Porque o Rap e a cultura Hip-Hop não podem dialogar com o surf? Você conhece a história do Afro surf na diáspora e no continente?
A história do surf tal como a conhecemos é mais um processo de falsificação histórica e apagamento cultural por parte do processo do colonialismo. Dito isso, automaticamente quando você pensa em surf a imagem que se projeta em sua mente é a de um homem branco, loiro e de olhos claros e o som que provavelmente vai ecoar em seu cérebro é o da surf music. Essa é a síntese em imagem e o som de uma apropriação cultural e da sua consequente comercialização racista.
Pensar que o surf possui a sua origem na polinésia é a adesão irrefletida de um modo de ver que é propriamente europeu, logo colonialista. É uma percepção que vai no mesmo sentido de entender que somente a Europa floresceu civilizações desenvolvidas. Ora, não nos parece crível que com diversas populações vivendo por milênios em contato com os oceanos e com os mais diversos tipos de mar e ondas, apenas uma dessas populações consegue desenvolver a prática de deslizar sobre as ondas.
Muitos praticantes conhecem a história do relato do capitão inglês Cook que popularizou-se após 1778, fazendo o registro de pessoas surfando no Havaí. Com a apropriação do surf nos anos 40 e 50 por surfistas americanos na Califórnia, e o Havaí já sendo um dos estados da união – EUA – a divulgação desta prática então tornada esportiva e desta ideia de origem só cresceu até os dias atuais. Daí por diante, a imagem de jovens homens loiros intrépidos e de bandas de rock fazendo música instrumental se tornaram o clichê racista que domina o inconsciente coletivo e estereotipa os praticantes deste esporte.
É curioso notar, como foi pouco noticiado, que testes de DNA agora em 2020 comprovaram a teoria de Thor Heyerdahl de que na verdade foram as ilhas do pacífico que foram colonizadas por povos originários da América Latina. Em 1947, para provar sua tese o norueguês empreendeu a famosa expedição Kon-Tiki, percorrendo 8.000 mil quilômetros com uma embarcação feita de pau de balsa e sem nenhum auxílio de equipamentos tecnológicos, em 101 dias partindo do porto de Callao e chegando ao atol de Raroia no arquipélago de Tuamotu.
O surf no Peru e na Bolívia já remontavam de 2.000 a 3.000 anos, com os Caballitos de Totora, sendo assim, com a recente comprovação que encontrou fortes ligações entre a população atual da Polinésia oriental – incluindo a Ilha de Páscoa – com o povo indígena colombiano Zenu, na verdade, foram os originários de “Abya Yala” quem levou o surf para a Polinésia e consequentemente ao Havaí!
Porém, estudos recentes também mostram o surf em diversas nações africanas com relatos que remontam ao século 17, anteriores ao relato do inglês Cook. O professor da Universidade da California, Kevin Dawson nos ensina que o atual surf africano que vem se desenvolvendo na verdade é um renascimento de práticas que datam de pelo menos 1.000 anos atrás. Do Senegal a Angola, o surf se desenvolveu independentemente no continente africano, e em diversas modalidades, há relatos de bodysurf no século XIX, a relatos de crianças sendo ensinadas a surfar, além do surf em pranchas e em canos.
“Let’s Go Surf Now, Evebory Learning How”
Ao longo de todo o século XX houve uma produção intelectual negra no continente e na diáspora que passou a produzir as armas teóricas necessárias para que nós possamos nos pensar enquanto povo. Esse acúmulo de conhecimento certamente desemboca no grande professor Kevin Dawson da e na sua importante pesquisa, que vem agora no século XXI contribuindo enormemente para o conhecimento das origens milenares do surf no continente africano. Um trabalho que nos ilumina sobre as práticas de apagamento histórico que geram os estereótipos sob os quais a negritude é muitas vezes enquadrada pelo racismo.
Perceber que homens e mulheres negras ao acessarem a prática do surf, não estão aderindo a algo de uma cultura que lhes é estranha em suas origens raciais – o que não seria nenhum absurdo – e sim retomando práticas ancestrais, é fundamental para uma compreensão mais profunda do seu papel atual dentro da sociedade. É essencial buscar entender quais as práticas racistas que interditam o desenvolvimento da população negra em algo que lhes é tão próprio, principalmente no Brasil país de maioria negra e com uma forte tradição nestes esportes ao longo do século XX.
