções de marinheiros que remontam ao século 16 e 17 nas ilhas britânicas. Esses imigrantes europeus juntamente com homens e mulheres negros que trouxeram o banjo de África se localizavam nos Montes Apalaches, região que começa no sudoeste norte americano e vai até o sul na borda do Rio Mississipi. Se hoje é fácil localizar o surgimento do Blues nas “plantations” do sul dos EUA, é nos Apalaches onde a chave inicial do Country começa a ser construída.

É desta região dos EUA que parte o desenvolvimento do que se tornaria o Country Music, se expandindo em direção ao sul e ao oeste e com isso, bebendo de outras tantas fontes. Neste movimento que se une a expansão territorial, o country recebeu influências e gerou outros gêneros independentes, a exemplo da música Cajun, e a Western Music que retratava a vida dos cowboys no Oeste, assim como recebeu influência de músicos mexicano-americanos e da música havaiana, ao chegar no oceano Índico. 

A indústria músical e o Country Music anos 1920 – 1930

“A maneira como eu defino a música country é em primeiro lugar eu a chamo de Country Western Music. É a música da América com certeza. E é um amálgama. É tudo. Algumas pessoas querem dizer que é a única música pura original da América. Bem, não, é blues, é jazz, é hillbilly. É tudo sobre a experiência imigrante trazido para a América e americanizado, entende?”  Ray Benson 

Em seus começos o Country foi chamado inicialmente de Hillbilly pela nascente indústria de discos, e que transformou o termo em uma palavra ambígua, sendo vista pelos “caipiras”, a classe trabalhadora do interior dos EUA como uma auto afirmação de identidade positiva, mas utilizado pela burguesia branca como o equivalente ao termo “white trash” de modo pejorativo.

Olhar para a história dos EUA, nos dá um pouco a sensação do espelho invertido com relação aos nossos problemas político-raciais, quando comparamos com nossa própria formação e com os nossos problemas. Se podemos dizer que na cultura brasileira a miscigenação – entendido aqui como uma forma de violência e aniquilação do povo preto – ou pelo menos a integração foi uma realidade que buscou uma valoração positiva, o mesmo nunca ocorreu nos EUA. Leis como o Jim Crow que começaram a ser aplicadas logo após o fim da escravidão (1877-1964) “garantiram” uma separação muito “clara” na sociedade norteamericana.

Os dois pilares iniciais da Country Music: Carter Family e Jimmy Rodgers

Prova disso no campo da música e no desenvolvimento da Country Music está bastante evidente no surgimento da indústria de discos nos EUA. Quando se começou a gravar e vender discos de artistas norte americanos, houve uma divisão entre race records e records. Gravações para negros e para brancos e é nessa segunda categoria que o country music se enquadra, notadamente dois dos nomes fundamentais para a sua história: The Carter Family e Jimmy Rodgers. A partir daqui, toda a história da música country será desenvolvida e expandida majoritariamente por artistas brancos. Ao mesmo tempo em que o gênero vai encontrar diversos cruzamentos, desenvolvimentos e bifurcações ao longo das décadas. 

Inicialmente nomeada como Hillbilly, verá o surgimento de outros subgêneros, como o western, o Honk-Tonk, o Tex-Mex, o Country Swing, o Outlaw etc… O que no espaço deste artigo não pretende dar conta. Porém, o fato inexorável é que se a Country Music possui raízes e contribuições importantes advindas da cultura negra, ela se constitui como um gênero musical branco. Não há artistas negros na historiografia inicial, nos anos de construção do country que tenham sido boicotados e embranquecidos apesar do seu imenso valor inventivo. Há sim, grandes nomes que fizeram parte da história e que ao passar do anos, deixaram de ser devidamente lembrados. Há também, o caso da excelente cantora Linda Martell que nos anos 70 foi literalmente expulsa do cenário após lançar o seu disco de estréia.

Escrevi um artigo em 2021 onde levantei diversos nomes fundamentais de artistas negros que ficaram esquecidos ou que nunca foram conhecidos no Brasil. DeFord Bailey, Leslie Riddle, Charley Pride e muitos outros que não são conhecidos em nosso país. Porém, existem dois outros nomes que não estavam naquele artigo e que certamente merecem uma menção por sua importância histórica.

Leia no site o artigo sobre contribuições negras no country music.

Herbie Jefferies Cowboy afro americano no cinema! Country Music

Um desses nomes que foram muito apagados é o de Jim Booker, violinista que participou da primeira gravação com músicos integrados da história dos EUA com o grupo Taylors Kentucky Boys. Durante, o desenvolvimento e a sua transformação em produto artístico em discos e filmes, do que se convencionou chamar de Western Music, um nome pouco conhecido é o de Herbie Jefferies, ator e cantor afro americano que fez filmes e gravou discos dentro deste estilo. Aqui estamos falando de um período onde não se fala em algo como Country Music, mas onde se comercializava discos para negros e discos para brancos.

Jim Booker aparece nestas gravações com o grupo integrado Taylor’s Kentucky Boys

Um outro nome fundamental que não fica de fora dos trabalhos de historiadores que buscam a contribuição negra no Country Music é o de Rufus “Tee Tot” Payne, músico de rua que contribuiu para a formação de ninguém menos que Hank Williams a segunda super estrela da história da música country. Sobre ele Hank Williams afirmou: “Foi a única educação musical de que eu precisei”, o que demonstra a força de músicos negros na formação de instrumentistas, compositores e artistas da música country.

Leia no Oganpazan uma reportagem mostrando as heranças históricas dos vaqueiros negros no Oeste Americano e a origem racista do termo Cowboy 

Da mesma forma, o desenvolvimento das rádios AM naquele país, impulsionam o crescimento e talvez tenham sido os principais responsáveis pela construção identitária e racial do que se tornou o Country Music, programas como o Grand Ole Opry, o equivalente ao “Soul Train” do Country, levaram a música de nomes seminais como Hank Williams, Patsy Cline e do próprio Charley Pride (músico negro a ganhar o prêmio de Melhor disco dois anos seguidos nos anos 70) para todo o território americano no começo e ao longo do século XX.

Este artigo longo para os parâmetros da internet, busca minimamente arranhar a superfície de uma história que possui um longo período de desenvolvimento e de transformações. Na tentativa de tentar pensar por um lado que não é possível qualquer música nos EUA que não tenha bebido da influência afro americana, mas por outro, para o fato de que nem tudo pode ser “escurecido” e nem deve, pois diz respeito a formações históricas e societárias que trabalham na fronteira das raças mas que o capitalismo em sua frente supremacista branca da indústria cultural tornou hegemonicamente fruto da branquitude. O que não impede e não tem impedido ao longo dos anos que também sejam frutos da expressão artística negra.

Como disse o músico Roy Benson, a música country é tudo que chegou nos EUA pela experiência imigrante e foi americanizado, no entanto, a experiência existencial, histórica, política e social de homens e mulheres negras naquele país como no nosso ainda não foi completamente tornado uma experiência cidadã. Neste sentido, a contribuição negra está ali nas raízes, mas a condição do negro americano não coaduna com a tese de que a Country Music seja música negra, longe disso!

-Nem Beyonce conseguirá tornar Country Music música negra e nem será preciso!

Por Danilo Cruz 

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