Segundo disco do baiano Oddish, Onironauta (2021) com o Degraus nos beats, é um mergulho na fonte dos sonhos e dos nossos comportamentos!
“Eles dizem que a dor é cíclica/ Vozes cínicas fazem cálculos/ São sussuros de vozes íntimas/ e elas fingem que são oráculos/ Na verdade são obstáculos me levando para guerras ínfimas/ e meu cérebro pede químicas , as garrafas são tabernáculos”
Não são muitos os MC’s de batalha que conseguem migrar do ambiente de freestyle para a produção de músicas que potencializam um estilo próprio. Oddish é uma das lendas do cenário das batalhas de rima em Salvador, em um cenário onde enfrentando muitos nomes de alto nível local, emergiu como um dos maiores ganhadores desses concursos. Em certo sentido, seu primeiro disco, o inflamado Ponteiros Voam como Jatos (2014) foi o começo de um exercício de tornar público um estilo próprio e ao mesmo tempo de combater os demônios internos que podem consumir uma carreira artística e consequentemente a vida humana.
Após o lançamento do seu debut, vimos Oddish se desenvolver junto a Fraternidade Maus Elementos, uma das bancas mais pesadas do rap nacional. Junto com os caras, o MC participou da pesadíssima mixtape Eles Não Perdoar (2015), acrescentando sujeira a um aterro sanitário de excelentes MC’s que naquela altura conjugavam um estilo underground e combativo! Neste ano da des-graça de 2021, Onironauta chegou na última sexta feira dia 12/02 a todas as plataformas digitais é um disco totalmente produzido como uma espécie de acerto de contas, e um passo à frente nessa história acima malmente resumida!
Acerto de contas aqui, não por um enfrentamento ao entorno e ou aos desafetos, mas por se configurar como um exercício de auto reflexão feito através de ritmo e poesia, mas conhecido como RAP. Não à toa, o nome do disco (Onironauta) remete-nos a uma imagem muito interessante, a do astronauta dos sonhos, à àquele que vai explorar as camadas de produção inconsciente que determinam a nossa subjetividade. Oddish produz ao longo de 14 faixas um “tour de force” consigo mesmo e o resultado disso é um disco feito para ouvir com atenção, com climas e camadas de interpretação profundas de si mesmo, mas que certamente pela força de sua caneta, se universaliza em nós.
A tríade inicial do disco já nos revela de saída esse processo de reflexão sobre si próprio, sobre os erros, sobre relacionamentos, sobre perdas, e sobre buscar se construir de uma outra forma. Composta pelas faixas “Perto (outra Mentira)”, “Ciclíco” e “Voltei” compõem esa abertura onde se vai de si mesmo até a cena, a sua participação no cenário do rap local assim como na relação entre um individual quebrado, errante e errático, mas sempre crítico e ácido, até um coletivo conflituoso, construído dentro da ideia de competição e em muitos sentidos adoecedor.
É muito importante notar como Oddish vai junto ao Degraus beats, subindo os tons e fazendo um movimento gerando dentro e rumando em direção ao coletivo. Menções de amor e sacanagem com o pobre do Degraus, um dos responsáveis por essa volta, aos poucos o disco caminha para uma leveza mais bem humorada nesse primeiro bloco. A quarta faixa traz a participação de um dos MC’s mais importantes do nosso nordeste, Teagacê que sempre escreve com uma poesia muito forte e com um flow rico, soma com Oddish em Fulgor. Mas do que chorar as dores da depressão, é interessante notar as menções do Oddsih ao seu terapeuta, o que possui um efeito realmente terapêutico.
“Nesse tempo, quantas fugas de mim mesmo eu trago/ Desprezando a cicatriz e o vôo dos ponteiros/ Transitei no limbo entre o soco e o afago/ Deixando pegadas em terraços е bueiros..”
