Coleção de Estragos, uma trajetória de reparos.

Coleção de Estragos, álbum mais recente de Gigito, foi lançado no dia 17 de fevereiro. Resultado das experiências do músico ao longo da reclusão social durante 2020.

Coleção de Estragos
Capa do novo álbum de Gigito.

Coleção de Estragos, este poderia ser o título para o arco da história recente do Brasil, que se inicia em 2013 e chega até o momento em que você lê esse texto. Poderia ser também o nome para os eventos que compõem o desastroso governo do excrementíssimo presidente da república Jair Bolsonaro, ou ainda, o título da política necrófila empreendida pelo governo federal para lidar com a pandemia do Covid 19 aqui no Brasil.

Nosso país ainda seguirá por um bom tempo aumentando sua coleção de estragos. Contudo, Coleção de Estragos, é o título do novo álbum do fenomenal músico baiano Gigito. O nome do álbum, que tão bem define o Brasil atual, também expressa o que foi a experiência da classe trabalhadora brasileira ao longo de 2020, com os protocolos de contenção do corona vírus. Enquanto os estragos vão se acumulando, a comunidade artística segue fazendo os reparos necessários para se manter vivendo. 

Gigito, fazendo parte da categoria artista independente, recebeu o pacote completo referente à realidade para esse grupo de trabalhadores durante a pandemia. Sem ter como se apresentar, reunir-se com seu parceiro de criação e banda, Daniel Iannini, para compor e gravar as músicas, foi necessário procurar soluções que permitissem seguir compondo e tocando, enfim, reparando os estragos causados cotidianamente pela situação que nos acomete há mais de um ano.

Criativo e inquieto, Gigito encontrou as soluções e seguiu produzindo durante a quarentena. As oito faixas que compõem Coleção de Estragos, além de compostas em isolamento social, foram lançadas em forma de vídeo clipes. Na medida que as músicas eram gravadas, iniciava-se a elaboração do videoclipe, que prontamente era lançado no canal de Gigito no YouTube e divulgado em suas redes sociais. 

Coleção de Estragos traz outra novidade, a formação da banda em trio com a chegada de Arthur Rios que assume as baquetas. Este será o primeiro álbum da banda com essa formação, até o Faça com o que Tem não Espere por Nínguém de 2017, Gigito e Daniel eram os únicos componentes da banda. Claro, sempre com a presença de convidados dando sua contribuição nesta ou naquela faixa.

Gigito falou um pouco sobre a dinâmica necessária para produzir o novo álbum e respeitar os protocolos contra a disseminação do Covid-19:

Primeiro que dessa vez contamos com o meu irmão, Artur, para tocar e gravar as partes de bateria e percussão. Segundo que eu tinha as ideias das músicas em casa, transcrevia tudo para um programa, enviava para Daniel, que entendia o que era para ser feito e fazia as alterações que achava preciso no seu instrumento. Eu gravava toda minha parte, depois meu irmão a bateria e então eu enviava para Daniel gravar o baixo. Em nenhum momento nos encontramos pessoalmente e graças as maravilhas da tecnologia, nós pudemos fazer tudo de uma maneira fluída e funcional. 

Abre o set de músicas do álbum a “canção de ninar” Ratos Canibais. Nesta fábula de terror um navio, tripulado por ratos, está à deriva no mar. Entendemos melhor o cerne da história a partir de um detalhe presente no clipe, o nome do navio, Tântalos. Este é um personagem importante da mitologia grega. Filho de Zeus, Tântalos recebeu como punição, por ter servido a carne de seu filho Pelope em um banquete oferecido aos deuses, a impossibilidade de satisfazer a fome e a sede que lhe acometiam.

Na fábula dos ratos canibais de Gigito, um dos ratos aproveita de sua superioridade física para comer seus irmãos. Assim como Tântalos, usa um artifício para atrair suas vítimas, pede um abraço ao amigo da vez e o esfaqueia pelas costas. Esta dinâmica é adotada pelos demais ratos, a seleção natural faz sua parte e o rato mais forte, aquele do tamanho de um gato, sobrevive. Contudo, tal qual Tântalos, recebe sua punição pelo crime cometido. Vê-se impossibilitado de satisfazer sua fome, pois não há mais vítimas e acaba encontrando seu trágico fim.

Claro, fica difícil resistir à tentação de fazer uma analogia desta fábula com a atual condição política, social e econômica do país. Não sei se foi a intenção de Gigito, mas fato é que Ratos Canibais nos ajuda a refletir sobre nossa condição enquanto nação. O Brasil se converte neste navio à deriva, capitaneado pelo verdugo responsável por banhar de sangue o cotidiano do país ao cruzar os braços e assistir, fazendo piadas, fazendo comentários que minimizam a gravidade da pandemia (aqui),  o vírus ceifar centenas de milhares de vidas.

Em seguida vem a faixa Banda de Roque. Não falaremos sobre essa faixa nesta resenha simplesmente por vocês poderem ler esta matéria completa sobre o clipe desta música lançada por Gigito no ano passado.

Tutancâmon foi um faraó egípcio que ganhou fama a partir da descoberta de sua tumba em 1922. Isso porque, além de ter sido encontrada intacta e ornada por milhares de objetos, teve associada à sua descoberta a morte de alguns membros da expedição que  “violou” o descanso eterno do faraó. 

Esse fato gerou a lenda da “Maldição do Faraó”, exaustivamente abordada pela cultura pop dos quadrinhos, passando pela literatura pulp até o cinema. The Mummy, filme de Karl Freund lançado em 1932 e estralado pelo lendário ator Boris Karloff, colocou a múmia no hall dos “monstros” clássicos do imaginário do terror dentro da cultura pop.

