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Victor Xamã, um single duplo como cinema da crueldade no rap nacional!

Victor Xamã abriu a caixa de ferramentas com um single duplo e um audiovisual impactante rumo ao seu novo disco!

“A função do crítico não é trazer numa bandeja de prata uma verdade que não existe, mas prolongar o máximo possível, na inteligência e na sensibilidade dos que lêem, o impacto da obra de arte” André Bazin

De acordo com François Truffaut, no prefácio à coletânea de artigos do seu mentor André Bazin que ele selecionou e que no Brasil foi publicado com o título de Cinema da Crueldade, ali estariam autores que seguiram influenciando o cinema mundial e que por trás dos filmes estariam moralistas. 

Utilizando essa referência, seríamos obrigados a concordar que Victor Xamã em seu novo trabalho em música e no audiovisual além de seguir propondo caminhos singulares e inventivos para o rap nacional, é também portador de uma qualidade poética que apresenta junto uma visão política, e um conjunto de valores morais importantes.

Após os álbuns Janela (2015) e V.E.C.G. (2017), o MC e beatmaker manaura soltou os EP’s Cobra Coral (2020) e Calor (2021). Uma obra até aqui impecável sempre entregando visões e músicas fora da curva, ao mesmo tempo que segue colaborando com outros artistas do underground ou do midstream; Este ano, importante ressaltar, Victor Xamã produziu junto a seu selo 2088 Label a coletânea APART I (2022) com diversos artistas do rap feito na região norte.

Agora, estamos em plena temporada do seu novo disco que recebeu como apresentação o single duplo Garcia (intro) & Oito Correntes, com rimas e produções de sua própria lavra. Junto, um audiovisual como poucas vezes vimos ao longo deste ano, digno de uma superprodução e cheio de referências extra musicais e cinematográficas, porém que funcionam muito bem no resultado final. 

Com a direção e produção executiva de Mateus Cony, Eduardo Matta na direção de fotografia e pós produção e a Dara Meana no argumento e assistência de fotografia, essa é a equipe de artistas que plasmou Garcia (Intro), primeira parte do single duplo lançado por Victor Xamã como um aperitivo, porém com toda cara de refeição completa. O manaura que parece ter a força de “Atlas” e aos poucos vem arrastando Manaus para o radar ignorante e xenofóbico do eixo, apresenta um trampo que em um single duplo apresenta substância suficiente para ser dischavado por tempos. 

Um dos aspectos presentes nas diversas camadas líricas que Victor Xamã nos oferta sempre, é o aspecto melancólico de um artista consciente do sofrimento de ter que estar longe de sua cidade para ter visibilidade. E nos parece que através deste olhar além de produzir um teor que permeia constantemente as suas faixas, consegue através do distanciamento desta visão nos fazer perceber outras nuances. Desde quem desacreditou de seu potencial até as futuras – atuais? – maledicências, é sobre o artista enquanto retirante, longe daquilo que lhe é mais caro: a terra natal. 

O trabalho de guitarras do Thiago Ticana é um espetáculo à parte em “Garcia (intro)” que pelo próprio caráter introdutório possui um beat – do VXamã – que cadencia suavemente sendo floreado e pontuado melodicamente muito bem pela guitarra. A melancolia acima mencionada, encontra com outras cores nas cordas de Ticana!

Nesta primeira parte do single, Victor é captado no alto da cidade do Rio de Janeiro, cantando para quem tem ouvidos no eixo ouvir: “Não quero ser um retirante pintado por Portinari”, se colocando em xeque entre o desejo do que está distante e da força despendida para viver sua arte, para alcançar a fama. Isso se resolve ao final do primeiro ato, com a participação luxuosa da sua mãe Helena Garcia em corpo e voz, atuando e já nos dando uma palhinha da capa do disco e no áudio reproduzido, onde fortalece o filho com palavras de perseverança! 

Além de ser uma revelação real desde o seu disco de estreia Janela (2015) é muito bacana perceber como o seu trabalho encontra continuidades mesmo sem se repetir, o tal do conceito tão alarmado e vendido no mercado, nos discos, EP’s e audiovisuais de Victor Xamã realmente existe, é forte e encontra ecos para trás e pra frente na sua obra. Além do diálogo com o áudio de dona Helena, a segunda parte do clipe já abre com uma referência direta do excelente trabalho visual do EP Calor (2021), com Victor botando “fogo na cidade só por diversão, mami”.

