Kamasi Washington: a caravana saxofonística de The Epic

Qual foi o último disco triplo que você ouviu? Não, espera. Qual foi o último disco triplo, Jazzístico, completamente acoplado de suítes, beirando 3 horas de reações químicas, cerebrais, sonoras e com um time de 62 músicos envolvidos que você escutou?
Os mais experientes diriam que uma fritação deste porte beira o começa dos anos 70, talvez o final dos 60, só que os mais novos apenas ficariam olhando para essas linhas e  corromperiam o cérebro com uma resposta comum: ”nunca ouvi nada assim”.
O que a palavra ”épico” significa pra você? Hoje é quase banal ouvir que uma cesta no estouro do cronômetro da NBA foi épica, que uma luta de boxe entre dois gladiadores de luvas, bailando como borboletas, foi marcante ou que uma esquerda paralela, salvando break point contra, em pleno match point adverso numa final de Grand Slam, também foi algo faraônico! Mas sério, defina aí professor Pasquale: Épico.
Sem pressão cara, mas nenhuma resposta que não seja: ”Kamasi Washington – The Epic”, estará correta. Quem gosta de música e não conhece esse disco mal sabe do estrago e da vitalidade que a terceira gravação de estúdio deste, que é um dos maiores músicos que surgiram recentemente, irá causar em seu sistema nervoso.
”The Epic” não possui uma beleza sensacionalista como as notícias que o Datena divulga como um stand up de hipérboles. Eis aqui uma gravação que consegue se eternizar dentro de um todo triplo, mescla a nata das gravações do Jazz da IMPULSE!, reapadrinha ideias de Pharoah Sanders, revigora conceitos de Alice Coltrane e culmina num som que prima por ser contemporâneo com a grandeza do passado. Um ponto primordial dentro do Jazz: a riqueza de sua complexa, suave, densa e sinestésica história.
É uma dose cavalar, com números absurdos, sem exageros (parece até difícil de acreditar), e que foi imaginada na cabeça de apenas um músico e colocada em escala para arquitetar algo que, relembrando o professor Pasquale, é ainda maior que ”grandioso”. Só que o mestre dos verbos, por ter errado a primeira pergunta, fará o favor de ficar calado enquanto escuta as ondas que embalsamam o ouvinte e fazem questão de mostrar que nem todo verbo possui significado.

Prepare-se para os três atos:

I -The Plan
II – The Glorious Tale
III – The Historic Repetition

Esvazie sua mente, corpo e alma e deixe que os 174 minutos e os 6 lados vinílicos de ”The Epic, sessão que veio ao mundo no dia 05 de maio de 2015, substitua todos seus fluídos. Renove e equalize todo a estrutura humana e sub humana deste planeta… Aqui nada se divide, tudo é apenas um todo maciço e disforme de matéria. Dependemos do saxofone para assumir qualquer padrão e respectiva energia. Kamasi Washington dedilha o sax, o futuro está dentro das notas de seu metal.

Track List CD1: The Plan
”Change Of The Guard”
”Askim”
”Isabelle”
”Final Thought”
”The Next Step”
”The Rhythm Changes”

Track List CD2: The Glorious Tale
”Miss Understanding”
”Leroy And Lanisha”
”Re Run”
”Seven Prayers”
”Henrietta Our Hero”
”The Magnificient 7”

Track List CD3: The Historic Repetition
”Re Run Home”
”Cherokee”
”Clair De Lune”
”Malcolm’s Theme”
”The Message”

Relembre os tempos onde um músico chegava carregado de vibrações ao estúdio, ouvia a música em sua mente, sentava, pensava em como tocá-la, regia uma tese filosófica em cada nota e só saia quando a prensagem estivesse pronta e seu corpo vazio. Finalizando uma busca, colocando todo o sentimento, as mazelas e energias para fora e deixando os alicerces de sua integridade livres novamente, para aí sim sair em turnê e encher o recipiente que agora está vazio à espera de novas cargas para um próximo trabalho.

A grandiosidade é tamanha, que quando cheguei ao fim, pensei: como suceder algo desta magnitude? Mas aí obtive minha resposta, foi praticamente uma retórica: quem espera por um disco assim? A música surpreende, e depois disso, é praticamente automático notar que Kamasi é o senhor de seu próprio tempo, feeling, Jazz e saxofone.

É perceptível que a complexidade desta obra impressiona, mas a arte deste cara é justamente descarregar tudo que possui dentro de si nos takes. Sua criação é uma missão e para uma eventual sequência, sabemos que criatividade não faltará. A questão é simples: o tempo precisa passar, surpresas entrarão no caminho e no fim tudo pode se resumir em dois takes.

