Quando ouvi o Grateful Dead pela primeira vez fiquei perplexo. O conjunto da obra era brilhante, mas foi outro fator, algo extra campo, que fez minha cabeça depois de já estar baqueado com a psicodelia da banda. Os fãs do clã de São Francisco, os ”Deadheads”, rapaz, como eu queria ser um membro dessa caravana em forma de jam band.
O fascínio pelo som da Bay Area. O mais puro veneno lisérgico… A voltagem era viciante, a platéia saia dos shows e não conseguia voltar pra casa, por isso começaram a seguir a banda e junto dela, marchar rumo ao utópico e positivo planeta Hoffmann. ”Open your mind” eles disseram.
O problema é que isso rolava nos anos 70, época onde o estilo ”deixa a vida me levar” estava no auge, característica que hoje em dia colide violentamente com os moldes caretas de nossa atual conjuntura global.
Mas a música segue sendo feita. As tours mundiais são montadas, a grade se inicia e aí o caos começa a se infiltrar da mesma maneira que um dia já aconteceu num show do Dead. É uma experiência e tanto, algo que nunca tinha provado antes, até a Abraxas anunciar que o Kadavar estava escalado para 4 shows no Brasil.
A primeira bomba explodiu em Goiânia. Com o patrocínio de mais um fest Vaca Amarela, o trio alemão chegou na escaldante terra do gole da tradição, a pinga 88, e fez com que as dependências do Martim Cererê demonstrassem a força de uma potência.
Sim meus amigos, a cena da tradicionalíssima cidade estava em peso. Foi gratificante ver toda a movimentação das 7 bandas envolvidas (sendo 6 da cena local), lotando a casa e encerrando a noite com a primeira dose de Abraxas, o estopim psicodélico, o primeiro shot de Kadavar.
Foto: Macrocefalia Musical |
Rolou um som com o Sheena Ye, ecos de Fuzz com o The Revengers, retoques psicoespirituais com o Almirante Shiva e uma cascata de chiados com o DogMan, Dry, Overfuzz, Hellbenders… Foi uma sequência de peso, alta densidade, plurimusicalidade e uma amostra de como existe muita coisa rolando nos vários estados em que essa tour passou. É realmente um desafio entender como festivais dessa magnitude não são mais apoiados e respeitados por todo esse trabalho duro.
Mas nesse dia em particular, quem estava nos shows foi para prestigiar, sair com uma lista de novos grooves e ver como o underground segue tirando leite de pedra. Tudo bem que quando o Kadavar subiu no palco nem pedra tinha mais, a fricção dos caras fez com que os farelos virassem sultões.
Foto: Macrocefalia Musical |
Pela oportunidade de circular por Goiânia, São Paulo, Rio de Janeiro e Florianópolis, vendo não só as cidades e seus ambientes, mas suas rotinas, as pessoas e as novas bandas em cada passagem, cruzando e descruzando nosso pais, o La Parola e o Macrocefalia Musical puderam confirmar e reconfirmar (até com a Dow Jones), como esse trio de barbudos jesuítas está um grau acima de tudo que impera dentro da música pesada hoje em dia.
A primeira noite foi em Goiânia. Logo de cara o show já começou como se fosse um campo minado, com um track atrás da outra, durante mais de uma hora, sem mimimi, no seco e com uma timbragem assustadora.
O reverendo Christoph Bartelt é um dos bateristas com maior peso de síncope. O kit do aprendiz de viking é compacto, mas seu grande segredo é que ele não é um marionete de batidas, ele não cria a esmo, a pulsação surge através dele.
Foto: Macrocefalia Musical |
Na guitarra o feeling de Christoph Lindemann para administrar os vocais junta da guitarra é impressionante. O cidadão comprova que o riff ainda é a alma do negócio e no meio dos improvisos, é notável saber como cada um dos 3 se eleva sem entrar em devaneios desnecessários.
O groove do Kadavar é outra coisa que se destaca. O baixo de Simon Boutloup não segue a batera, ele entra nas ranhuras do vácuo deixado entra a bateria e a guitarra e se cria ali, nesse curto espaço de expansão. Não deixando as quatros cordas perderem o impacto e endossando a base do som que é o que faz você reconhecer o trio na hora.