As duas músicas são uma continuidade, se se quiser até mesmo um storytelling abstrato sobre sua caminhada nestes últimos 7 anos na música desde a sua estreia mais conhecida, e mesmo de outras camadas de sua vida. Um retrato comovente e uma sinceridade que possui razão de ser no que almeja. Como qualquer outro artista, Victor Xamã pretende viver de sua arte e conquistar as condições para se manter produzindo em alto nível. É isso que o MC declara aqui, em alto e bom som, começando por narrar sua vinda pro eixo e o desafio de vencer por lá. 

O segundo ato deste single duplo, na conjunção de imagem e som apresenta tantas possibilidades de interpretação semióticas que certamente mereceria um texto à parte. As referências aos pintores David Hockney, ao ilustrador e pintor Gustave Doré, Alexandre Cabanel, estão prenhes de possibilidades, porém fiquemos apenas com os dois últimos e o apelo à mitologia cristã que eles expressam. 

Não é difícil perceber o subtexto presente entre “Cobras estão no meu jardim rastejando até mim” e às ilustrações de Gustave Doré – não por acaso o ilustrador mais bem sucedido da França do século XIX – presentes nos livros A Divina Comédia e O Paraíso Perdido de Dante Alighieri e Milton, respectivamente. Victor se coloca aqui no lugar do anjo decaído, como alguém que aos poucos vem saindo do underground em termos de número e visibilidade, de reconhecimento e de negócios fechados e que não está disposto a manter qualquer aura de pureza para ser reconhecido como under. 

Nas duas tracks, Victor canta sobre estar “vencendo”, estar ganhando em popularidade: “agora todos sabem o meu nome”, e na cena/reprodução onde o MC serenamente observa uma cobra, podemos lê-la como uma espécie de aviso de que ele está atento aos perigos de vender a alma para o mercado. Talvez até uma declaração de que se mantém íntegro no jogo e o que vem conquistando é fruto de trabalho, não de investidores e ou de números comprados.

Por outro lado, ele brinca com a simbologia das correntes na cultura hip-hop: ”Um pescoço e oito corrente Deus, o que deu em mim?” para logo depois afirmar: “Melhor assim”. Ou ainda  deixando claro que o foco é a música: “Tenho objetivos primos, por isso me afastei de ti! Aos ignorantes, arrogante me tornei, sim. Sanguessuga não me acompanha, melhor assim!” Ao longo desta segunda parte do single duplo, o MC brinca no final das contas com o mito de adão e eva da expulsão do paraíso perdido por terem adquirido a capacidade de distinguir o bem e o mal, depois de experimentarem da árvore do conhecimento, e com a ideia do anjos decaídos, por cobiçarem maior poder, entre eles o mais famoso: Lúcifer! 

Pelas correlações imagéticas e musicais presentes neste “curta metragem”, as recriações e as cenas simbólicas originais, ficaram muito bonitas. São simbolismos que agregam ao trabalho, não que querem nos passar um ar de inteligência superior e ou de donos de um capital simbólico que muitas vezes são mero clichê. É importante não esquecer das vozes do coro, em Oito Correntes: MANDNAH e Gabi Farias, são as responsáveis!

Além desses aspectos mais gerais de sua história e das reflexões estéticas que apresenta, VXamã também abre o coração para homenagear a sua mãe, que ilustrará a capa de seu próximo disco, o artista nos fala de dificuldades pessoais e da perda do seu pai. Vale fazer um destaque para a equipe formada por Dan Stump na direção e na direção de arte junto com Luny Tota, e com Demi Brasil na direção de fotografia, que foram responsaveis pelo insert de transição com as imagens de Helena Garcia.

Este single duplo é uma abertura muito pesada em diversos níveis, fiquemos atentos ao disco! 

-Victor Xamã, um single duplo e um possível cinema da crueldade no rap nacional!

Por Danilo Cruz 

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