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Zudizilla em Zulu, Vol. 1 ou o Caso do homem certo

Zudizilla em Zulu, Vol. 1 ou o Caso do homem certo, um artigo sobre o chão e a caminhada necessária para alcançar o céu sem nunca se perder.

Em 1987, na cidade de Porto Alegre um homem negro chamado Júlio César teve sua vida covardemente tirada pela Brigada Militar. Para quem vem do Rio Grande do Sul é Brigada Militar mesmo, não é Polícia Militar. No dia 14 de maio de 1987, no bairro Partenon, estava acontecendo um assalto à um supermercado. Quando a BM chegou ao local, os ladrões ainda estavam dentro do estabelecimento. Houve uma intensa troca de tiros, onde um dos assaltantes morreu e um policial foi ferido. Um dos assaltantes fez duas crianças de refém. Júlio César de Melo Pinto, que morava ali perto, ao ouvir os tiros, ficou curioso, saiu de casa e foi ver o que estava ocorrendo. Mas foi aí que aconteceu algo que daria fim à vida de Júlio César. Ele sofreu um ataque epiléptico próximo ao supermercado. Como havia saído de casa sem documentos e estava caído no chão, os policiais acharam que Júlio César era um dos assaltantes. Negro, pobre e sem documentos em uma cena de assalto. O prato cheio para ser preso por uma corporação que recém havia saído de um período de ditadura militar. 

O repórter fotográfico do jornal Zero Hora Ronaldo Bernardi tirou uma foto de Júlio César sendo colocado na viatura com vida e resolveu seguir a viatura para ter mais fotografias para a matéria que daria uma capa no periódico. Pouco mais de uma hora se passou, e Ronaldo fez outra fotografia que faria o caso de Júlio César ser lembrado até hoje. Na chegada da viatura no Hospital de Pronto Socorro, Júlio César chegou sem vida, com um tiro no abdômen. 

Esse caso virou capa de Zero Hora, virou o nome do disco da banda L.O.R.D.S. do Rapper Piá, inclusive com as fotos de Ronaldo Bernardi na capa e em 2017 virou um documentário chamado O Caso do Homem Errado.

Talvez esse não tenha sido o primeiro nem o último jovem negro gaúcho chamado Júlio César que tenha encontrado o seu fim de forma tão trágica. Afinal de contas jovens negros, gaúchos ou não, infelizmente seguem vítimas de uma estatística negativa que faz com que páginas policiais sejam as primeiras à serem lidas ao abrirmos jornais. Temos o hábito de primeiro buscarmos notícias de tragédias, para só depois sabermos se nosso time ganhou ou perdeu, e por último dar uma passada na página cultural, até porque para quem vem da periferia, o cultural é justamente isso, a perda de pessoas próximas, a dor, a lágrima, o triste hábito forçado de lidar com a perda, com a ausência. Nos acostumamos a ter essa percepção de que isso é cultural.

Mas 32 anos depois existe um novo jovem negro, gaúcho, coincidentemente registrado com o nome de Júlio César ocupando páginas de jornais. E a primeira coisa que você pensou foi que seria novamente nas páginas policiais que você encontraria notícias do caso desse homem, que dessa vez não é o errado, é o homem certo, que vem sendo destaque por estar no momento certo, na hora certa, lançando um disco. Portanto, dessa vez as páginas são as da editoria de cultura. 

Esse Júlio César de 2019, também atende pelo nome de Zudizilla. Mas antes de ser Zudizilla, já foi Zulu, já foi Maninho. Tudo depende do momento em que você o conheceu. Na Guabiroba, bairro periférico de Pelotas onde se criou, era Maninho. Alguns anos depois, virou Zulu, já conhecido em toda a cidade e arredores. E agora, quando o Brasil passou a conhecê-lo é Zudizilla. 

No meu caso, que o conheci no seu começo no Rap é Zulu, e é assim que vou tratar dele por aqui. 

