Cólera Acorde! Acorde! Acorde!(2018) é o primeiro disco de estúdio da banda depois da prematura morte do seu líder e fundador Redson em 2011
O Cólera é uma daquelas bandas que formou gerações através de uma luta incessante dentro do bom e velho Punk Rock. São mais de 10 discos lançados ao longo da carreira de mais de 30 anos, dos quais pelo menos uma dúzia são absolutamente clássicos da nossa tradição punk. A morte prematura do Redson, membro fundador guitarrista, vocalista e compositor da banda foi um duro golpe em seus integrantes, mas não foi o suficiente para por termo a banda. É sempre uma alegria ver que a morte não é forte o suficiente para afastar as pessoas da guerrilha cultural que é a produção de sons que fogem da esfera alienante.
A banda já possuía material que começou a ser composto em 2005 e que ao começar a tomar forma de gravações em 2010, sofreu infelizmente o impacto do falecimento do Redson em 2011, o que fez com que tudo parasse. Muita coisa ensaiada e composições em fase final foram suficientes para em 2014 os caras se levantarem do luto e começarem a trabalhar no disco que agora nos chega, Acorde! Acorde! Acorde! (2018).
Esse processo entregou-nos um disco de estrutura híbrida, contando com uma mini-ópera-punk-rock entre as faixas, demos regravadas no início no disco e as mesmas três demos na voz/guitarra de Redson, fechando a bolacha. No controle musical da banda temos Pierre (bateria e voz), Val (baixo e voz), Fábio (guitarras) e Wendel (vocal). O disco contou com a produção de João Noronha que trouxe novas cores a banda, propondo um estilo mais limpo e trabalhado, inclusive com a inserção bem trabalhada de metais. A arte da capa, muito bonita por sinal ficou por conta do grande Wendell Araújo, um ilustrador brilhante. O disco ganha o mundo via EAEO Records, que já tinha sido a responsável pela remasterização e disponibilizado a discografia da banda no Bandcamp.
O disco abre com as três acima mencionadas “Somos Cromossomos”, “Festa no Rio” e “Capacete Vermelho”, são três canções daquelas que empolgam e abrem muito bem o disco. Nas três composições vigoram os temas da alegria, da contestação, da liberdade e da diversão consciente, uma alegria punk que vai muito além do mero exercício de autodestruição. Destaque para Capacete Vermelho, que emula uma sensação muito forte de liberdade ao aproveitarmos a cidade, uivando como um lobo solitário.
Então tem início outro bloco composto de 5 canções, da critica anti-consumista e anti-capitalista “Décimo Terceiro”, numa rifferama impactante, “Creation” segue a critica a uma sociedade onde a competição é o motor principal. “Mil Turbulências” abre novos caminhos para a banda, tanto na forma da composição quanto no arranjo da canção. Se é verdade que boa parte do material já continha composições do Redson, ficou a cargo dessa nova/velha formação a responsabilidade de terminar ou melhor, de dar forma final às músicas. E é preciso destacar que a produção mais limpa, assim como o acréscimo de metais podem dar uma direção de exploração artística para a banda.
Na sequência “Supressão” não deixa a peteca cair e reinsere o peso mais cru, casando perfeitamente com a composição que bate de frente com as formas de controle mentais de uma cultura e de uma civilização que pretende se fundar através da repressão dos nossos instintos. Questionamentos metafísicos, analises das nossas formas perceptivas aparecem com um frescor muito bonito em “Ska-Metal”, aqui também com uma quebra rítmica e de andamento, ao inserir o bom e velho Ska no jogo.
Como toda boa ópera, é necessário a confecção de personagens que nos desvelem arquétipos impactantes, e “Mr. Gumble” cumpre bem essa função. Pois, o mister Gumble está atomizado em diversas partes da nossa sociedade, Gumble é o seu patrão, o seu pastor, o nosso STF, nossos representantes políticos quando tomados como senhores. Todos aqueles que engajam as pessoas de modo a leva-las a desejar sua própria repressão. “Mezza Mezza”, é a tomada de consciência de quem diante do espetáculo começa a perceber as regras do jogo opressivo e reconhece o seu lugar.
A dupla “Fá Dó Lá” e “Caos”, fazem a passagem dramática com a primeira encarnando o descortinar do teatro dos horrores em que vivemos, destilando críticas ao mercado musical, ao mesmo tempo em que propõem mais ação do que os meros discursos indignados. O blá blá blá atordoante nessa nossa era da comunicação que teima em se fazer ruído. O construir de uma paisagem aterrorizante e completamente desesperançada é o tema de Caos, que cumpre essa função com extrema perfeição, talvez o destaque individual do disco. Fruto de sua perfeita adequação entre música e texto nessa pequena ópera punk rock. Excelente trabalho do guitarra Fábio merece ser aqui destacado.
Fechando a ópera, “Hino” é uma história homenagem aos heróis que não se rendem em tempo nenhum, da repressão dos anos 60 até o movimento punk que surgiu no Brasil no fim dos anos 70. Redson aí incluso como um dos moleques que fizeram da música o veículo para insatisfação e a insubmissão constante. A música é uma bonita profissão de fé punk, apostando suas fichas na renovação constante, mesmo que não tão grande ou divulgada, daqueles espíritos que conseguem farejar a opressão e se rebelam, se rebelarão contra o sistema.
Temos então a inserção das três demos gravadas ainda em 2009 com o Redson no comando e que finalizam o disco. Ao fim e ao cabo, Acorde! Acorde! Acorde!(2018) pode ser visto como a retomada da banda sem seu fundador e líder, tateando através de materiais que já estavam sendo pensados, novos possíveis caminhos. Uma banda que segue azeitada e competentemente barulhenta, precisa continuar de alguma forma. Sempre diante da morte de uma figura tão icônica e historicamente relevante para a história da música rock é comum pensarmos que a banda necessariamente chega ao fim. Esse disco é uma boa prova de que o espirito de Redson pode ser levado adiante, de que a tradição e os “hinos” que ele forjou precisarão ser sempre mais uma vez entoados.
E certamente a mesma base de fãs que apoiou o financiamento coletivo desse disco, com certeza estará presente nos próximos projetos da banda. Vida longa ao Redson, Vida longa ao Cólera, a insubmissão exige.