O Festival Chic Show comemorou 50 anos de um dos eventos mais importantes da história da música e da cultura negra brasileira.
Foi um imenso prazer, Chic Show! Quem diria que aquela ideia ousada, nascida no coração da capital paulista, se tornaria uma lenda viva da cultura black? A Chic Show, a mais icônica equipe de baile do Brasil, completa 50 rotações de ano com uma festa de gala no Allianz Parque.
A noite que teve Lauryn Hill, Wyclef Jean, YG Marley, Mano Brown, Criolo, Jimmy “Bo” Horne, Rael, Sandra Sá, DJ Luciano, DJ Preto Faria, DJ Grandmaster Ney foi especial e mágica, mas é a ponta de uma história que se iniciou 50 anos atrás. E como que essa parada agitava jovens que hoje são avós, o Submundo do Som conta na sequência.
Chic Show: A Revolução dos Bailes Pretos e a Jornada de Luizão
Nos anos 70, em um Brasil marcado pela repressão da ditadura militar, a juventude negra teve sua voz ativa e encontrou uma forma de resistência e celebração nos bailes blacks. Dentre esses eventos, a Chic Show, fundada por Luiz Alberto dos Santos, mais conhecido como Luizão, destacando-se como a maior festa black da comunidade negra do Brasil. Luizão, um visionário, transformou os bailes pretos em uma instituição cultural que ressoava não apenas com a música, mas com a identidade e a resistência negra.
Luizão começou sua trajetória como DJ, apaixonado pela música negra. Em suas primeiras festas de aniversário, chamadas de “discoteca do Luizão”, ele tocava James Brown e Aretha Franklin, que estavam mais alinhados com a vibração jovem e moderna que ele desejava. Com o tempo, essas festas evoluíram e se tornaram a Chic Show.
“O preto quer balançar. O preto precisa se divertir”, declarou Luizão em uma entrevista, resumindo a essência dos bailes blacks.
Em 1974, Luizão vislumbrou a oportunidade de levar a Chic Show para um novo patamar ao realizar os bailes no ginásio do Palmeiras, um clube tradicionalmente frequentado pela elite branca. “Era um lugar onde todo negro queria ir”, lembra Luizão. A primeira festa no Palmeiras contou com Jorge Ben, atraindo 12 mil pessoas. Esse evento marcou o início de uma revolução cultural em São Paulo.
Antes de seguir com a história da Chic Show e do Luizão é necessário falarmos da relação entre os bailes blacks e a Sociedade Esportiva Palmeiras, como o próprio Luizão adiantou acima. Essa história entre o Palmeiras e a Chic Show se confunde com a própria história da música negra paulistana das décadas de 70 e 80.
A Invasão Negra no Palmeiras: Chic Show e a Revolução Cultural nos Anos 70 e 80
Na década de 1970, o Palmeiras destacou-se como um epicentro da revolução cultural e social que varreu a cidade. Essa colaboração marcou uma era de transformação, enfrentando preconceitos e trazendo à tona a vibrante cultura negra paulistana.
“A chegada da Chic Show foi como uma invasão negra no território branco”, relembra Luizão. Inicialmente, os bailes enfrentaram resistência, com os sócios do clube e torcedores não aceitando bem a presença de jovens negros em um espaço tradicionalmente reservado à elite branca. Porém, o apoio do diretor social do Palmeiras, Claudio Mezzarane, foi crucial para a continuidade dos eventos. Mezzarane, descrito como “um branco de alma negra,” desafiou a diretoria do clube, permitindo que a Chic Show se consolidasse no ginásio.
Desde o primeiro baile com Jorge Ben Jor, o ginásio do Palmeiras tornou-se palco para grandes lendas da música negra brasileira e internacional. Artistas como Djavan, Bebeto, Sandra de Sá, Carlos Dafé, Tim Maia e Gilberto Gil marcaram presença, elevando a Chic Show ao status de referência cultural. A grandiosidade atingiu seu ápice em 11 de novembro de 1978, quando o palco recebeu o lendário James Brown. Mais de 20 mil pessoas lotaram o ginásio para ver o “Padrinho do Soul” em ação, em um show que ficou para a história.
Os bailes não eram apenas festas; eram atos de resistência. A repressão policial e o racismo eram constantes, mas os jovens negros encontraram nesses eventos um espaço para celebrar sua identidade e resistir às opressões diárias. “Antes do movimento soul, para ir a um baile black, as pessoas tinham de se vestir como os brancos”, lembra Luizão, destacando a importância do movimento black power na afirmação cultural e estética dos jovens negros.
A parceria entre o Palmeiras e a Chic Show pavimentou o caminho para futuras gerações de músicos e artistas negros. Na década de 90, por exemplo, o grupo de pagode Katinguelê, liderado por Salgadinho, encontrou na Chic Show uma plataforma para se lançar. “A parceria entre Chic Show e Palmeiras foi uma união muito combatida, mas que deu muito certo”, afirma Luizão, com a certeza de quem fez história.
Vale citar o livro “No gramado em que a luta o aguarda: antifacismo e a disputa pela democracia no Palmeiras”, do pesquisador Micael Zaramella. O historiador traz uma abordagem profunda acerca das lutas antifascistas e disputas históricas nas entranhas da Sociedade Esportiva Palmeiras em defesa de valores democráticos mostrando como futebol e política são indissociáveis no clube.
