CANTO DOS MALDITOS (2020): Um Ensaio Fanoniano

CANTO DOS MALDITOS (2020): Um ensaio fonográfico fanoniano  sobre Desordem de Estresse Pós-Trauma(DEPT) na guerra racial na Bahia

Franz Fanon no capítulo “Guerra Colonial e distúrbios mentais” de sua obra Os Condenados da Terra,  faz uma análise minuciosa dos efeitos psicossociais da violência estrutural contra o colonizado, sobretudo aqueles que sobreviveram, ou tiveram amigos/parentes mortos violentamente no contexto da guerra de libertação da Argélia,

Este relato não é, obviamente, um trabalho científico. Evitamos toda discussão semiológica, nosológica ou terapêutica. Os poucos termos técnicos que usamos aqui servem apenas de referência … Ao fazer isso, privilegia-se o acontecimento que desencadeou a doença, embora, aqui e ali, sejam  mencionados o papel do terreno e do meio. Parece-nos que, nos casos apresentados aqui, o acontecimento desencadeante é principalmente a atmosfera sangrenta, impiedosa, a generalização de práticas desumanas, a impressão tenaz que as pessoas têm de assistir a um verdadeiro apocalipse (FANON, 2013, pag 289-290)

Como já alertou Franz Fanon são múltiplos os impactos psicossociais que afetam os cotidianos de pessoas que  sobrevivem  dentro de um contexto de violência letal extrema, onde, além do risco de morte permanente, convivem com perdas abruptas de  familiares, amigos ou  conjugues. Os efeitos psicossociais  vão desde impactos físico-emocionais,  a variados sintomas de Desordem de Estresse Pós-Trauma (DEPT);  insônias, pesadelos, ansiedades, medo constante de morrer violentamente, isolamento afetivo-social, sentimento de ódio e uma sensação de luto estendido.

Sendo assim, no  contexto da  guerra racial de alta intensidade em curso na Bahia, existem vítimas matadas, matadores e sobreviventes, muitos dos quais, vivendo constantemente na sombra da morte , seja pelo risco constante de serem atingidos no fogo cruzado, ou por terem parentes, amigos ou cônjuges que foram atingidos diretamente pelos projéteis de arma de fogo. Além da violência dos disparos de arma de fogo , há também uma violência racial psicológica, que tem impactado diretamente nos itinerários de pessoas negras, sobretudo, de jovens homens negros.

Como indica a  pesquisa “Óbitos por suicídio entre adolescentes e jovens negros – 2012 a 2016”, realizada pelo Ministério da Saúde e a Universidade de Brasília, pessoas negras  sofrem mais do suicídio, em especial aqueles do sexo masculino entre 10 e 29 anos. De 2012 a 2016, por exemplo, aumentou enormemente  o número de negros vítimas do suicídio, passando de 53,3% para 55,4%, na comparação com as demais raças. Entre os brancos, o dado diminuiu de 40,2% para 39%. Dentro desse contexto, contemporaneamente no Brasil jovens homens negros são 50% mais vitimas de suicídio do que pessoas brancas e, seis vezes mais do que mulheres negras.

É dentro desse pano de fundo, do avanço de violência racial  física e psicológica , que tem atingindo de sobremaneira jovens homens negros , que  o EP Cantos dos Malditos reinsere o debate sobre adoecimento  mental crônico na comunidade negra,    através de um ensaio fonográfico sobre depressão, crises de ansiedade, bipolaridade, esquizofrenia , uso abusivo de substancias psicotrópicas e, sobretudo,  a presença de sintomas de  Desordem de Estresse Pós-Trauma (DEPT) na experiência masculina negra.

Historicamente a Desordem de Estresse Pós-Trauma (DEPT) foi estudada  por psicólogos, psiquiatras e antropólogos de guerra, a partir da observação da trajetória de vida de pessoas que viveram diretamente situações de extrema violência e sobreviveram: soldados em guerras, vítimas de estupro, policiais; ou mesmo,  grupos de pessoas que passaram por experiências de catástrofes naturais, como furacões, terremotos ou erupções vulcânicas .

No entanto, o conceito foi sendo reelaborado dentro do  contexto de mudança das dinâmicas de violência letal por arma de fogo  a nível planetário, de tal modo que,  contemporaneamente a maioria das pessoas que vivem um evento traumático letal, como por exemplo, a perda de amigos,  familiares ou conjugues decorrente de mortes violentas, são seriamente afetados, na maneira de pensar, sentir e agir, podendo, em casos extremos, interromper a vida profissional e pessoal. Nesse contexto, a Desordem de Estresse Pós-Trauma (DEPT) atinge cada um-a de uma maneira particular, no entanto, os sintomas mais evidenciados são:

  1. memórias recorrentes, intrusivas e debilitantes do acontecimento; inclusive imagens, pensamentos ou percepções;
  2. sonhar e ter pesadelos repetidos com o acontecimento;
  3. intenso mal-estar psicológico ao ser exposto a indicadores do leque de lembranças, internos ou externos, que simbolizam ou parecem com um aspecto do evento traumático;
  4. esforço para evitar pensamentos, sentimentos, sensações e conversas associadas ao trauma;
  5. esforço para evitar atividades, lugares ou pessoas que provocam lembranças deste trauma;
  6. incapacidade em lembrar um ou mais aspectos importantes do trauma;
  7. sensação de isolamento e de afastamento dos demais;
  8. limitação na capacidade afetiva, inclusive com impossibilidade de amar;
  9. “encurtamento” do futuro, não sonha, pensa, nem planeja uma carreira, casamento, família, filhos ou uma duração normal da vida.
  10. dificuldades em dormir ou em continuar dormindo;
  11. irritabilidade e explosões de mau humor;
  12. dificuldades na concentração;
  13. hipervigilância