A faixa Tutâncamon é uma espécie de prog. western cuja letra versa sobras histórias que orbitam em torno da figura da múmia do faraó egípcio. Há um primeiro arco em primeira pessoa que expõe as aflições da múmia do Rei Tut,  finalizado com a abertura de sua tumba, anunciada pela voz aterrorizante da múmia.

Nesse ponto uma tensão é gerada, há o momento dramático nos preparando para a consequência da profanação do descanso do faraó. Neste momento a música muda e somos conduzidos a uma nova atmosfera. Uma passagem para o mundo dos mortos ou uma viagem causada por alguma substância envolta no ar da tumba, mas o fato é que  neste momento se estabelece um novo arranjo no qual solos de banjo e violão se revezam alternando momentos de tensão e alívio por meio de  fraseados diversificados.  Para quem ainda não assistiu aqui está o link do clipe desta música.

A faixa 04 transmite sensações de desconforto em quem houve. Começa sem uma linha melódica e harmônica convencional, colocando o ouvinte, já no início, numa condição confusa, sem qualquer forma de situar-se. A execução da música gera uma sonoridade que agride os ouvidos acostumados com a organização musical convencional, comum à música convencional.

Claro, este resultado é intencional. Associando essa sonoridade ao título da música, Disgraça, percebemos se tratar de um desabafo, de um protesto através de xingamento por causa de alguma situação que desagrada e impacta negativamente nossas vidas.

Levando-se em consideração a realidade caótica em que vivemos por conta do Covid 19, mas principalmente por decorrência de um presidente incompetente, despreparado, com arroubos fascistas, indiferente à vida da população brasileira, insensível às mortes causadas direta e indiretamente pela doença, podemos considerar que esta música consiste nesse praguejar contra essa condição na qual estamos imersos e que só encontra na expressão Disgraça, a força e expressividade adequada ao modo como nos sentimos.

Por isso, a meu ver, a música tem esse teor incômodo, um modo de interagir com o ouvinte a partir da realidade caótica na qual vivemos, inclusive o colocando em contato com a mesma através dos sentimentos, sensações e emoções que desperta com suas notas e frases. 

Em seguida vem a música Nostradamus, que traz consigo um tom profético no próprio arranjo musical, que nos remete à sonoridade medieval, conjugada aos dedilhados fervilhantes de Gigito nas cordas do seu banjo, interrompidas pelos anúncios de uma profecia apocalíptica que alerta para as pragas e mazelas que recaíram sobre a humanidade.

Não sei vocês, mas o quadro profético exposto em Nostradamus não assusta mais, uma vez que vivemos numa realidade na qual somos governados por um trapalhão alucinado e genocida, aliado a uma doença extremamente contagiosa e fatal. Fica difícil conceber uma profecia que bata essa realidade.

Mustache Rag é um ragtime que quebra o clima de tensão das faixas predecessoras e traz um momento de tranquilidade propício ao relaxamento. Segue-se a ela Música de Lual, cujo título passa a ideia de que encontraremos uma forma musical característica desse encontro à beira mar pra encher a cara de vinho São Jorge ou Corote, ouvir um chacundum chacundum, descompassado no violão, enquanto em coro as pessoas presentes cantam junto com o batedor de cordas como se atendessem o pedido de alguma estrela decadente do axé durante o carnaval de Salvador através do famigerado “Agora só vocês!”.

Somos surpreendidos por uma música cuja letra fala sobre alguém em conflito consigo mesmo. Em dificuldade de lidar com a solidão, busca nas interações sociais banais um modo de preencher o vazio existencial que o aflige. Certamente o lual entra como metáfora para sinalizar a tentativa de se inserir num circulo social no qual não consegue se adaptar, gerando outras questões dirigidas a si mesmo na tentativa de entender o que está acontecendo.

Ouvindo a faixa percebemos a sensação de angústia do eu lírico, tendo que lidar com o conflito interior em choque com o mundo ao seu redor, onde as pessoas estão felizes e o julgando, insensíveis à sua condição, incapazes sequer de um gesto de solidariedade ou empatia. Nesse sentido, Música de Lual é a mais densa e traz consigo um tom sombrio e desesperançoso com relação a vida, embora não alcance um pessimismo radical, uma vez que considera a morte uma condição pior que a vida, por pior que ela seja. A vida pode ser uma merda, mas não o suficiente para considerar a morte algo melhor que ela. 

Coleção de Estragos finaliza com Subir pra Baixo, música que elenca uma série de ações contrárias ao que determina o bom senso, revelando uma disposição à agir sem se preocupar com as consequências dos atos, o famoso “Ligar o foda-se”.

Nada melhor que terminar uma Coleção de Estragos lingando o foda-se! Porém, segure sua onda, ligue seu foda-se quando estivermos todos vacinados e a pandemia tiver passado. Quem tá ligando o foda-se durante a pandemia parou de colecionar estragos, agora faz parte das estatísticas negativas da covid 19. 

Mais de Gigito no Oganpazan aqui!

COLEÇÃO DE ESTRAGOS

GIGITO – BANJO, VIOLÃO, BANDOLIM E VOZ
DANIEL IANNINI – CONTRABAIXO E BACKING VOCAL
ARTUR RIOS – BATERIA, PERCUSSÃO
LUCAS MEDEIROS – SANFONA (FAIXA 5 – NOSTRADAMUS)

LETRAS POR: GIGITO
MIXADO E MASTERIZADO POR: ESTÚDIO F*DA-SE

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