X, os punks se mantém em atividade em maio a quarentena. Prova disso é o lançamento do oitavo álbum de estúdio da banda em meio a toda essa insanidade.
Antes de mais nada preciso dizer que hoje estou entrando em campo com o jogo ganho. Isso porque vou falar de uma banda icônica e respeitadíssima. Nada mais nada menos que a banda mais artística e poética da história do Punk Rock: X. Recentemente, o X entregou a versão física do seu novo disco, e nos dá uma ótima oportunidade pra voltar a conversar sobre um dos maiores lançamentos do ano. Vamos de Alphabetland!
Nesse sentido, a lendária banda punk é tão ligada à literatura que seu começo parece até a introdução de um grande romance. Exene Cervenka, uma jovem escritora recém-chegada no cenário idílico da Los Angeles dos anos 70, atende ao seu primeiro workshop em um novo emprego na Beyond Baroque Literary Arts Center, epicentro da cultura hippie/beatnik da região. Neste grande salão cheio de cadeiras vazias, John Doe, outro vivaz poeta, aproxima-se e senta ao seu lado.
Ao serem questionados pelo mediador do evento sobre suas maiores influências, Exene aponta Charles Bukowski, Doe traz o nome de John Lennon, e assim se entrelaçam em uma troca de experiências e energias que nunca mais acabaria. Desta forma a conversa entre os dois se transformou em paixão. Dessa paixão nasceu um dos casais mais expressivos da história da música e uma banda que ajudaria a arquitetar uma das cenas originais do movimento Punk nos EUA.
Ainda pequeno, fui exposto ao primeiro Decline of The Western Civilization. Fiquei atormentado. Não tinha certeza se tinha entendido o que acabara de ver. Acontece que a melodia assombrosa de “Nausea” não saiu mais da minha cabeça. O X era diferente das demais bandas do filme e dava pra sentir que tinha algo preclaro e ambicioso ali (Cara, aquele “X” flamejante!).
Exene era mágica e teatral! Billy Zoom tinha riffs cortantes e solos que emulavam o melhor do rock ´n roll dos anos 50, um verdadeiro virtuose do instrumento. Assim como o baixo de John Doe e a batera de DJ Bonebrake tinham pulsações fortíssimas. Pra fechar, quando os vocais do casal se encontravam era como fogo e gasolina. Não pude evitar, corri atrás dos 4 primeiros discos. Caminho sem volta.
Dessa forma, o fato é que, no dia 22 de abril de 2020, em mais uma comum quarta-feira no isolamento, rolando meu feed no Instagram, dei de cara com uma arte do pintor e escultor Wayne White: uma paisagem junto a um título e um estonteante “X”. Era belo, majestoso, e só se conseguia checar as imperfeições se olhasse bem de perto. Perfeita metáfora do sonho americano.
Gelei, surtei, rodei a internet atrás de informações, de tal sorte que as minhas suspeitas se confirmaram: 35 anos depois(!), estávamos, sem aviso algum, diante de Alphabetland, o novo álbum da formação original do X. Era um milagre da quarentena!
Percebem o peso disso? Com mais de 40 anos de carreira, essa é a last band standing, último grupo de uma das primeiras classes do Punk americano com todos os seus integrantes vivos. Bem como permanecem atuantes sob seu nome clássico. Agora trazendo material inédito para as plataformas digitais. Teria a bolacha potencial suficiente para sair de uma pré-produção e figurar sua sólida discografia?
Bem, sempre tive uma questão sobre o grupo: seria ele mais cultuado do que ouvido? Precisariam mesmo trazer uma coleção de canções tão forte para convencer o público a abrir o Spotify? E a resposta é sim. O último disco (sem Zoom) data de 1993, e o mundo agora é completamente outro.
Desse modo, a estratégia aqui, então, é a mais sábia possível: em 27 minutos, trazer de volta o som áspero e visceral que o grupo forjou ao lado de Ray Manzarek (The Doors) em seus dois primeiros discos. Tudo aliado à uma produção minimalista que dá espaço para que todos os integrantes brilhem. E como brilham!
Assim, sob a batuta do produtor Rob Schnapf, o mago por trás de Elliot Smith, Beck e Saves The Day, a angelina se mostra mais poderosa do que nunca: as guitarras são ácidas e precisas; as baterias são gigantescas. Portanto, tudo soa como a Sunset Strip dos anos 70. Você sabe que algo grande está para acontecer, mas está desconjuntado demais para conseguir decifrar os sinais. De tal sorte que o som tem urgência, verdade. Contudo, não deixa de carregar um senso atual que consegue dialogar com qualquer coisa a estampar as playlists roqueiras de 2020.