Zulu carrega em seus ombros um pouco do peso que talvez seus ancestrais tenham carregado. É um peso diferente, mas a responsabilidade pode ser até parecida. 

Pelotas é uma cidade situada no Sul do Rio Grande do Sul. Há muita gente que pensa que todo o território gaúcho é composto por área rural, onde todos andam sob cavalos, tomando chimarrão e comendo churrasco todos os dias. Há outros que pensam se tratar da Europa brasileira. Um lugar lindo, cheio de gente de olhos azuis e cabelos loiros. Há uns até que nem sabem que no Rio Grande do Sul existe Rap. Outros pensam que se existe Rap, talvez não haja a vivência necessária para se escrever uma letra de Rap. 

Mas a Cultura Hip Hop no Rio Grande do Sul existe de forma paralela ao seu início no Brasil. Desde os anos 80. 

E por se tratar de um território distante do eixo onde tudo acontece, as dificuldades são muito maiores. Por não se tratar do topo, da parte mais elevada, as coisas são quase que subterrâneas por lá. Tanto que uma Cypher chamada de Poetas do Poço foi feita por MC’s de Pelotas, fazendo lembrar que o poço é o subsolo, o local onde as coisas não são vistas, afinal ninguém quer estar no fundo do poço. Até as Tartarugas Ninja faziam questão de vez ou outra darem um jeito de levantar as tampas dos bueiros e iam respirar outros ares. Com o Zulu não foi diferente!

Essa tampa de bueiro que cobre cabeças e encobre talentos, em Pelotas ela tem uma outra forma de ser tratada. Em Pelotas o peso que se tem sobre o seu corpo é de uma negatividade que não é vista, não é palpável. É algo como uma nuvem carregada em dias de chuva. E essa nuvem carregada, faça chuva ou faça sol, lá está ela, tratando de nublar os dias mais ensolarados de qualquer pelotense. É uma névoa que remete aos tempos das charqueadas. Muito sangue foi jorrado nessa época, e esse sangue era majoritariamente de homens e mulheres negras escravizados, que enriqueceram muitas famílias tradicionais da cidade. Esses traumas do passado se agarram até hoje em cada cidadão pelotense. O índice de violência e o desemprego aumentam de forma assustadora, fazendo com que Pelotas pare no tempo, não oferecendo nada além do mínimo para seus moradores e infelizmente não existe uma perspectiva de melhora. Mas existe algo que prende o pelotense à sua cidade de nascimento. 

O fotógrafo Nauro Júnior, nascido em Novo Hamburgo, mas há muitos anos radicado em Pelotas, recentemente falou que o pelotense pode ter ido morar em Barcelona, mas ao invés de ir no Camp Nou assistir o Barça jogar contra o Real Madrid, prefere ficar ouvindo jogo do Xavante no rádio. Também falou que parece que o povo de Pelotas se assemelha aos muçulmanos, que em determinada hora do dia, se vira para Pelotas como se fosse a Méca, para rezar.

E é justamente isso que percebi ouvindo o novo disco do Zudizilla (agora vou voltar ao atual nome). Há um ano e meio morando em São Paulo, Zudizilla acabou de botar na rua seu álbum intitulado De Onde Eu Possa Alcançar o Céu Sem Deixar o Chão. No título já fica claro onde Zudizilla se encontra, onde quer chegar, mas principalmente, de onde vem. O céu no sentido figurado pode ser São Paulo, que para muitos é o objetivo principal de chegada, o ápice do Hip Hop no Brasil. Mas o chão, além de demonstrar que Zudizilla não pode fazer com que nada lhe suba à cabeça nesse momento de conquistas, também é Pelotas. É de lá que vem as vivências que fazem Zudizilla chegar onde está chegando, aos 34 anos, comemorados exatamente no dia do lançamento do álbum. 

Existe ainda muito de Pelotas nesse álbum, tudo é muito recente, a mudança ainda tumultua a cabeça de Zudizilla. Mas isso é muito normal para quem sai de Pelotas. Muitos questionamentos são feitos, mesmo depois de um bom tempo longe. Isso faz parte do processo de se desvencilhar dos laços que Pelotas é capaz de fazer com quem a deixa.

