Bruna Helena aka nabru apresenta um artigo onde analisa a correspondência entre os versos do Thalin (Maria Esmeralda) e do Fred Zero Quatro
Desde que comecei a estudar conteúdo e forma literária aprendi um novo jeito, infelizmente mais acadêmico e felizmente mais encorpado de escutar música e de encarar a poesia das composições. Minha maior alegria é ouvir os álbuns inteiros, confesso que quase todas as vezes em português brasileiro — pode ser que Drummond esteja certo e o nacionalismo seja uma virtude —, de qualquer forma vivo eternamente minha missão incurável da língua materna e seus encantos, nas conversas com amigos pergunto ‘’cê ouviu tal álbum? Qual sua faixa favorita?’’, cito os versos que me atravessam, minhas possíveis interpretações, detalhes do instrumental que parecem mistérios e assim vamos, revezando harmonia, melodia e lírica, cada álbum é como um sistema solar, cada faixa um universo, espero que me entendam apesar do meu apreço metafórico que esses dias uma professora chamou de impressionista.
Meu primeiro contato com o Maria Esmeralda, primeiro álbum de Thalin, Cravinhos, VCR Slim, Iloveyouangelo e Pirlo, lançado este ano (2024) pela Sujoground, foi na audição, num estúdio escuro, cheio de fumaça e gente, em silêncio comecei a ler com os ouvidos, e a cada faixa eu sentia algo, algo que se conectava, mas sempre algo diferente, na nona música do trampo eu fui capturada, a faixa é Todo Tempo do Mundo e aquilo me trouxe uma similaridade aos ouvidos, uma sensação de já ter ouvido antes, de conhecer aquela história. Óbviamente, e quem ouviu o Maria Esmeralda sabe, eu nunca tinha ouvido aquilo, mas os versos, o esquema de rima ali presentes, e sobretudo o olhar do eu-lírico me soavam muito familiares, aproximadamente na metade do som eu já sabia, Meu Esquema do Mundo Livre S.A e esse jeito curioso e não banal de descrever a musa inspiradora.
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Saí dali e nos dias que se sucederam revisitei algumas vezes o som dos meninos do Maria, a ideia não me abandonava, eu cumpria o ritual de falar com os amigos e esta análise começou a nascer. Certo tempo depois tive a oportunidade de assistir ao show de lançamento do Maria Esmeralda no SESC Pompeia, em São Paulo — um espetáculo arrebatador, diga-se de passagem — e foi inevitável no final da noite, em um bar, perguntar ao Thalin se ele já tinha ouvido Mundo Livre S.A, em específico, Meu Esquema, e a resposta ampliou meu interesse pela comparação das letras, a musa de Fred Zero Quatro era desconhecida para o eu-lírico de Todo Tempo do Mundo. A literatura comparada, não precisa ser necessariamente feita com base na similaridade, ela permite também o contraste entre duas obras, e nesta análise pretendo trabalhar com argumentos que mostrem o que há de tão curioso na história contada por Maria Esmeralda e pelo Mundo Livre S.A.
A canção Meu Esquema da banda de manguebeat Mundo Livre S.A, que ouço desde a adolescência, foi composta por Fred Zero Quatro, letrista e vocalista da banda, e sempre me encantou por trazer comparações imagéticas da musa com coisas de um universo que me soa, em termos estereotipados, pertencentes com certa exclusividade ao mundo masculino. Para ser mais específica e encorpar nossa leitura das faixas analisadas, na letra de Eu Gosto Dela, Emicida discorre sobre sua musa:
‘’Dona da rotina, mamãe corridona
Defina efeito sanfona, se acha esquisitona’’
Estes versos descrevem o femino com base em um olhar já esperado, e imprimem um conceito de mulher que me chatearia ter que explicar de forma mais precisa, porém quero lembrar que isso não é um artigo sobre a forma certa ou errada de descrever a musa, inclusive porque a musa de Emicida é completamente palpável com a realidade de muitas mulheres, sobretudo mães brasileiras, essa musa também é real. Contudo, nesta análise busco com um olhar mais microscópico trazer à tona a similaridade presente nas composições de Thalin e Fred, que consistem, para mim, na ideia não óbvia do feminino em oposição a imagem óbvia do ser mulher, e para dar vasão à literatura comparada e facilitar seu entendimento, acredito ser pertinente expor o outro lado da moeda. Em contradição aos versos de Emicida, Fred Zero Quatro descreve sua musa em Meu Esquema:
‘’Ela é meu treino de futebol
Ela é meu domingão de sol
Ela é meu esquema
Ela é meu concerto de rock’roll
Nação, minha torcida gritando gol’’
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Aqui, encontramos a musa sendo descrita com figuras de linguagem que constroem o imaginário do homem ‘’padrão’’ brasileiro que em seu universo convencional de comercial de cerveja esperamos que no dia do treino de futebol tenha sua musa ‘’clássica’’ em casa esperando por ele, em geral essas são mamães corridonas, como a mulher presente em Eu gosto dela, para o eu-lírico de Fred Zero Quatro, a sua musa não só está presente no domingo de sol como se assemelha ao treino e até a energia da torcida do seu time gritando gol, ele descreve sua amada evidenciando que ela provoca sensações incomuns para qualquer homem ‘’comum’’, incluindo a si mesmo. Para os leitores incuravelmente brasileiros e amantes de futebol, como eu, isso pode soar como uma das declarações de amor mais lindas que alguém poderia fazer, mas não é este o ponto.
