André Sampaio em Alagbe (2017) – segundo disco de sua carreira – segue e aprofunda o trabalho de resgatar sonoridades e a herança africana!!
O grande mestre Fela Kuti sentenciou certa feita: “A música é a arma”. Sendo assim o afro-beat como criação sua é uma música que exige compromisso mas do que panfletarismo.
E nesse sentido André Sampaio vem construindo uma obra muito bonita pelo comprometimento que revela e pelas aproximações que propõem.
Em seu segundo disco diferentemente do primeiro, Desaguou (2013), ele abre mão de um outro arsenal, mas partindo do mesmo quartel general: África. Se lá em sua estreia, o artista buscava uma sonoridade mais voltada ao próprio afr0beat, em seu segundo disco, Alagbe (2017), ele coloca a sua guitarra mais a frente e ruma numa chave mais afrorock.
No entanto, afrobeat, afrorock, são aqui apenas pontos cardeais, meras referências de onde se partirá numa viajem incessante pelo imenso continente africano e pelos seus territórios constituídos em diáspora. André Sampaio, guitarrista, compositor e cantor, tem justamente feito de sua obra, uma enciclopédia de registro de diversas sonoridades e ideias fruto da experiência diaspórica que busca no lugar onde surgimos como especie e civilização, o conhecimento para nos mantermos equilibrados nesse caos cotidiano que enfrentamos.
Nesse sentido, as armas musicais em Alagbe(2017) trabalham em três dimensões complementares, a partir de uma perspectiva epistêmica fundada – pensamos – em seu trabalho sagrado dentro do candomblé. André é ogan alagbe, e é justamente a função musical de controlar através da música o bom andamento das cerimônias sagradas. Em sua função pública enquanto artista, nos parece que André encontra o duplo dessa função, que ao entreter, pesquisa para ensinar um pouco a todos nós aquilo que verdadeiramente nos compõe, não apenas como afrodescendentes mas, sobretudo como humanos. Desde que esses mesmos humanos, estejam dispostos a entender a diferença constitutiva desse trabalho e da própria unidade cultural africana enquanto berço civilizacional.
Como não conseguimos nos desprender da obra como um continuo de Desaguou até Alagbe, sempre nos imaginamos como numa viagem on the road pelo imenso continente africano. Seus sabores e rítmicos (dimensão estética), o reconhecimento pleno das alteridades e culturas (dimensão ética) e o redescobrimento de uma herança riquíssima que nos foi progressivamente sendo apagada desde o cativeiro até os tempos atuais (dimensão politica). Sob essa perspectiva é importantíssimo notar como André Sampaio vem se colocando dentro de um cenário em nosso país que vem aos poucos coadunando um movimento que é mundial. É flagrante o crescimento de grupos que calcam o seu trabalho numa estética que cada vez se aproxima mais de ritmos africanos e não apenas afro brasileiro ou americano.
E essa inserção é de afirmação e resgate poético/musical de África entre nós, André que foi ao continente pesquisar e lá traçou relação e conseguiu parceiros/aliados musicais que aqui novamente enriquecem o trabalho. Ao longo das 13 faixas o músico traz elegantíssimos convidados e passeia por pelo menos três sonoridades africanas como as do Mali, Moçambique e Burkina Faso. Misturando tudo isso às suas outras influências como o dub e o reggae jamaicano por exemplo, o que temos é um caldeirão rítmico e melódico riquíssimo.
As mensagens presentes nas canções também emocionam bastante e nos levam a reflexões que não podem ser exauridas no curto espaço desse texto. Alagbe que foi o primeiro single lançado e por nós noticiado aqui, é a faixa que abre o disco após a introdução. Aqui, como outrora dizíamos, é uma espécie de afirmação do papel duplo do homem André, Ogan Alagbe guardião dos rituais musicais sagrados do candomblé e ao mesmo tempo artista que resgata essa e outras tradições provenientes de nosso berço. A canção certamente encontra seu sentido superior tanto na obra, como já afirmamos acima, como nas outras canções que compõem esse disco.
Composição em parceria com Sekou Diarra, Good Mandingo é um excelente representante do resgate que falávamos e ao mesmo tempo uma bela exibição da guitarra mandinga, que na canção domina as atenções. A letra, única em inglês do disco, fala-nos de um jovem guerreiro mandinga, um dos maiores grupos étnicos da Africa Ocidental, e a sua missão de defender sua cultura e seu povo. Filho de um ferreiro, o good mandingo, nascido para o combate e tendo o mundo como sua casa, pode ser visto também como o Outro do próprio artista. De domínio público e muito bem apropriada, Coluna de Aço é tornada num groove pelos Afromandingas que é a banda do André e que trabalham aqui – como em todo o disco – com pleno domínio de suas funções. Citando Chico Science nos acréscimos autorais do artista na canção.
