A brasa cada vez mais incandescente das Cigarras

As Cigarras lançaram Fumódromo, álbum tão intenso quanto aquela tragada que leva a fumaça às profundezas dos pulmões!

Saindo de casa

Curitiba não dá mais conta da brasa das Cigarras. A banda resiste em virar guimba e acaba criando uma situação inusitada, na qual quanto mais a brasa queima, menos as Cigarras se desgastam. E essa brasa incandescente das minas já devastou a capital paranaense e começa a se alastrar Brasil afora. 

Em “casa” são velhas conhecidas do público que frequenta bares, inferninhos, porões e toda sorte de ambientes do underground curitibano. Contudo, a coisa tá virando e a banda já esteve presente em line-ups de festivais de peso. 

A começar pelo Psycho Carnival, maior festival de psychobilly da América Latina e que rola anualmente em Curitiba durante o carnaval. Lá pelo Sul ainda tocaram em outro festival de peso, o Psicodália, festival que vem acontecendo no interior catarinense faz uns bons anos.   Além disso já colaram em rolês por São Paulo. 

Outro momento marcante na caminhada da banda até aqui está na experiência que tiveram ao abrir um show para ninguém menos que Mark Ramone, batera da banda que é uma das maiores, se não for a maior, referências pras minas.  

Mark tocou em Curitiba em outubro de 2023. E ali as Cigarras provaram sua popularidade na capital paranaense. Foram escolhidas, dentre outras bandas, através de voto popular, para abrir o show pra lenda punk. 

Esse é apenas o ápice, porque a banda já abriu para nomes pesados do punk nacional como Cólera e Garotos Podres. Já se apresentaram algumas vezes em São Paulo, sempre deixando a marca indelével de suas músicas e suas performances durante os shows na memória de quem as assistiu. 

O primeiro álbum

Houve um tempo em que o tabagismo era um hábito social comum, muito bem aceito, até mesmo glamourizado pela indústria cultural e pelas agências publicitárias. As pessoas podiam fumar em ambientes fechados, como por exemplo bares e restaurantes. Carros e ônibus tinham cinzeiros como acessórios básicos. Era uma festa.

Cigarras
Capa de Fumódromo, arte feitar pela Francisca Braga.

Vieram as leis estaduais antitabagismo, reduzindo drasticamente o índice de fumantes país afora. Fumantes viraram persona non grata. E assim o hábito de fumar, desde sempre associado ao ato de rebeldia, de prazer, beleza, força e sex appeal tornou-se combatido. O espaço geográfico dos fumantes foi reduzido às fronteiras dos chamados fumódromos. 

Termo usado para dar nome ao primeiro álbum das Cigarras, Fumódromo, lançado no dia 08 de fevereiro de 2024. Se não tiveram a oportunidade ver uma foto da banda, sugiro que procurem e tenham essa experiência. 

As Cigarras têm uma presença bem intimidadora. Tanto na postura, quanto nas músicas. Impossível não olhar pra uma foto da banda e pensar “Porra!! Essas minas são duronas!” Isso porque abordam o estilo de vida boêmio em suas letras, sempre de forma contundente e revestida de humor ácido. Ouças faixas como Alma de Nóia, Fritando na Trajano, Ojos Rojos e Paranóia de Fumo, músicas de trabalhos anteriores a Fumódromo. 

A caminhada até o primeiro álbum da banda deixou dois EP´s, Alma de Nóia (2018) e Cigarras (2020), além de 6 singles, Delinquente (2018), Franco Atirador (2019), Paranóia de Fumo e Etnocidio, ambos de 2020, Ojos Rojos (2021) e Desordeiras (2022).  

Outra temática constante nas músicas das Cigarras são questões ligadas à pautas feministas. E isso é introduzido de forma orgânica nas letras, estão no comportamento de personas masculinas, presentes nos roles boêmios, no underground, sempre se comportando dentro de uma lógica machista, onde o homem se vê como caçador à procura da caça, as mulheres. 

O universo explorado pelas Cigarras nas letras de suas músicas está povoado de criaturas boêmias, sarjetas encardidas, porões mofados, e bares e inferninhos esfumaçados e mal iluminados. O estilo sonoro expressa em cores fortes e marcantes esses ambientes retratados pelas temáticas presentes nas letras. 

E a imagem do fumódromo expressa na arte da capa, magistralmente elaborada por Francisca Braga, e no nome do álbum, traz uma característica própria das Cigarras. Que consiste em não ter problema em adentrar territórios inóspitos à sua música e estilo visual.

Cigarras
As Cigarras descontraídas e sempre fotogênicas.

Os fumódromos existem em espaços onde fumantes não são bem vindos, devem se dirigir a um local apropriado no estabelecimento reservado a estes seres “vis” indiferentes aos terríveis avisos acerca das consequências do hábito de fumar presentes nos maços de cigarro. 