Portanto, temos que falar sério sobre John e Exene. Que encontro! Doe, um ídolo pessoal, traz seu baixo mais afiado do que nunca! As linhas são de tirar o fôlego: velozes, porém dançantes, agressivas, mas tocantes. Seus vocais de ouro (como descritos no Mother´s Milk) estão circunspectos, curtidos pelo tempo, e como se estivessem mesmo tentando nos ensinar algo. Cervenka está apaixonante, graciosa, sincera, e consegue pintar a real imagem de cada frase dos textos. As harmonias? Perfeitas. Química pura entre eles.
Quanto às letras, ainda estamos naquela velha biblioteca do (ex) casal. Desse modo, há muita riqueza poética e referências literárias. Assim, a X mantém sua luta para equilibrar perfeitamente realismo e romantismo. Ainda buscam trazer aquela visão singular que tem de LA. Cuja linguagem é arrojada, os discursos imponentes, mas conservando aquela sensação de divagação de porta de bar. Sim, o “velho safado” está entre nós.
Desse modo, passemos às faixas. Importante citar logo de cara, além do arrasador single que dá nome ao álbum, as 3 velhas conhecidas que originaram o projeto:
“I Gotta Fever” é uma canção de 1977, que traz aqui modificações na letra original. Porém, conserva o feel cinemático, que o, também, ator e apaixonado por produções noir, John Doe, evoca ao falar de luxúria. Inebriante.
“Delta 88 Nightmare”, composição dos tempos de fundação da banda, é um punkabilly furioso. Busca em Cannery Row, clássico de John Steinbeck sobre o cenário montado em Monterey (Califórnia) pela Grande Depressão, um jeito de reafirmar os conceitos do grupo sobre a cidade dos anjos. Criando assim, sua própria comunidade de “meretrizes, cafetões, jogadores e filhos da puta”, que olhando por outro ângulo, poderiam ser, simplesmente, “santos e anjos, mártires e abençoados”. Energia pura.
“Cyrano DeBerger´s Back”, sim, aquela mesmo de See How We Are, com sax matador de Zoom, mistura funk e doo-wop com precisão. A letra é baseada na peça, escrita em forma de poema, de Edmond Rostand sobre o brilhante escritor francês Cyrano de Bergerac. Nela, Cyrano dava voz, em cartas, à Christian, paixão de Roxanne, enquanto, na verdade, aquelas frases que causavam tantas sensações na moça, vinham do sentimento real que o autor nutria por ela, mostrando que o amor pode sim nascer apenas de palavras, já que podemos sentir a alma do escritor através delas. Perfeito para o X.
Outras ainda merecem atenção: “Free” traz ecos de Eddie Cochran, e reafirma o frescor que envolve o quarteto nessa nova fase. “Water & Wine”, chacoalhante, traz um toque político à mesa para falar de excessos e disparidade de classes.
Alphabetland, no entanto, pega fogo de vez ao entrar na sequência que se inicia com a primeira dentre as novas composições, “Angel On The Road”. Essa apresenta lamentos calorosos sobre a vida na estrada, e combinaria perfeitamente com passagens daquela clássica obra de Jack Kerouac.
“Goodbye Year, Goodbye” nos leva ao ápice da audição. É a catarse. O refrão do 2020.
Todavia, existe algo melhor do que a banda que cantou, cheia de traços de Edgar Allan Poe, “The World´s a Mess; It´s In My Kiss”? Implorando, a plenos pulmões, que o ano da pandemia não nos faça chorar mais do que já fez? Além, claro, de anunciar a chegada de uma nova era? Pois é, o discurso da banda ganhou, finalmente, um incrível tom esperançoso, e por que não, profético.
Por mim, o disco terminava por aí. Libertador. Apoteótico.
Mas ainda temos mais uma faixa. Faixa que muitos dirão ser desnecessária. “All The Time In The World” nos brinda com uma jazzística(!) participação de Robby Krieger (The Doors), criando uma cama para a Exene regurgitar um spoken word beatnick sobre seus demônios de outrora.
Desse modo, acontece que, depois de algumas audições, caí na real: o cenário da Los Angeles fora da lei, dos becos sujos, dos clubes enfumaçados que vemos aqui pede esse “fim de festa”, essas “cadeiras vazias”, e clama por um solitário fechar de cortinas no último suspiro. Justo.
Assim sendo, o X está entre as bandas punk clássicas que mais admiro. Sou louco por toda a discografia, e, com certeza, Alphabetland brigará para encabeçar minha lista de melhores do ano, quando chegar o momento de fazer esse balanço. Portanto, não é todo dia que damos de cara com um comeback dessa magnitude, portanto, correria agora para o streaming, se fosse vocês. Adaptando a frase que introduz The Unheard Music, lendário filme da banda: PLAY THIS RECORD LOUD.
Por Tom Siqueira