No EP Canto  dos Malditos,  os Mcs Troll & Aganju , municiados de flows distópicos, rimam em cima de instrumentais sampleados de ruídos, apresentando um olhar microscópico sobre a experiência mórbida que é o itinerário masculino negro de jovens que sobrevivem nas Zonas Limítrofes a morte no recôncavo sul da Bahia. Uma experiência intercruzada com fortes sintomas de Desordem de Estresse Pós-Trauma (DEPT), já que os dois Mcs tem histórico de amigos, familiares ou pessoas próximas assassinadas por arma de fogo .

Toda essa energia mórbida  e psicologicamente densa presente no EP Canto dos Malditos, ganha substancia através da sonoridade  impar  dos instrumentais produzidos  por Aganju, que constrói um campo sonoro sinestésico, que atribui uma atmosfera quase que cinematográfica ao EP Canto dos Maldito. De acordo Aganju, os beats do EP foram produzidos em um período de aproximadamente 6 meses, onde produziu cerca de 40 instrumentais , onde utilizou plugins de ruídos, gritos, estrondos  batidas de portas , sintetizadores de musica eletrônica e,  samplers  variados de sons que não necessariamente eram instrumentos.

O EP Canto dos Malditos se insere musicalmente dentro da extensa  tradição subterrânea do chamado horror-core, que é um subgênero do rap, que surgiu em meados da década de 1980, através da hibridação sonora do Gangsta rap e o hardcore,  tendo como principais características um conteúdo lírico e imagético baseado  no horror cinematográfico, na violência urbana e na imersão criativa em dramas psicológicos, distúrbios mentais , abuso de drogas e psicodelia sonora.

 O Ep Canto dos Malditos nesse sentido retoma e, em certa medida reinsere,  a tradição criativa do horror-core no  cenário independente  do  rap nacional, a partir de uma abordagem que revela minuciais da experiência de terror racial vivenciadas por jovens homens negros no recôncavo sul baiano, estabelecendo um profundo diálogo intercultural com dilemas psicossociais, afetivos, políticos e espirituais de jovens homens negros na Bahia contemporânea – amor, ódio e violência autodestrutiva – que assumem novas abordagens a  partir de  fluxos e contrafluxos de flows  inimitáveis, que ganham novas colorações sonoras  através dos instrumentais produzidos por  Aganju.

            Outro aspecto a ser ressaltado do EP Canto dos Malditos é o próprio nome da obra, que é uma referencia ao livro com o mesmo nome. No livro  Canto dos Malditos, o autor  Austregésilo Carrano, relata com minucia microscópica sua experiência traumática como paciente de um hospital psiquiátrico, onde viveu por anos em condições desumanas e conheceu de perto o terror  dos manicômios no Brasil, que baseiam seus tratamentos em sessões de eletrochoque e  na aplicação de doses   cavalares de sedativos altamente viciantes.

Tal  qual Austregésilo Carrano em seu livro, os Mcs Troll & Aganju terrificarem o debate sobre saúde mental, reinscrevendo a experiência masculina negra contemporânea; doentia, contraditória, autodestrutiva e, muitas vezes, psicótica, sobretudo, dentro de um pano de fundo de  uma guerra racial de alta intensidade em curso no subterrâneo das cidades baianas, um conflito de alta intensidade do ponto de vista do arsenal empregado e racialmente estruturado, no tocante a quem está morrendo e quem está matando. Um conflito que além de mortes, tem gerado uma geração de jovens negros  mutilados psicologicamente, acossados  e encurralados aos cantos malditos de uma sociedade que  odeia molecularmente homens negros, ao ponto de mata-los cotidianamente, sem causar nenhum tipo de comoção de grandes proporções.

Por fim, cabe ressaltar que o  EP Canto dos Malditos é um ensaio fonográfico , que ainda não terminou, pois esta apenas no lado A. O EP Canto dos Malditos mostra em uma perspectiva microscópica , como a violência estrutural gratuita contra pessoas negras, notadamente, direcionada a jovens homens negros,  tem afetado as trajetórias de vida, projeções para o futuro e  percepções afetivo-sensoriais de uma geração mutilada psicologicamente. 

-CANTO DOS MALDITOS (2020): Um Ensaio Fanoniano

Por  Ciborgue Preto

 Leia o livro : Os Condenados da Terra, de Frantz Fanon .  Tradução Elnice Albergarua Rocha, Lucy Magalhães. Juiz de Fira ; Ed. UFJF. Coleção Cultura Volume II. Segunda reimpressão; 2013

 

Ficha Técnica:

Composições: Troll & Aganju

Interpretado por: Troll & Aganju

Beats/Instrumentais: Aganju

Mix/Master: MK LoKonsciente

Prod. Executiva: Ibori Studio

Direção de Arte: Aganju

Tag: Troll

Arte Gráfica: Gato Preto Comunicação Comunitaria

Gravado por Val Maloka, no Studio Maloca Rec , primeiro semestre de 2018 , Santo Antonio de Jesus-BA

Instagram dos artistas :

Troll:  @aka_troll

Aganju: @aganju_dref

Ibori Studio: @iboristudio

Facebook: Troll, AganjuIbori Studio.

 

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