A imagem do fumódromo como este local de confinamento de quem insiste em manter viva a brasa na ponta do cigarro, traz algo próprio da música das Cigarras. A ideia de que não importa o quão opressora e careta a sociedade possa ser, taxar moralmente músicas e atitudes decorrentes dela, do estilo de vida que a rodeia, elas não farão concessões e continuarão a fazer sua música tal e qual sempre a fizeram. 

Foda-se quem se incomoda com isso. E em tempos de formação de uma teocracia neopentec em nosso país, fortemente caracterizada pelo moralismo e por um fascismo tupiniquim mambembe, encarnado no fenômeno bolsonarista, uma banda que se impõem através de suas músicas e postura, converte-se em uma arma de resistência importante para nós que estamos do lado de cá do estrato social. 

Esse espírito punk à flor da pele das Cigarras, exala intensamente através de suas músicas. Está presente em Fumódromo de forma latente. Tal qual os mestres Ramones, buscam inspiração nas próprias referências sonoras para compor suas músicas. Referências que vão de estilos dos anos 50 como o rockabilly, passando pela sujeira do garage dos anos 60, pelo mod, punk e até ritmos regionais do sul brasileiro.

O álbum é o primeiro full length da banda e acaba de ser lançado em vinil e streaming através de uma parceria entre o Zoom Discos e a Neves Records. Fumódromo tem 12 faixas, todas elas revestidas pelo sarcasmo e irreverência, traços característicos das músicas das Cigarras.

O universo presente na música das Cigarras. 

A música das Cigarras nos revela um mundo fervilhante, instável, sedutor, recheado de desejos, prazeres e caos. Um universo de emoções intensas, que pode levar à ruína, à loucura, mas que ao mesmo tempo nos leva a experimentar a sensação de estarmos vivos, porque as experiências ali vividas despejam torrents de adrenalina e dopamina em nosso organismo. E a sensação de estar inebriado de prazer e medo nos faz sentir vivos. 

O arrefecimento do moralismo, que tem levado os ditos “cidadãos de bem” a fazer um policiamento moral em redes sociais e mesmo em instituições como a escola, fez com que o universo dos prazeres boêmios ganhasse contornos de resistência. Ser boêmio é impor limites ao moralismo tacanho estruturado pelo bolsonarismo.

Cigarras
Cigarras em branco e preto.

Nesse sentido, a música feita pelas Cigarras apresenta esse caráter combativo. Fomos educados dentro de uma concepção extremamente moralista, que nos leva a acolher valores idealizados e a rejeitar tudo ligado ao material. Ou seja, somos levados a acreditar num amor inalcançável, pois não se apoia em nenhum lastro material, somos cobrados a ser bons, o que dentro desse sistema moral significa rejeitar o corpo e toda experiência que ele pode nos proporcionar. Desde os prazeres do sexo,a té os prazeres estéticos das obras de arte, até os prazeres dos excessos e das drogas. 

Somos levados a reprimir todo combo de prazeres oriundos dos sentidos ao invés de aprendermos a lidar com eles. Nesse sentido, a música das Cigarras nos leva a nos aproximar do nosso corpo, dos nossos desejos e confrontar toda miríades de experiências que podem advir deles. Sem fazer juízo de valores a respeito dessas experiências, apenas apresentando esse lado do que nos faz humanos, demasiado humanos. 

Vamos ver isso nas músicas que compõem o set list de Fumódromo. A música escolhida para abrir o álbum se chama Homem Limão. A letra aborda contrastes entre duas pessoas que procuram se embolar numa relação, digamos, bem caótica. Esses contrastes geram situações intensas, nas quais o eu lírico, uma mina, deseja essa figura, que ela chama de homem limão. E quando leio os versos:

Corro Peligro na pele do cão,

Piora se bebo Ypióca e limão.

                (…)

E quando vejo o homem limão,

Com seu chapéu de Ypióca na mão,

Fico querendo deitar pelo chão,

E quando acordo aquela sensação

Vejo aí o eu lírico tentando expressar seu desejo através da metáfora da Ypióca com o limão. Uma declaração de amor de uma mulher boêmia, que vê no ser amado o limão da sua cachaça. E cá entre nós, Ypíoca só desce se vc misturar com alguma coisa, limpa, só pra quem tá num estágio de alcoolismo avançado. Portanto, levando em consideração o contexto e as personagens envolvidas, taí um romantismo temperado pela boa e velha boemia. 

Cigarras
Cigarras no palco do Psycho Carnival 2024.

E essa “fita” nos é relatada num som cheio de swing e veneno, atravessado por solos de guitarra cortantes, carregados na selvageria, O andamento cadenciado torna impossível o controle sobre o corpo. O som cadenciado lembra um ritmo bubble gum desprovido da inocência que lhe é originalmente peculiar. 

Whisky On The Rock é uma ode ao niilismo alcoólico, que todo mundo que perdeu a fé no ser humano e curte uma fossa arrombadora acaba usando como válvula de escape. Aqui a guitarra inicia suja, frenética, “contaminando” a música que segue nessa pegada até o último acorde. 

