Ao mestre Moa com Carinho: Entre a ausência e a presença!

Ao mestre Moa com Carinho: Entre a ausência e a presença é uma reflexão sobre a presença e a distância dos grandes mestres da cultura negra!!

Moa do Katendê

Tudo que está presente no clipe Moço Lindo do Badauê (2018) me é muito próximo, é tudo parte da minha mais profunda existência, de modo que não me foi possível fazer o exercício da distância diante de tal obra. A música lançada em um lindo áudio visual no dia 20/12 do ano passado, para mim ainda é díficil de ser escutada, sem me fazer derramar lágrimas. Não tendo como meramente analisar a obra, só me resta seguir as linhas que me cruzam e me ligam a música, ao lugar e aos personagens ai presentes.

O bairro do Engenho Velho de Brotas é a localidade onde fui adolescente, e passadas algumas décadas é onde hoje resido. Logo após minha volta, descobri um boteco e nesse lugar frequentado pelos mais velhos do bairro, conheci seu Carlos. Velho ancião que corta uma cervejinha de com força e é um bom papo. Por lá bebemos por algumas vezes e conversamos bastante. Até que um certo dia, o boteco encheu e conversa vai conversa vem, pré eleição, ali por volta de junho  numa dessas incursões ao boteco, em meio a uma conversa sobre política e violência policial, fui ameaçado de um modo que nunca mais lá voltei.

Mestre Moa do Katendê foi assassinado numa ocorrência similar, por um homem que encarnou em si mesmo, todo o mal que nos aflinge desde que estamos nessa diáspora. Eu não conhecia a história desse grande mestre, eu conhecia a música do Caetano que a ele referenciava. A morte de mestre Moa gerou uma comoção e se tornou símbolo da tristeza e do caos politico que hoje se abateu de modo total sobre nós. Mas não só, o fato de sua morte, gerou também outros movimentos e essa obra de arte a que estamos nos referindo é um dos mais bonitos.

Diante de toda a comoção causada por essa enorme perda, fui assistir ao documentário do cineasta Carlos Pronzato, Mestre Moa do Katendê – A Primeira Vitima (2018), e assistir esse filme foi pra mim uma experiência transformadora. A sensação da perda de um ancião negro, morador dos mais importantes do bairro em que eu moro, se transformou na perda de tudo aquilo que eu procuro aprender desde que tomei consciência da minha negritude.

Um corpo, uma existência que reunia todas as capacidades negras, fruto de uma excelência que transbordava a arte, passava pela técnica, atravessava a performance e se fazia pleno em tudo. Da politica à dança, do social à confecção de instrumentos, da moda negra à toda ancestralidade do candomblé, luta, moda, religião e tudo mais que você pensar.

Uma perda sentida por tudo que não poderei mais apreciar, aprender e passar a diante. Tudo isso exaurido por facadas desferidas pelas costas, no ato mais vil que o ódio pode exercer: a traição. Diante desse quadro bizarro, passei a refletir sobre meu lugar, sobre minha história, sobre a nossa arte e nossos conhecimentos que vão se perdendo sem valorizarmos adequadamente.

Quando vi o clipe da música Moço Lindo do Badauê, todo esse turbilhão de impressões e pensamentos se multiplicaram, pois ali reuniram-se outros tantos jovens mestres que estão se fazendo ou já são guardiões de partes fundamentais da nossa cultura. Que em seus trabalhos, por mais excelência que ofereçam, não conseguem a visibilidade necessária aos nossos.

Quando eu vou comprar quentinha pra almoçar no bar e restaurante do Tinho aqui no fim de linha, muitas vezes encontro Negrizu, negro lindo que abre o clipe dançando ao som das congas de Jorjão Bafafé. Dois excelentes e grandes artistas que posso ver na chegada do trabalho, do lado da Brasilgás, ou caminhando pelas ruas do bairro. Um bairro que é lotado de gente preta talentosa, Marcia Short, OZ (ATTOOXXA), o poeta e militante Hamilton Borges Onirê, a cantora e rapper Debóra Evequer, Sabótico, pra ficar em poucos exemplos de moradores.