Mesmo nos EUA durante a primeira metade do século 20, e apesar de todas as leis Jim Crow que segregava os negros até nas praias, houveram praticantes do esporte. Um dos grandes exemplos é o do lendário Nick Gabaldón, que nos final dos anos 40 tendo apenas a praia de Ink Well para surfar, desafiou os 12 quilômetros de remada até Malibu Surfrider Beach (reservada apenas para brancos e com ondas de melhor qualidade), se tornando uma figura popular no local, até morrer em 1951 ao bater nos pilares do pier.
Já durante os anos de efervescência do movimento de direitos civis nos EUA, ativistas promoveram ocupações de praias reservadas, assim como Rosa Parks nos ônibus e Martin Luther King e outros em estabelecimentos segregados. E da mesma forma, eram recebidos pelo estado supremacista branco com a polícia, sendo espancados e presos. Ora, pouco tempo depois nos anos 60 um jovem Rick Blocker conhece o skate e depois o surf e logo após conhece Tony Corley através de uma carta aberta publicada na revista Surfer.
Juntos os dois jovens negros fundam a Black Surf Association em 1974 com outros companheiros, e na mesma Surfer conhecem a história esquecida de Nick Galbadón, preservando-a e dando-nos a conhece-la. Nos EUA como aqui, o racismo nos vetou a possibilidade de conhecer essas e outras histórias e segue apagando-as. Afinal, “um povo que não conhece a sua história está fadado a repeti-la”, e neste sentido a narrativa está errada no seu próprio começo.
A “Nuvem Negra” que se aproxima e é sempre dissipada!
No Brasil, apesar de não termos uma história de segregação racial tão forte e que tenha nos levado a organizações deste estilo, possuímos a nossa própria estrutura racista que transmite a impressão de que o surf é um esporte apenas caro. É comum por aqui, a ideia de que é o talento que define os campeões, quando sabemos que centenas de talentos são abortados por uma máquina racista que simplesmente não contrata atletas negros de alto rendimento.
Na história do surf profissional brasileiro tivemos e ainda possuímos expoentes internacionais do surf e do bodyboarding através de homens negros como são os casos do campeão mundial de longboard Olimpinho e do grande Jojó de Olivença atleta da elite mundial e vencedor de etapas mundiais, os dois baianos e de origens humildes, além de vários outros.
No entanto, contamos ainda hoje no circuito mundial com poucos nomes, Wiggolly Dantas, esteve por um período na elite e hoje o seu irmão Weslley Dantas é um dos poucos a estar na elite do surf mundial, temos também a jovem promessa Victor Bernardo. No bodyboarding, podemos citar o carioca Sócrates Santana primeiro campeão mundial de bodyboarding negro na categoria Pro Jr. e o capixaba Lucas Nogueira, 8x campeão capixaba e vencedor de etapas do circuito mundial, tendo ficado 2 vezes no top 5 mundial.
Vale muito a pena ler a curta entrevista do Wiggolly Dantas deu ao GQ (Portal G1), ele que fez parte como o único atleta negro do que se denominou chamar Brazilian Storm (Tempestade Brasileira), uma série de atletas como Gabriel Medina, Ítalo Ferreira, Miguel Pupo, Felipe Toledo entre outros. É uma entrevista estarrecedora, aqui.
Mas, todo esse histórico de campeões no esporte, o grande número de praticantes e de atletas negros no nordeste por exemplo, segue sendo invisibilizado e excluído por um mercado racista em sua estrutura. E mesmo aqui no nordeste, um esporte caucasiano, onde só quem é possibilitado a permanecer nos circuitos como atletas de alto rendimento são aqueles nascidos em berço de ouro, ou por apoio familiar e ou por acesso a patrocínios. Os que resistem localmente, em competições menores e ou com algumas inserções em nível nacional o fazem vendendo o almoço para comprar a janta, e por todo esse esforço não permanecem por muito tempo.
Confiram o perfil no Instagram Surfistas Negras, uma iniciativa que visa dar visibilidade a mulheres surfistas negras e nordestinas!
Rua e praia, Rap nas ondas!
Em muitos lugares em nosso país jovens negros e periféricos tem acesso ao surf, aprendem a amar o contato com as ondas pelo seu caratér lúdico e pela injeção de uma boa adrenalina são cativados pelo lifestyle. É o caso por exemplo de um dos maiores MC’s do rap baiano: MC Juno que começou a pegar onda no ínicio dos anos 80. Ele nos conta: “Tomei gosto porque era divertido, a praia no quintal de casa e como minha mãe não tinha condições de comprar uma prancha, qualquer pedaço de madeira ou isopor garantia a diversão.”
