Dalton Sanches ataca novamente, agora analisando … And Justice For All, o controverso álbum do Metallica, divisor de águas quanto aos rumos sonoros que a banda tomaria a partir de então.
Para além do fato de ter alcançado, com o clipe de “One”, o posto de álbum de metal, em muitos sentidos underground, mais vendido de todos os tempos – sem sequer ter a banda, até então, e em plena era áurea da MTV, contado com nenhuma produção audiovisual; e para além, também, de ter sido agraciada com um Grammy na categoria de melhor performance metal, em 1990, a banda merece ser reconhecida, ainda, pelo seu impressionante timing, a despeito de alguns poucos anos antes ter enfrentado o grande trauma da perda do seu talentoso e influente baixista, Cliff Burton, num acidente que envolveu o capotamento do ônibus com o qual a banda realizava, pela Europa, a turnê do disco Master Of Puppets, 1986. Como sabido, ao passarem por Estocolmo, Suécia, o músico – recrutado da sua banda precedente denominada… Trauma – fora arremessado de seu apertado leito para fora da janela do ônibus, que por sua vez o esmagou.
No quesito performance e inventividade, impressionam, outrossim, a capacidade de escrever, mesmo que demasiado longas para o estilo, complexas composições mediante senso acurado de equilíbrio dos extremos, que vai do peso e supervelocidade, por exemplo em “Blackened” e “Dyers Eve”, até às primorosas linhas melódicas e construções harmônicas das cadenciadas “To Live Is To Die” e “One” propriamente dita. Vale ressaltar, também, o trabalho de divisões rítmicas e tempos “quebrados”, verificados, por exemplo, ao longo de “…And Justice For All” e na introdução de “The Shortest Straw”; pra não falarmos da quase inexistência de estruturas de versos-refrões, o que não agradava muito o formato dos programas e o gosto dos consumidores de rádios mainstream do período.
Ainda sobre a forma, deve-se ressaltar como aspectos preponderantes o equilíbrio e parcimônia no recurso aos característicos solos de guitarra, a despeito da já mencionada extensa duração de grande parte das faixas do disco – elemento que, diga-se de passagem, levou um número considerável de críticos e fãs do gênero a rotular o petardo, com algum exagero, de “metal progressivo”. Também salta aos atentos ouvidos as técnicas de palhetadas sobre sequências de poderosos riffs cujas partes, além de super velozes – influência explícita das bandas punk-hardcore apreciadas pelo grupo –, são agressivamente harmoniosas em sua vertiginosa diversificação de acordes, como se pode verificar ao longo de “Dyers Eve”. Composição essa que, aliás, demonstra definitivamente a preocupação da banda com o não meramente tocar rápido por tocar rápido. Preocupação, a bem da verdade, vislumbrada já na complexidade harmônica e rítmica da segunda produção de estúdio, Ride the Lightning, de 1984.
Quanto ao conteúdo – se se pode ainda decompor a análise nesses termos –, deve-se dizer do patente amadurecimento da banda nessa dimensão, uma vez que resgata temas em parte já desgastados e mesmo clichês, como a crítica ao sistema penal, judicial e político dos Estados Unidos, e, sobretudo, aquele relacionado à guerra. Apesar de exaustivamente repisados por bandas de punk e metal consagradas ao longo dos anos setenta e oitenta, Hetfield os eleva a outro patamar, como observado na intensidade dramática da letra de “One”, a qual representa as mazelas, extremos da violência e desumanização a que pode se submeter um soldado no campo de batalha. Agora, o paroxismo da bem-sucedida e sofisticada articulação entre forma e conteúdo encontra-se no momento de mimetização da metralhadora, nessa mesma música, reproduzida por impressionante e milimétrica sincronia das cordas com o bumbo duplo e a caixa de Lars – aliás, a nosso ver, em sua melhor fase no que diz respeito ao desempenho, técnica, agressividade e criatividade.
Numa perspectiva em primeira pessoa, me lembro que, ainda muito jovem, quando da primeira audição da “metralhadora” na impactante música e da minha inicialização ao aprendizado autodidata da bateria, já em meados dos anos noventa, não pude compreender como era possível a simetria quase maníaca entre aquelas palhetadas em fusa e os pedais, também em fusa, reproduzindo a precisa sonoridade pautada pelo conhecido “kick” agudo das peles batedeiras dos tambores de Ulrich. Do alto da minha ingenuidade, achava que havia ali algum recurso eletrônico, e que não seria possível a humanos executarem aquilo com tamanha precisão em instrumentos “orgânicos”. Talvez, tal impressão não fizesse sentido caso já conhecesse, naqueles tempos, os recursos não analógicos disponíveis em exaustão ao horizonte de compreensão do ouvinte de metal, subjetivado pelas sensibilidades técnicas de alta engenharia e que deram condições de possibilidade para a existência de produções, já na entrada do século XXI, de bandas como Fear Factory e Meshuggah, as quais usam e abusam de triggers nos tambores da bateria, entre outros meios digitais não disponíveis ou suficientemente desenvolvidos quando da gravação do disco objeto de nosso ensaio.
Pois bem, …And Justice for All, por isso e muito mais, é um clássico de primeira hora que, por si só, compensa a atual fase do quase quarentão conjunto norte-americano, a nosso ver, completamente rendido ao “janotismo” da mega empresa em seu monótono expediente de autopastiche da fase pré Black Album, de 1991. De qualquer modo, e graças aos fãs-produtores caseiros, pode-se ter acesso, via internet, a excelentes remixes e remasters dos antigos discos, turbinados com mais ganho nos canais que ficaram sem a devida força nas faixas originais. O mais famoso e polêmico acontecimento nesse sentido, aliás, refere-se ao suposto (malsucedido?) experimentalismo sonoro encampado pelos músicos durante o processo de gravação, os quais, em algumas entrevistas anos depois, assumiriam que a sonoridade do baixo estava conflitante com os timbres almejados por James em sua guitarra, e, em decorrência disso, a única saída encontrada fora a de diluir o baixo em meio à parede de guitarras.
Como resultado, fruto da insatisfação e senso de justiça por parte de alguns fãs, mais de duas décadas depois, tivemos o, já bastante conhecido pelos apreciadores mais assíduos, …And Justice for Jason, álbum upado no Youtube o qual traz as linhas de baixo para frente da gravação consagrada, e, como todo clássico, divide calorosa e incessantemente os ouvintes entre favoráveis, contra, amantes e haters.
Sobre o autor:
Dalton Sanches – Atualmente doutorando em História pela
Universidade Federal de Ouro Preto; cometedor esporádico
de algumas linhas sobre música e baterista à procura do peso imperfeito.