Foto: Macrocefalia Musical |
Em São Paulo tudo isso se repetiu, mas é ai que a experiência de seguir a caravana se mistura e no fim surge como um coquetel globalizado. No Inferno Club tivemos outras bandas no Line up e a inauguração do Abraxas Fest.
Arte: Rafael Plaisant |
O front das atrações foi substituído. Agora era hora de sentir a sinergia dos caras do Muñoz Duo e o peso translúcido da cena de Natal, mais especificamente da arenosa Rio Grande do Norte com os caras do Son Of a Witch e seus parceiros de Mossoró: o Monster Coyote.
Os acontecimentos não se deram nessa ordem, primeiro veio o Monster Coyote e aí o trio deixou claro com quantos bate cabeças nós podemos quebrar um pescoço. Apoiando boa parte do repertório sob o novo disco da banda (o excelente e recém lançado ”Neckbreaker”), a apresentação do combo foi contundente, o entrosamento bastante azeitado e cada um dos envolvidos merece destaque. O peso foi maçiço.
Foto: Macrocefalia Musical |
Na sequência, o clima semiárido seguiu e foi a vez do Son Of a Witch adentrar o recinto. O quinteto subiu no palco e mostrou uma paixão desconcertante por estar fazendo parte de tudo aquilo… Foi um brilho que se manteve também no Rio de Janeiro e que no final das contas mostra como um sonho pode ser a fagulha para uma expressão maior do que nós mesmos, assim como a performance da banda para ”Melting Ocean”. Santa traquéia King Lizzard!
Foto: Macrocefalia Musical |
Seguindo o itinerário do caos, os mineiros do Muñoz sucederam o Stoner e aí o Inferno Club mostrou o motivo pelo qual recebe este nome. O antro de satã, situado na tradicional Rua Augusta, estava lotado, o calor infernal, mas a dupla nem deu bola. A química quase telapática dos irmãoes Samuel e Mauro Fontoura é ardilosa, as composições extrapolam os níveis aceitáveis de fritação e o resultado sai das caixas como um início de um incêndio.
A bateria não é um maracatu de Chico Science, mas pesa uma tonelada. A guitarra não é um serrote mas dilacera riffs, tudo pautado no impriviso e na liberdade criativa. Foi explosivo, quando rolou o cover de ”Inside Looking Out” pensei até em ligar para o Mark Farner.
Até agora não sabemos se ele atendeu, confesso que meu 3G não é lá essas coisas e o barulho foi um inimigo complicado de superar. Fora que quando o Kadavar entrou, até desliguei o aparelho, nem se eu fosse a própria operadora conseguiria ignorar a segunda noite de riffs Kadavéricos.
Foto: Macrocefalia Musical |
Com um set list digno de colocar na porta da geladeira, o trio trouxe todos os instrumentos até a beira do palco e tocou num espaço mínimo, o que foi suficiente para transformar o recinto num emulador de coliseu. Bartelt pulsava na bateria como um sádico, Christoph entrava num plano particular no meio de seus solos com requinte de Lord das trevas, enquando Simon seguia escalando o Everest da cozinha Alemã com rara astúcia e a surpreendente calma de um budista de Berlim.
No Rio de Janeiro a levada foi a mesma. O Teatro Odisséia compareceu em peso e mais uma vez a escalação do Son Of a Witch abrindo os trabalhos, com seus conterrâneos na sequência e o Muñoz fechando a trinca… Meu amigo, a platéria parecia uma panela de pressão! A noite foi suave igual um gargarejo com cactus.
O Monsters Coyote seguiu com a muqueca de neurônios, o Son Of a Witch manteve o banho maria cerebral no Stoner e o Muñoz seguiu no gratino blueseiro. O Kadavar então, a cada noite o show atingia novos níveis, o instrumental era faiscante, mais quente do que colocar a língua na tomada.
Não só o show do Kadavar, cada um dos nomes citados, dos estados e do pessoal envolvido nessa cena, prima pelo profissionalismo e pela excelência justamente quando a cena nacional paira sob a névoa da mediocridade e não faz nada para sair dela.