A guitarra mandinga que André vem desenvolvendo tem nesse disco um amplo leque de cores e sabores por onde o artista passeia com uma desenvoltura incrível. Prova disso é a levada lazy e doce ao percorrer as cordas em Djarabi, canção que possui uma conotação romântica e linda vocalização da Lenna Bahule. Mas que percebemos como um canto de amor também a Burkina Faso.
Sem querer ser piegas, mas Mafalala Livre é uma canção que nos levou às lágrimas algumas vezes, por sua força de presentificar um acontecimento histórico e duas figuras que não conhecíamos até então. Samora Machel e Craveirinha, dois revolucionários, um homem de ação e outro de pensamento e nesses tempos sombrios em que aqui vivemos, tal herança resgatada é de valor imensurável. A música que mistura a primeira chegada do artista em terras africanas e ao mesmo tempo a revolução moçambicana é a nossa preferida do álbum, pela potência de alegria que transmite. Ao mesmo tempo em que mistura e resgata também outras duas importantes referências Che Guevara e Eduardo Galeano.
A dobradinha com Sekou Diarra se repete em Nabo Dahera, onde os dois músicos se dão novamente as mãos na composição e agora dividem também os vocais numa canção muito bonita sobre resgate cultural e irmandade. A faixa conta também com o balafon envenenado de Wetien Dembele, acrescentando cores novas ao já maravilhoso trabalho instrumental do disco.
A humildade e generosidade do artista que nos presenteia com esse bonito trabalho, fruto de sua trajetória e das amizades que angariou, fica muito clara em Quem Sabe. Com as participações dos grandes Cris Scabello (guitarra) e Maurício Fleury (synths e baixo synths), dois músicos da excelente Bixiga 70, a música tem uma das mais bonitas composições do álbum. Uma elegia contra a arrogância tão em voga hoje, um chamado para o trabalho que a escuta e o silêncio podem realizar dentro de nós. Ao mesmo tempo, que faz uma auto afirmação de si mesmo como médium, mídia, por onde as mensagens atravessam. Talvez seja necessário ler o mundo ao mesmo tempo em que nos esvaziamos para assim abrirmos espaço para que alguma perspectiva nos atravesse e chegue aos nossos com a força da verdade.
O Dub toma conta em dois momentos pelas mãos do grande Victor Rice na curtinha Turma Arretada e no fechamento do disco com a pesada Zumbi Vive. Dando-nos pistas dos primórdios artísticos do André Sampaio que durante 10 anos se dedicou ao reggae com seu trabalho na banda Ponto de Equilíbrio. E junto a queridíssima Okwei Odili, cantora nigeriana radicada na cidade de Salvador, a dupla comete um reggão: Stop Fighting Immigrants, que pelo título já nos remete ao tema da canção.
Outro radicado em terras baianas que também está presente com sua poesia incendiaria, Nelson Maca, figura de proa nas encruzilhadas culturais de resistência na cidade de Salvador. Portador da sua talhada a fogo gramática da ira, chega quebrando tudo em Diga Aos Vermes Que Fico.
Alagbe é realmente um disco cheio, o seu segundo após a boa estreia que todos sabem carrega a mistica de ser o mais decisivo na carreira de um artista. Pois o artista, se supera com relação ao seu debut de 4 anos atrás, e essa superação provem exatamente de manter o mesmo rumo nas pesquisas musicais mas sem repetir uma formula. Pois a África é de riqueza inesgotável e é de lá ou antes é daqui que André Sampaio mira em sua direção. Se preocupando mais com o espaço do que com o tempo, ao privilegiar uma especie de passeio geográfico por sonoridades, pessoas, memórias históricas presentificadas mas do que puramente lembradas.
Certamente um dos grandes discos de 2017, algo que precisa de tempo pra ser degustado em todas as suas possibilidades. Cheio de perspectivas do que aqui só muito parcialmente fomos capaz de apontar.
Escute no máximo volume.
Banda base das gravações
André Sampaio – Guitarra e vocal
Mauricio Bongo – Bateria
Rico Bass – Baixo
Marcos – Teclados
Joás Santos – Percussão
Lenna Bahule e Kuky Lughon – Coro
Participações:
Maurício Fleury (tecladista do Bixiga 70), Roberto Barreto (que toca a
guitarra baiana no BaianaSystem), DJ Nato PK (programações), Nelson
Maca (poesia), Lenna Bahule (Moçambique) e a cantora nigeriana Okwei
Odili.