O Apogeu da Chic Show
Após o sucesso inicial, a Chic Show não teve mais medo de ousar. Tim Maia, Earth, Wind & Fire, Parliament Funkadelic e James Brown foram alguns dos ícones da música negra que se apresentaram no clube de Perdizes. Luizão lembra com orgulho: “Era um quilombo no centro de São Paulo”.
A Chic Show também foi fundamental na difusão do samba-rock, um estilo musical que nasceu nos bailes e se tornou característicamente paulistano. O impacto da Chic Show foi tão grande que artistas como Thaíde e DJ Hum, e Emicida homenagearam o baile em suas músicas, reconhecendo sua importância na formação da identidade cultural negra em São Paulo.
-Leia artigos e resenhas sobre Emicida no site
Os bailes da Chic Show não se limitaram apenas à capital. Eles se espalharam pelas periferias e outras cidades, promovendo uma verdadeira revolução cultural. Com o tempo, a Chic Show também passou a ser referência na mídia, com programas de rádio na Bandeirantes e Transcontinental, difundindo a cultura negra para um público ainda maior. “A Chic Show cresceu demais. O baile se tornou pouco. O rádio foi um sonho que se tornou realidade”, afirma Luizão.
Em 1992 a equipe deu uma pausa em suas atividades, mas ao longo dos anos subsequentes seu legado se mostrou vivo e importante principalmente para o rap nacional cujos artistas se mostraram verdadeiros herdeiros dessa fase dos bailes. O exemplo mais latente é o de Mano Brown com o seu disco solo Boogie Naipe, de 2016. Nesse trabalho, o MC dos Racionais bebe do soul e funk remetendo uma sonoridade das festas dos anos 70 e 80.
Em 2023 a Globoplay produziu o filme Chic Show, um documentário sobre a equipe de baile com direção de Emílio Domingos e roteiro de Milena Manfredini, além de depoimentos de Mano Brown, Emicida e Jorge Ben.
O legado e a continuidade da Chic Show atravessaram as décadas e eis que em 2024, a parceria entre o Palmeiras e a equipe de baile retoma com a celebração dos 50 anos da Chic Show no estádio Allianz Parque. O evento aconteceu no dia 13 de julho e reuniu 45 mil pessoas, com apresentações de Lauryn Hill, Wyclef Jean e YG Marley, além do próprio Mano Brown. Este evento reafirmou a importância da Chic Show na cena cultural paulistana e brasileira.
A noite do dia 13 de julho não foi apenas um baile de comemoração, mas um verdadeiro espetáculo que resgatou a essência dos anos 70 e 80 e trouxe uma mistura irresistível de nostalgia e renovação. Quem deu início à festa foi a nossa rainha do soul, Sandra de Sá, com seus “Olhos Coloridos” e o hit “Joga Fora” em uma performance tão eletrizante que mais parecia um raio de energia atravessando o estádio.
Na sequência, o rap paulistano marcou presença com Rael e Criolo, que deram um show à parte com a mescla das letras engajadas e batidas pesadas com o suingue e malemolência que os anos de experimentação lhe proporcionaram. Logo após, Jimmy Bo Horne, uma lenda dos bailes black, fez o público dançar ao som de “Rock Your Baby” e “You Get Me Hot”, relembrando os primeiros tempos da Chic Show.
Mas a cereja do bolo foi mesmo o Mano Brown, que subiu ao palco com a Boogie Naipe e mostrou que seu sonho de ser um “funkstar” virou realidade. Ao som de “Gangasta Boogie” e “Dance Dance Dance”, ele incendiou o Allianz Parque, mas sem deixar de lado o rap que o consagrou. Junto com Ice Blue e Edi Rock, Brown presenteou a galera com “Fórmula Mágica da Paz”, transformando o estádio num mar de vozes uníssonas.
E, então, chegou a estrela da noite: Ms. Lauryn Hill. Com “Everything is Everything”, ela fez as 45 mil pessoas presentes tremerem as estruturas do estádio. Lauryn navegou por seu álbum vencedor do Grammy, “The Miseducation of Lauryn Hill”, com hits como “Lost Ones”, “Ex-Factor” e “To Zion”. A emoção foi ao auge quando Zion Marley, seu filho, subiu ao palco para uma versão poderosa de “Best of Me”, seguido pelo irmão Yg Marley, que manteve o público em êxtase com “Marching of Freedom” e um cover de “Zimbabwe” de seu avô, Bob Marley.
Lauryn Hill encerrou sua participação com chave de ouro, cantando os clássicos do Fugees ao lado de Wyclef Jean. “Killing Me Softly With His Song”, “Ready or Not” e “Fu-Gee-La” fecharam a noite com a força de um verdadeiro hino, deixando uma mensagem poderosa de resistência e celebração da cultura negra.
A Chic Show, que começou nos tempos da ditadura militar, sempre foi mais do que uma festa: foi um grito de liberdade e um ponto de resistência contra a repressão. Agora, 50 anos depois, continua sendo um símbolo de orgulho e uma fonte inesgotável de cultura e diversão. Essa noite não foi apenas uma comemoração, mas uma reafirmação de que o black power está mais vivo do que nunca.
-Chic Show, 50 anos de história, groove, afirmação e luta!
Por Jeff Ferreira (Submundo do Som)