A arte sempre se fez presente na vida de Zudizilla, seja como grafiteiro, desenhista, compositor. O que chegou primeiro como música na sua vida foi o Rock. E a essência suja do Rock lapidou muito do que se vê na sua vida hoje em dia. 

O sonho de ser arquiteto, passou para a vontade de ser designer e culminou em um menino negro com o microfone na mão. E isso é muito poderoso. Portar um microfone, não só amplifica a voz, como também dá potência. A força que faltava para o Zulu se transformar em um monstro Godzilla, ou melhor, Zudizilla!

Mas toda essa força monstruosa não caberia em uma cidade onde os artistas travam batalhas homéricas para sobreviverem de suas artes. Pelotas já estava pequena para absorver o que Zudizilla tinha para despejar.

Antes de partir na sua jornada em direção à capital do Rap no Brasil, alguns artistas de renome da cena já pediam atenção ao trabalho de Zudizilla. KL Jay talvez tenha sido o primeiro, seguido por Kamau. Isso fez com que de fato as pessoas passassem a questionar e querer saber quem é esse cara que vem de um lugar que muitos nem sabem que existe Rap, e está tendo atenção de gente tão influente. Quando Zudizilla chegou em São Paulo, veio a hospitalidade de DJ Nyack, Emicida, novamente Kamau, Coruja BC1, Léo do Rap Box, Luedji Luna, Matéria Prima, DJ Cia, Eloy Polêmico, Nego Max, entre outros.

E muito do que Zudizilla vem conquistando em São Paulo, é parte de um sonho de várias gerações do Rap gaúcho. Vários começaram nos anos 80, 90, 2000, 2010. Muitos desses já pararam de cantar, outros ainda seguem em atividade. Muitos estilos diferentes, ritmos diferentes, vozes e cores diferentes, mas com algo em comum. O sonho de um dia viver do Rap, de sua arte, de seu talento. Isso sempre foi o objetivo traçado, mas poucos persistiram quando tudo parecia perdido. Na verdade, talento e persistência não são sinônimos de sucesso. Quantos ótimos rapper’s Pelotas foi capaz de gerar? Quantos não obtiveram êxito em suas jornadas? Esse é o xis da questão. 

O sonho muitas vezes foi interrompido por motivos que cada um talvez nem saiba responder, não tenha argumentos para explanar. Questões geográficas, familiares, pessoais, até espirituais talvez. Todos têm seus motivos. 

Há muitos anos GOG esteve em Pelotas e nos disse que o melhor lugar para se fazer Hip Hop é o lugar onde você está. É meu mano GOG, pode ser o melhor lugar, mas não o lugar suficientemente capaz de fazer você feliz. 

Zudizilla foi atrás do seu espaço, do seu lugar no mapa, deixou família e amigos, mas foi ciente que estava indo atrás realmente era de sua felicidade.

Carregou consigo um sonho de vários, um pedaço de cada MC estava dentro da mochila no momento em que partiu.

Em 2011 eu e o ainda Zulu, fizemos um som chamado Guenta a Treta, onde na sua parte ele fala: Voar para longe não é solução dos problemas que o mundão apresenta, o coração é quem sustenta, guenta a Treta. Mas foi inevitável não alçar vôos maiores.

E ele sabe muito bem disso. Sabe que estar em São Paulo levando o nome da cidade de Pelotas demanda muita responsabilidade. Está buscando o topo, com a cabeça erguida de quem sonha alcançar o céu, mas não deixa de vez ou outra dar uma olhadinha para baixo para que não necessite deixar o chão. E quando olha para baixo, olha literalmente para o Sul, pois é de lá que vêm as vibrações capazes de sustentarem Zudizilla quando ele se perguntar: Eu não sei o quê tô fazendo aqui!

Escutem esse disco que é um trabalho muito forte 

 

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