Além de ter criado tantos outros que aqui já não moram, como Márcio Vitor do Psirico e Ninha (ex-Timbalada). “Flores do Engenho”, mas que são signos de como nossas comunidades são celeiros de gente preta talentosa, para muito além do que eles querem nos fazer crer.

O poeta Nelson Maca é certeiro ao declamar no começo da música: “Retorno, reconstrução, renascimento, vai-se a matéria, fica o exemplo, cimento no templo do tempo.” E é nesse momento que vou às lágrimas, porque não verei mestre Moa dançar e nem cantar, não vi o desfile campeão do Afoxé Badauê e não conheço registro do mesmo. Poeta, professor, ativista cultural, Nelson Maca é figura das mais bonitas ao gritar poesia, ao buscar em seu exercicio acadêmico e poético, de rua e de sala de aula, nos brindar sempre com o mel do melhor, dos pretos!

O jovem Wall, que abre a sessão certeira de rimas, chamando atenção  para as violências que secularmente sofremos, para o sangue que mais escorre  e é nosso, é de preto. Ele que lançou no ano passado uma mixtape excelente, 3×4 (2018), mas que não teve a devida atenção por parte da mídia. Um jovem valor de nossa música, que não pode deixar de ser escutado, abri brilhantemente as linhas.

Quando eu me reaproximei do rap, o Opanijé foi um dos primeiros grupos que escutei, sem ter acompanhado a grandiosa história desde que eram Erê Jitolu, e sem conhecer sua importância local. O único disco do grupo que foi lançado até aqui, que é um petardo grandioso, capaz de arrancar elogios até do grande Chuck D, permanece um solene desconhecido do grande público. Aqui representados por Lazaro Erê e Rone DumDum, chegam pesados nas rimas, seja na firmeza do flow do primeiro, seja na flexibilidade e malemolência do segundo.

Aspri RBF, outro grande pilar da música rap baiana é também parte do time, me fazendo transformar os cristais que caem dos meus olhos em palavras. Dono da primeira música que usei em sala de aula, é dele: Cabelo da Desgraça, um clássico obscuro do rap nacional.

Xarope MC, com a força dos Orixás, num flow cadenciado, fecha esse time de mestres jovens e velhos, da música e da cultura baiana. Ele que lançou também recentemente seu primeiro disco solo, Preto Pra Caralho (2018), abrindo mão de toda expertise que conquistou em meio a muito sofrimento e pioneirismo. Xarope Mc fez parte do grande Império Negro, grupo de rap local, que gravou três discos em sua trajetória, e que precisa ser redescoberto. 

A produção do beat onde esses mestres desfilam é do grande DJ Gug, outra grande figura de proa da nossa música, que lançou recentemente uma mixtape: Scratch Percussivo Vol. 1 (2018). Um dos grandes DJ’s de Salvador, produtor de primeira, que hoje trampa com o grupo Nova Era, mas que já está na cena com grandes serviços prestadas, faz tempo. Realização da Aquahertz, que tem feito excelente trabalho junto ao projeto Obi Ebó. Num clipe que também traz a filha do Moa dançando, encantada e lindamente pelas ruas em que passo andando e lembrando.

Um exercício que para nós negros e negras brasileiras precisa ser uma constante: fortalecer nossa memória, logo nossa consciência. De modo a deixar mais fácil e potencializar o trabalho de Exu, nessas encruzilhadas que nos cruza, e com as quais cruzamos diuturnamente. Parte desse trabalho de lembrar deve ser exercício diário com os nossos, os mais próximos, com aqueles que trazem real excelência em seus trabalhos, na busca de escurecer nossas referências.

Todas essas linhas se cruzam em mim que busco humildemente fazer desse exercício um modo de vida, quando eu penso em mestre Moa do Katendê, e entendo que os artistas aqui citados são outras tantas miniaturas do grande, e que precisamo estar em nós, forças das quais precisamos nos aproximar cada vez mais intensamente. 

Mestre Moa do Katendê vive!

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