O que muitos não sabem no cenário do Hip-Hop baiano é que Juno foi competidor, venceu campeonatos mas não deixou de enfrentar preconceitos raciais e sociais: “Sofri muitos! Isso me levou a ser um tanto black trunk, era uma forma de me situar e dizer: eu também posso e vou fazer isso. Tive alguns problemas, criei alguns e me tornei um problema quando decidi competir.” Juno conta que em um evento onde detonava numa bateria, foi obrigado a ouvir do locutor: “Esse é o bodyboarder da favela!”, para alguns meses depois ganhar o campeonato em seu quintal – praia de Amaralina – e esculachar o locutor, figura de nome na história do surf baiano!
Nesta época, Juno já fazia parte de um grupo de rap chamado MCR, junto ao Israel, e pouco tempo depois faria parte dos históricos e emblemáticos Êre Jitolu e Quilombo Vivo (junto ao seu irmão DJ Bandido e ao MC Jacó). O bairro do Nordeste de Amaralina onde foi nascido e criado, foi por muito tempo um dos maiores celeiros de campeões do bodyboarding baiano, nacional e internacional. E possui uma história que deveria ter sido – e ainda está por se fazer – registrada nas mais diversas mídias.
Léo Chagas foi talvez o nome que mais longe chegou em meio a tantos atletas incríveis daquela localidade, vencendo etapas do brasileiro e do circuito mundial, competindo sempre em altíssimo nível, infelizmente até onde conseguimos apurar o atleta nunca conseguiu um patrocínio que o colocasse nas mesmas condições de disputa. Jovens negros e periféricos em sua maioria, a turma do Nordeste de Amaralina constituíram por décadas uma equipe de atletas grandiosos, e uma equipe no sentido também de trabalho coletivo, de se ajudarem e se apoiarem, neste sentido não é forçar a barra dizer que os caras, consciente ou inconscientemente formavam uma banca como chamamos na cultura hip-hop, ou ainda pra ficar nas suas heranças locais: um quilombo vivo!
A vivência urbana, desde de suas origens, deram sempre a tônica da essência artística dos elementos da cultura Hip-Hop. Porém como já salientamos acima, diversas cidades brasileiras possuem imensos litorais. Em Sergipe, dois nomes têm feito da prática do surf alimento poético para seus raps: Dartha e Bidu.
Um dos nomes mais interessantes do rap underground nacional, Dartha fez parte do Alquimia Solar e no seu último EP L³ Golden (2021), trouxe-nos uma reflexão importante em Summersalt. Apresentando um recorte de uma declaração racista, lembra-nos o quanto o racismo nacional quer sempre impedir a negritude de acessar espaços públicos, mesmo as praias e mesmo sem a lei do Jim Crow.
Em seu trabalho, Dartha incorpora os aspectos mais contraculturais que outrora estiveram em evidência tendo no surf uma de suas expressões. Algo que vem se perdendo progressivamente e ou se transformando em token para tilêlês de toda espécie. Neste sentido, é bastante importante perceber como o surf pode servir de alimento para linhas e flows que remetem a um outra política, outro modo de existir, que no caso de Dartha não se exime em denunciar o racismo por exemplo.
Já o Bidu, lançou dois discos onde através de sua poética criou uma ideia de novo mangue, ele que é morador do Bairro Industrial. Em DMPM vol. 1 (2018) e 2 (2022), o MC conjuga suas vivências nas culturas de rua periféricas com o lifestyle de um preto surfista e frequentador das praias de Aracajú. Escrevemos longamente sobre esse último trabalho e você pode conferir aqui.
Sim, a cultura do surf possui abrangência dentro do cenário hip-hop, pois homens e mulheres negras são surfistas, bodysurfers, longboarders, bodyboarders e com as vivências perfiféricas, consomem e produzem o rap, o grafite, os elementos da cultura. No nordeste, mas certamente também nas favelas do Rio de Janeiro, a intersecção entre surf e hip-hop é algo que existe, mas não é evidenciado, da mesma forma que a negritude não é evidenciada no surf, por conta dos estereótipos racistas que fazem parte desta cultura.
Apesar de todo o racismo que permeia a história do esporte no mundo, a negritude possui sua própria e importante história ancestral e atual e segue buscando se associar, se encontrar e se pensar dentro destes espaços. Certamente, a cultura hip-hop pode ser um letramento político fundamental para uma luta político racial a se empreender aqui em nosso país. Basta que saíbamos que certamente o lucro de surfshops e marcas vem em grande medida dos jovens de periferia, negros que consomem essas marcas, mas não se dão conta de que estas empresas fecham as portas para os seus iguais!
-Afro Surf e o Hip-Hop no Brasil: Rua e Praia, tradições apagas e desconhecidas!
Por Danilo Cruz