Foto: Macrocefalia Musical |
Os mitos existem e surgem depois de muito trabalho e todos esses caras ralaram demais para fazer tudo isso acontecer. Trabalho duro é a palavra e é o que melhor define a cena workaholic brasuca e a magnitude deste trio alemão, que com tanto brilhantismo, revirou as tripas do itinerário tupiniquim com o apoio da incansável crew da Abraxas.
Esses caras fazem um enorme bem para a cena. É louvável ver como eles articulam novos eixos, colocam novas bandas no mapa como se fossem uma rota de um cartel psicodélico e, eles o fazem, justamente para mostrar que a reforma agrária da cena é necessária.
Foto: Macrocefalia Musical |
Bônus: Kadavar em Floripa, quem fez mágica dessa vez não foi a ilha.
Para fechar a tour brasileira, o Kadavar saiu do centro do país e desceu pro sul. O trio barba e cabelo desembarcou em Floripa para conhecer a ilha da magia e fazer um show memorável.
Mais que um show, foi uma celebração. E a casa que abrigou tudo isso foi a Célula Showcase, um lugar não muito grande, mas com uma acústica massa, uma galera empolgada e cerveja bem gelada. Local bem escolhido, diga-se de passagem.
Antes de tudo, porém, teve a introdução. Quem subiu ao palco para fazer o aquecimento do melhor do hardpsych 70’ germânico que estava para chegar foi o duo mineiro Muñoz. E foi muito à altura. Se tem duas coisas que esse duo sabe fazer é: chacoalhar a cabeça e tocar pra caralho.
Foto: Macrocefalia Musical |
Quando o Muñoz acabou seu show e anunciou que logo tinha Kadavar, choveram aplausos dentro da casa. Não só porque o motivo de todos estarem ali estava quase chegando à hora, mas porque o aperitivo da noite foi muito bem servido. Deu uma larica sonora, uma vontade de ver/ouvir mais.
Nesse tempo, estava eu no mezanino da casa, observado tudo de cima. E como o lugar era meio intimista e tal, foi tranquilo descer e ficar lá na frente do palco, aproveitando que nesse intervalo a galera dispersou pra ir fumar, ou ao banheiro, ou comprar mais cerveja.
Foi aproximadamente meia hora de intervalo até que finalmente iniciou o riff de Lord Of The Sky. Que momento! Na primeira música já deu pra sentir a energia e o peso do trio. Duas SG’s na linha de frente – baixo e guitarra – e uma Odery no fundo. Não tinha como não soar bem. E com quem ainda sabe das coisas operando as máquinas então…
Foto: Macrocefalia Musical |
Não estava nas noites mais quentes de Floripa, mas mesmo assim deu pra sentir que quem mais sofria com a temperatura ali dentro era a própria banda. Também pudera, diretamente da fria Alemanha, seria estranho se isso não estivesse traduzido nas expressões faciais – e no suor – da banda.
O show pegou todo mundo de jeito logo de cara. E em diferentes vibrações. Enquanto no mezanino o lance estava mais tranquilo, ali pela frente do palco uma galera ensaiava uma roda. Mas foi de boa, inclusive não afetou muita gente não. Tinha até uma mina na primeira fileira com um LP do Kadavar, pedindo autógrafo pra banda e tal. Espero que ela tenha conseguido depois do show.
Foi pouco mais de 1 hora de apresentação e com um repertório dividido entre os 3 álbuns que o Kadavar deixou a marca em Floripa. O show passou voando, justamente como são os melhores que a gente vai. A banda não conversou muito com o público, mas não por tédio e sim por característica. A cada thank you que Christoph Lindermann mandava no microfone, era nítida a sua expressão de agradecimento e surpresa. Os olhos não mentem.
Depois de várias patadas confirmadas como Black Sun, Doomsday Machine, Pale Blue Eyes e Stolen Dreams (as duas últimas filmadas acima), o trio saiu do palco. Mas o bis era óbvio, afinal não havia rolado ainda All Our Thoughts. Foi o ponto alto do show, com todo mundo cantando junto o refrão. Mais um momento pra ficar na memória.
Cheguei em casa um pouco surdo, mas não precisava ouvir mais nada mesmo. Meus ouvidos estavam doloridos, mas satisfeitos. Muito satisfeitos.
Foto: Leyre Ellen/Matheus Jacques |