Todos os três discos do americano demonstram isso, sua música adquire tamanha fluidez justamente pela tranquilidade com que trabalha. Ele não se questiona, apenas entra em estúdio e se liberta, cada gravação é uma fase de sua vida e seu destino depende de muitas notas variáveis.

Por isso que a música do saxofonista de 34 anos possui esse aspecto, por que cada track é um momento de sua existência e para se conectar dessa maneira é preciso estar de bem com seu instrumento, por isso Kamasi está sempre por aí. O músico não se restringe aos inúmeros gêneros existentes na música e pariticpa de tudo que precisar de um metal ao fundo, seja na jam com Thundercat, Kendrick Lamar, The Flying Lotus ou rachando os conceitos do Jazz ao lado de lendas como Stanley Clark e Kenny Burrell.

O som nunca para e essa é a principal mensagem deste disco. Kamasi deixa claro que o único limite da música é ela mesma e reúne a nata de músicos de toda a cena que lhe envolve e abraça para gerar algo que definitivamente será lembrado no futuro. Cada tema é uma odisseia de toda riqueza e diversidade da música atual.

I – The Plan (solte-se)

Dividido em três grandes épicos, acredito que o principal ponto em ”The Epic” sejam as mudanças de um disco e outro. Quando abrimos os trabalhos com a primeira etapa, ”The Plan”, notamos que a conexão é mais calcada no lado espiritual. São 6 temas bastante longos e munidos de um sentimento glorioso.

São 65 minutos que preparam uma imersão poderosa para ”The Glorious Tale” e ”The Historic Repetition”. Notamos o peso de temas como ”Change Of The Guard”, mas acima de tudo o que destaca esse primeiro insight são as camadas de metais.

Acoplando cordas em ”Askim”, mostrando o requinte das teclas de marfim em ”Isabelle” e ”Final Thought”, Kamasi e a orquestra de 32 membros segue alimentando o ouvinte com expresões de rara naturalidade, como ”The Next Stop” e a primeira faixa cantanda do disco, ”The Rhythm Changes”, tema que é acalentado pela voz de Patrice Quinn e por um angelical coral ao fundo.

II – The Glorious Tale (concentre-se)

Apesar de tantos detalhes ”The Epic” não é um disco de difícil audição. O tato do desenvolvimento dos temas mostra como as ideias foram bastante lapidadas até atingirem este grau de qualidade e nos brindam com grande relaxamento na maior parte do disco.

Em ”The Glorious Tale” os acontecimentos sonoros são marcantes e desde ”Miss Understanding” notamos a intensidade desses de ares. Sentimos o corpo pulsar com temas como ”Re Run” e mais do que isso, esse caráter de mudanças disco à disco entram como glicose na veia do ouvinte. A oxigenação surge com temas quentes e foco no Fusion como ”Seven Prayer” e o baixo casca grossa  ”The Magnificient 7”.

É interessante que mesmo com uma abordagem mais ácida, a segunda sessão parece ficar em aberto após após fim. Até o momento tivemos o disco um para um para atingir a imersão. No segundo, com o plano plenamente explicado e em processo, parece que os pontos mais altos desta jornada são narrados em sua totalidade.

III – The Historic Repetition (sinta o equilíbrio entre música e espírito)

Só que na elevação do sax do senhor Washington ainda existe espaço para mais jams e improvisos. Por isso que o karma é encerrado com ”The Historic Repetition”. O último relatório-manual de experimentações sonoras de um dos melhores discos que o Jazz produziu nos anos 2000. Aqui o improviso reina soberano e retoma o ar celestial e revigorante dos dois primeiros CD’S com uma mistura explosiva e que encerra o ”Bitches Brew” da visão saxofonística da coisa com maestria.

Primeiro começamos no relaxamento, depois experimentamos a intensidade dos novos tempos e no final somos surpreendidos com o ápice da fritação em momentos de Jazz Funk como em ”Re Run Home”, ideias Blueseiros e requintadas em ”Cherokee” e momentos de inspiração interplanetária como no estrondoso sentimento de ”Clair de Lune”, um dos grandes momentos deste registro.

”The Epic” não é um teste de paciência, acredito que da mesma forma que as vozes de ”Malcolm’s Theme” se desenrolam, Washington visa apenas a expansão de seu vocabulário musical, características impressas à fogo dentro de um disco que deveria ser chamado de obra, tamanho sua vontade de mostrar o brilho que a música ainda pode instaurar no universo.

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