Oddish é também um MC que possui quedas para uma sonoridade indie, mas alternativa, talvez até emo, e o Degraus conseguiu produzir em altíssimo nível como na faixa “Nunca Vai Acontecer”. Aqui, o MC reflete sobre relacionamentos e a qualidade é evidente, inclusive com Oddish cantando bem o refrão. “Gamma Crucis” traz um melancólico piano abrindo a faixa, o beat que progride numa linha marcial, encontra um Mc cheio de questionamentos metafísicos. Poeticamente Oddish parece estar em seu melhor momento e utilizar a imagem de uma das estrelas mais brilhantes do cruzeiro do sul, o artista produz uma das faixas mais impactantes e profundas do disco.
O “Castro” chega em “Canon”, uma trapzeira do Degraus, com sujeira e autocrítica às relações frágeis e desesperadas, com um ar cínicamente ácido sem se isentar. “Duas Opções” consegue a proeza de conjugar a forma como o MC se vÊ e a forma como as pessoas o vêm, refletindo também sua formação emocional e as amizades que falham. “Cambridge Park” é a faixa que me dá vontade de pular no disco, essa verve do artista é aquilo que não me agrada, porém muitos vão gostar como o próprio MC fala em “Voltei”, tem uma galera que se amarra nessas lamúrias. Eu não.
Em breve, queremos muito ver um show desse disco, e de modo geral um show do Oddish que dos dois álbuns solos, lançou muitos singles nesse ínterim entre um disco e outro. “Lá Fora” tem a cara, o cheiro, toda a pinta daquele momento do show onde acendemos os isqueiros e apertamos/trocamos carícias com nossa companhia. Faixa cantanda pelo MC, mostra também a excelência na produção do Degraus. Em “Precipícios” encontramos uma comovente e pungente descrição poética, um storytelling de uma alma enfrentando a depressão, é tocante, é real, mas sobretudo é arte.
Podemos observar a grandeza de um homem percebendo o quanto ele ri de si mesmo. um aspecto muito forte em Onironauta (2021) é como Oddish mira sua acidez crítica para fora mas sempre tomando o dentro como ponto de partida. Nesse sentido, o Onironauta que observamos aqui é um anti herói, e antes de embarcar em qualquer ego trip ele verifica direitinho as malas, o checklist, para daí partir! “Vômitos em Moletons” é talvez uma abertura, um desejo, uma busca de encontrar alguém para dividir as loucuras e para estar forte junto. Algo que só é passível de se conquistar quando estamos capacitados ou seja quando não derramamos mais no outro aquilo que nos faz mal.
Se aproximando do final do disco, a segunda participação, a faixa “Amanhecer” se configura como uma espécie de continuação conquistada dos anseios da faixa anterior. Dactes é o convidado que abrilhanta a música com seu estilo mais contido e introspectivo, e aqui seduzente com linhas certeiras e muito tino soul. Encerrando o disco “Longe (Só um guri)”, novamente Degraus utiliza sample de pianos, com batidas boombap, encontra não uma solução para todas as batalhas narradas ao longo das faixas, mas aceitação dessa guerra que é viver!
O Onironauta tendo finalizado sua exploração nas camadas mais profundas de seu inconsciente, percebe a terra arrasada em que se encontrava, nota o quão esquálida era sua visão de mundo e a forma tóxica de se relacionar com os outros. Mas, diante desse cenário, não propõe uma solução moralizante confortável em reduzir processos da existência em bem e mal. Oddish se destrincha em nossa frente, nos esfrega um espelho na cara e não nos entrega a imagem de uma bela alma que superou seus problemas, seus erros, suas frustrações, antes nos demonstrando a necessidade de se entender, de caminhar e buscar ajuda, de refletirmos sobre nossas ações e quem sabe assim, vencermos o medo de sermos quem podemos ser.
Quem tem coragem? Tá com medo? Dê o play e se enfrente!
-Oddish voltou virado na desgraça como um Onironauta(2021)
Por Danilo Cruz