Em Todo Tempo do Mundo, o eu-lírico que narra a composição de Thalin também se coloca como um homem ‘’normal’’, talvez inclusive mais antiquado que os da contemporaneidade, quando assume:
‘’Pareço um cara ríspido
Alguém que ninguém gosta’’
Esta declaração vem em movimento contraditório a descrições que são de uma musa delicada e atenciosa, mas ainda assim, distante da mulher convencional que soa maternal, ela não é um lírio no campo, ela é uma espada:
‘’A minha alma gêmea, a minha espada
Minha predileta que me adocicava
Minha força bruta, minha vontade
A minha estrada
Minha família
A minha dor
A minha casa’’
Neste esquema de rima Thalin brinca com elementos que podem soar opostos, a sua musa é de certa forma contraditória, ele usa palavras como adocicar e espada, algo doce e algo cortante, resgata a ideia da espada com a força bruta, fala de estrada e casa, algo distante e algo próximo, dor e família, algo que acolhe e algo que machuca. É sem dúvida um dos esquemas mais ricos que pude ouvir este ano.
A musa de Todo Tempo do Mundo, bem como a musa de Meu Esquema trazem para perto de nosso imaginário uma mulher mais subjetiva, certamente poética, com espaço para coisas não tão convencionais e rotineiras, essas musas tem papel inspiratório na obra, é uma descrição devota e tomada por um olhar além de suas tarefas domésticas ou inseguranças com o próprio corpo, isso rompe de certa forma com a ideia pré estabelecida de que o olhar divergente sobre o ser mulher parte com exclusividade do que é composto por mulheres, e isto não está no campo das puras e inocentes canções de amor, é um olhar preciso sobre mulheres que também são reais, e que em geral coexistem dentro das mamães corridonas que também são mais do que vendem as novelas e os hits mais ouvidos da indústria fonográfica.
As musas aparecem inicialmente na cultura grega, são filhas de Zeus e donas de toda capacidade de produção artística e científica, não são simplesmente a inspiração, elas concedem, originalmente, a capacidade de produzir aos artistas e cientistas. A arte e a ciência para os gregos antigos passariam necessariamente pelo consentimento dessas mulheres que nem sequer completamente humanas eram, elas eram cultuadas e valorizadas, necessárias. Em um mundo constituído após a chegada do capitalismo como modo de produção e a definição das mulheres como pertencentes ao espaço privado, as musas assumem o papel de serem puramente inspiradoras e não mais dotadas da capacidade de produzir, agora as mulheres são descritas e pensadas por homens e não mais por si mesmas, roubando-lhes o dom divino e inicial.
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A musa do espaço privado atravessa o tempo e aparece constantemente na arte, como por exemplo em Disritmia, famoso samba composto por Zé Katimba, esta musa parece disponível para curar seu nego dos desgastes da vida noturna que faz parte do espaço público da sociedade, o que evidencia que essa mulher que só existe em espaço privado e que assume o papel do cuidado:
‘’vem logo
vem curar seu nego
que chegou de porre
lá da boemia’’
Não tenho a intenção arrogante de transformar a aparição das musas, mas sobretudo tive como objetivo trazer a reflexão acerca de diferentes ou de similares olhares sobre essas personagens tão aparentes na história da música e da arte no geral, que podem ser descritas, e antes de tudo podem ser, qualquer, e não só a convencional, mulher.
Ouçam Maria Esmeralda, ouçam Mundo Livre S.A, e vida longa a inspiração que faz nascer a arte, da Grécia antiga até hoje, apesar das convenções capitalistas, misóginas e mercadológicas.
-A musa não óbvia: uma análise em literatura comparada entre os versos de Thalin e Fred Zero Quatro
Por Bruna Helena