Vitor Pirralho & Unidade, uma saga Hip Hop, que neste capítulo traz um disco importante, coroando uma trajetória realmente antropofágica!!!!
Há muito ruído, muita ignorância, há um apagamento constante de tudo aquilo que é capaz de quebrar barreiras e fazer algo avançar, de tudo aquilo que luta e resiste pouco atravessa a barragem que represa forças vitais. O trabalho de Vitor Pirralho & Unidade é uma dessas forças que estão contidas, obstaculizadas por todo um sistema programado para produzir ignorância e crueldade, barbárie e escravidão. Diretamente de Alagoas, Vitor que é pernambucano de criaçâo (onde cresceu), tem produzido um trabalho que faz pelo menos 10 anos, é digno de nota e atenção.
Com uma caminhada de pelo menos 15 anos como profissional, um pouco mais no que tange a experimentações em casa e trabalhos amadores, Vitor Pirralho possui três discos lançados. O primeiro, Devoração Crítica do Legado Universal (2008), seguido de Pau-Brasil (2009) e o topo máximo de sua carreira até agora: A Invenção é a Mãe da Necessidade (2019). Este último um dos grandes trabalhos lançados no rap nacional durante esse ano.
Nem todo branco é playboy e muito menos apropriador da cultura, ou seja nem todo branco é tipo o Fabio Brazza, talvez por isso não tenhamos ouvido falar do Vitor Pirralho antes, pois além de ser nordestino não é apropriador. Um dos excelentes signos de busca constante por apropriação da cultura hip hop, Brazza possui um disco chamado Tupi Or Not Tupi (2016). Algo que já estava presente desde 2008 ( oito anos antes) no trabalho de Vitor Pirralho e que o outro tentou se apossar se arvorando como o primeiro a trazer a ideia da antropofagia oswaldiana para o rap nacional. Escutem essa elegante diss.
O fato importante, além de desmascarar farsantes dentro do rap nacional, é que em seu terceiro trabalho, o Mc alagoano, apresenta um feat com o grande Ney Matogrosso. Uma parceria construida anos antes, quando esse que é um dos maiores interpretes da nossa música gravou a sua composição Tupi Fusão no disco Atento aos Sinais (2013). Se ligaram?
Composição presente no seu segundo disco, é uma das excelentes histórias de como de modo orgânico o rapper alagoano, um ilustre desconhecido da cena do rap nacional, trouxe uma trupe do primeiro time da música brasileira, para o disco A Invenção é a Mãe das Necessidades (2019).
Aqui cabe um necessário parêntese. Você já tinha ouvido falar do nome Vitor Pirralho & A Unidade? Já tinha visto ele espernear na internet falando mal da mídia? Dos blogs de rap? Não né? Com três discos lançados, diversos singles e clipes, ele segue trabalhando e é esse trabalho que fez com que ele chegasse até nós, via Freeza (OQuadro).
Em seu último trabalho, o que podemos notar é a excelência de um artista maduro, um trabalhador das letras, na composição e no ensino ( Vitor é professor de literatura), de um homem que realmente vive a antropofagia. Devorar os inimigos e absorver suas forças, isso não é um clichê na boca de quem acredita poder aprisionar o inimigo no estômago. O trabalho de Vitor Pirralho em seu terceiro disco transborda o respeito necessário para o reconhecimento do outro, para a identificação do inimigo, para a empatia e o entendimento dos aliados.
Seus raps, sua arte é fruto desse procedimento antropofágico que não tem nada de colonizador, de apropriador, muito pelo contrário, é uma potente reflexão no devir de um pensamento livre dessas amarras seculares, e por isso mesmo, daquele que busca entender as teias da história sem se reduzir.
No clipe junto a Ney Matogrosso – que é a música que abre o disco – abre-se essa caixa musical/histórico e literaria, que aqui possui uma forte imagética, e que comunica uma das proposicão mais salutares do disco: “Rumos e Rumores”. Nesse tempo, em que vivemos a saída às ruas e ao nosso cotidiano de toda sorte de violência discriminatória e morte, por parte das forças mais fascistas de nosso país, é preciso repensarmos os rumos e os rumores, que presenciamos.
De acordo com o antropólogo Eduardo Viveiro de Castro, estamos diante da última ofensiva contra os nossos povos originários, e alguém é capaz de desmentir isso dado os últimos acontecimentos no nosso país, mas também na Bolívia? E é sobre esse e outros temas que começamos a excelente audição de A Invenção é a Mãe das Necessidades, assim como no produto audio visual aqui acima indicado.
Tendo como método a antropofagia oswaldiana enquanto imaginação teórica onde se apropria da alteridade, Vitor Pirralho se apropria do outro sem exclusão, o outro aqui, é a cultura indígena e negra (hip hop) e ao mesmo tempo refletindo as assimetrias dadas nas relações de poder. O disco contém um trabalho que poderia ser plenamente definido como um rap de pegada pop, mas o pop aqui é apenas abreviação de popular.
Não utiliza-se nesse trabalho fórmulas fáceis, ao contrário, o que podemos observar ao longo do trabalho, é a formulação de um pensamento sofisticado presente em sua lírica antropofágica, que joga com variações de flow constante. Mas é o simples quem conduz o trabalho – não o simplório – de uma postura ética condizente com a cultura hip hop e ao mesmo tempo com uma musicalidade onde toda essa comunicação se faz muito à diversão e ao entretenimento.
Ao longo de 13 faixas, o disco conta com as participações de Pedro Luis, Ellen Oléria, Luiz de Assis, Zeca Baleiro, Tonho Crocco e Bobby CH. Sempre explorando novas sonoridades, passeando como um corsário por mares diversos, e nessa trajetória musical abordando críticas que metem o dedo na ferida com muito bom humor. Do colonialismo ainda presente – pois estrutural – em nosso país, passeando pelo sumo de nossa cultura nacional, através do futebol, e outros aspectos menos virtuosos de nossa formação, a antropofagia sempre conduz o ritmo do disco.
Sempre num jogo onde as sonoridades, as ideias e os flows, são essa práxis diante da alteridade, seja no reggae, dancehall, afrobeat, funk carioca, ou no eletro, a absorção desses fluxos é conduzida através do diálogo. De um ruminar cuidadoso, onde trabalhe-se a linguagem e onde a língua lambe metricas diferenciais.
Nada disso é novidade, é o novo que é próprio da cultura hip hop onde Vitor Piralho se insere, utilizando o método oswaldiano que o rap já tinha encontrado por seus próprios meios. Aliás, toda a cultura diaspórica pode também ser vista dentro dessa constante luta para digerir os inimigos, só assim sobrevivemos. O que Vitor Pirralho faz e o faz com bastante singularidade e humildade, é trazer outros brilhos para essa cultura com o seu background e o seu talento, com bom humor e combatividade, de modo orgânico e honesto.
Conheçam o trabalho desse artista e abram os seus horizontes musicais.