Desilusão Vertical mostra uma femme fatale das sarjetas rondando pela fauna bolorenta das madrugadas noiadas atrás de corações para dilacerar, mentes pra confundir e lançar a moral de algum pobre diabo em queda num abismo de desilusões. 

Em Vingança Barata uma mina fodona confronta algum escrotinho a fim de controlá-la. Porém, as coisas não saem como esperado. O que encontra é a imposição da vontade dessa mina, já ciente da sua autonomia e força suficiente para não se sujeitar à vontade de quem quer que seja. 

Eu Gosto de Você Mas Também Gosto do Bar narra a história de uma mina que se divide entre as exigências do amor e o amor pelo bar. Uma pessoa com um pé em cada universo, tentando conciliá-los, tentando fazer-se compreender haver espaço em seu coração para o bar e para o ser amado. Mas cá entre nós, acho que o coração dela pende mais para o bar. Fosse eu quem estivesse apaixonado por ela, não ousaria pedir para escolher entre um e outro, porque é certeza que perderia feio para o bar. 

Cigarras
Cigarras em ação!

Prensa no Pulmão (Sheena Bonita) abre o lado B da versão LP de Fumódromo. A música, que é uma espécie de gênero musical regional envenenado com as influências roqueiras da banda, descreve, sob a ótica do olhar forasteiro da cidade grande, uma mina interiorana cumprindo seus afazeres. As belezas dos movimentos dessa Sheena Bonita (a palavra faz clara referência ao título de Sheena Is A Punk Rocker dos Ramones) são retratadas enquanto acende uma cigarra de palha na fogueira. 

Ao redor da fogueira a pessoa que a observa toma aguardente, fuma um, dedilha o violão enquanto observa toda a beleza dessa Sheena Bonita, que junto com o álcool e o beck ajudam a embriagar sua mente. 

Quando se está na fossa a única coisa possível é se isolar, se auto martirizar e lamentar com doses caprichadas de alguma birita combinada com algum entorpecente. Tais, Tais, têm letra da Paraguaya e se apresenta como aquela tentativa de ajudar a amiga a superar um acontecimento que a jogou nesse vórtice depressivo. 

Gal de Babydoll descreve uma cena bukowskiana típica. Bebedeira, personagem decadente num quarto bolorento, delirando sob efeito das combinações mais alucinantes de diferentes tipos de biritas, vendo num bolor agarrado na parede o objeto do desejo, a tal Gal vestida com seu babydoll. 

Último Cigarro sugere uma despedida da vida. Alguém agonizando, ciente da proximidade do último suspiro e tendo a experiência de assistir o filme de sua vida sendo projetado na parede de sua memória. Esse último cigarro, dedicado aos pulmões, simboliza a celebração de uma vida boêmia, sem arrependimentos e bem vivida de acordo com o eu lírico.

Fecha o álbum a faixa Eu não quero mais nada lembra um desabafo. Após o intenso trabalho de criar as músicas, fazer os corres para conseguir as condições para gravar, mixar, prensar e distribuir o álbum, quer-se apenas gritar aos quatro ventos liberando a energia restante para encontrar prazeroso alívio de ter se alcançado o cume da montanha.

E é assim que as Cigarras encerram seu disco, repetindo em diferentes entonações e intensidades a frase que dá título à faixa. E é assim que as Cigarras compartilham conosco essa trajetória cujo resultado é o Fumódromo. Vamos ouvindo enquanto elas desfrutam as benesses esse trabalho lhes trará. 

Um pouco da parte técnica 

Fumódromo foi gravado ao longo de 2023 no Laje Estúdio por Felipe Sad, produtor responsável por vários lançamentos locais de destaque como as bandas Vida Ruim, Clan dos Mortos Cicatriz e Rabo de Galo, entre muitos outros. 

A belíssima ilustração da capa foi feita por Francisca Braga, artista à frente dos projetos Ghost Behind You e Damn Laser Vampires. A edição em vinil ainda conta com as artes dos selos feitas por Roberta Roux, que já havia desenhado a icônica capa do compacto de estreia da banda. O LP ainda ganhou acabamento de capa aveludado e chega com tiragem limitada de 300 cópias.

O álbum pode ser adquirido no site da Neverer Records (neverrecords.com.brou no site da Zoom Records (

Dados

Maria Paraguaya – Voz / Guitarra base e solo, castanholas em Mandrágora 

Tais D’Albuquerque – Guitarra solo e base/ Vocal/ Backing Vocal

Rubia Oliveira – Contra Baixo / Backing Vocal  

Babi  Age – Bateria / Backing Vocal em Ciúme no Swing

Ficha Técnica: 

Captado, mixado e masterizado por Felipe Sad na Laje Estúdio (Zoom Discos)

Arte da capa e desing por Francisca Braga 

NR043 Neves Records, Zoom 016 Zoom Discos, sob licença de Cigarras.

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