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Viajando para Cuba nos pistos do trompete de Arturo Sandoval

A música afrocubana é um dos pilares do groove mundial. Diluída na forma do rótulo “Latin-Jazz”, que mercadologicamente engloba desde o Carlos Santana até o Airto Moreira – (que loucura) – as raízes desse swing único reverberam o resultado do encontro entre os ritmos tradicionais de Cuba com as harmonias e a improvisação do Jazz.

Para entender essa história é necessário compreender um contexto muito mais amplo do que um rótulo criado apenas para vender discos e destacar (de forma bastante rasa) toda a profundida de um movimento que chegou aos quatro cantos do mundo, com ecos em Cuba, Porto Rico e Nova York. No entanto, essa alquimia começou bem antes da indústria se apropriar do rótulo e até mesmo antes da década de 1940, quando o trompetista Dizzy Gillespie e o percussionista Chano Pozo se encontraram e começaram a cozinhar novos grooves.

O trabalho escravo no Caribe começou em meados do século XVI, muito antes da música começar a ser devidamente gravada. Os africanos levaram um molho diferente para o Caribe. Os escravos trouxeram uma nova filosofia musical à partir das polirritmias que embalavam os cantos celestiais de sua terra natal. 

Foi ai que começou a nascer essa nova forma de pensar e fazer sons. Os ritmos baseados em clave trouxeram uma tônica inédita para Havana, abrindo um hall de possibilidades bastante interessante artisticamente e que amplificou as possibilidades da música local, influenciando o mundo todo.

A clave tradicional é um padrão rítmico sincopado de dois compassos que se originou na África e mergulhou na cultura afro-caribenha. Junto com a filosofia da música norte americana, surgiu um novo modus operandi que consagrou instrumentistas como Paquito D’Rivera (clarinete/saxofone), Chucho Valdés (piano) e Arturo Sandoval (trompete), por exemplo.

Grandes baluartes do groove made in cuba, esses são apenas alguns nomes fundamentais para se compreender essa história. O trompetista Arturo Sandoval, inclusive, é figura carimbada no Brasil desde meados da década de 1980. Ele é um dos grandes músicos que figuram no line up do Festival BB seguros de Jazz e Blues (junto com Alabama Mike, Bixiga 70 e Renato Borghetti) que acontecerá no Parque Villa-Lobos no dia 13 de abril de 2024, com entrada gratuita e ao ar livre.

Em 1967, Chucho, Paquito e Arturo estavam entre os nomes envolvidos na formação da Orquestra Cubana de Música Moderna. Cerca de 6 anos depois, o trio e diversos outros brilhantes músicos formaram o Irakere, grupo que até os tempos atuais é considerado uma das maiores bandas da história do país.

Uma banda que soava como uma verdadeira orquestra, o Irakere conseguiu criar uma verdade síncope sonora e fez a cabeça do Stan Getz e do Dizzy Gillespiu de tal forma que eles precisaram ir pra Cuba pra entender o que estava acontecendo. A música vigorosa e vibrante do grupo foi responsável por quebrar barreiras por meio de uma música moderna, que não tinha medo de experimentar e que flertava até mesmo com a música erudita.

Em função da influência de Getz e Gillespie – e claro, da óbvia qualidade musical do grupo – o Irakere furou a bolha de Cuba e chegou até mesmo a gravar nos Estados Unidos (no final da década de 1970) via Columbia Records, selo consagrado que lançou nomes como Bob Dylan, por exemplo.

Em 2024 o grupo está celebrando 50 anos de história e o Oganpazan teve a rara oportunidade de entrevistar o mestre Arturo Sandoval para entender um pouco mais sobre todos os desdobramentos desse movimento riquíssimo para o caminhar do groove interplanetário. 

1 – Arturo, você pode falar sobre seus primeiros passos na música? Eu sei que você estudou percussão em Havana nos anos 60. Você também teve aulas de trompete clássico. em 1964, você passou a estudar na Escola Nacional de Artes de Cuba. Pode comentar sobre esse período?

Comecei a tocar em minha aldeia, minha aldeia natal, que é uma cidade pequena. Eu tinha 11 anos quando comecei a aprender e estudar música. Me deram vários instrumentos para experimentar até eu começar a olhar para o trompete e pensar: É isso que eu quero tocar. Foi por volta de 1961 que comecei com o trompete.

2 – Você ajudou a fundar a Orquestra Cubana de Música Moderna que mais tarde se tornou Irakere. Você pode falar sobre o desenvolvimento do grupo até atingir seu auge, principalmente no final dos anos 70?

A Orquestra de Música Moderna começou em 1967. Fiquei naquela orquestra até 1971 quando me mandaram para o serviço militar obrigatório por três anos. Depois disso, quando saí do serviço militar, deixamos aquela orquestra e montamos o Iraquere em 1974.

3 – Você pode falar sobre a forma como o Bebop influenciou sua forma de tocar, já que era um sabor diferente do que você já havia experimentado na música popular cubana?

Oh sim, esse foi um grande momento na minha vida e carreira. Até hoje o Bebop provavelmente é meu estilo de música favorito. E tive muita sorte porque conheci, em 1977, conheci meu herói, Dizzy Gillespie, que é um dos principais criadores desse estilo de música. Tive sorte, pois comecei a tocar com ele em 1978 e continuei até ele falecer, já em 1993. Aprendi muito com ele e aprecio muito o Bebop porque é uma forma de expressão musical bastante complexa. É muito difícil, mas realmente dá a você a possibilidade de expressar todas as suas ideias sem limitação.

4 – Arturo, você tocou com os melhores músicos cubanos, como Paquito, Chucho, Carlos Emilio, só para citar alguns. Você pode falar sobre como foi estar entre eles e ser responsável por levar a música cubana para novos territórios? 

Quando cheguei em Havana pela primeira vez, Paquito, Chucho e Carlos Emilio, bom, todo esses nomes que você citou já eram referência locais e músicos muito talentosos e já bastante experientes.

Eles tocavam há anos, pois eram filhos de músicos. O meu pai, por exemplo, era mecânico de automóveis e eu estava muito atrás deles em termos de conhecimento de música e tudo mais. Claro que aprendi muito com eles ao longo dos anos e agora que voltamos a tocar juntos – em função da celebração dos 50 anos do Irakere – tem sido um prazer não só nos reunir, mas reviver essa história toda, tocando juntos e apenas celebrar o que foi construído.

5- Arturo, quando você fala sobre a fusão da música afro-cubana com o jazz e como isso ajudou a moldar muito do que aconteceu no chamado “Latin Jazz” – influenciando também até a dance music ao longo dos anos 80 – o que você pode falar sobre a importância da timba e de outros ritmos naquela época?

Nós músicos precisamos abraçar todo tipo de movimento, todo tipo de música e ritmo que foi inventado, até por que não podemos nos limitar frente ao que está acontecendo, ignorando as inovações que estão surgindo. Precisamos aprender o máximo que pudermos e é isso que eu tenho feito na minha vida, sempre tentando ouvir de tudo para incorporar coisas novas na minha forma de me comunicar com o público e com meus companheiros de palco.

6 – Arturo, você pode falar sobre seu relacionamento com o Dizzy? Como foi tocar com seu herói e depois mentor? Li que ele até ajudou você a sair de Cuba nos anos 90.

Sempre considerei isso como um presente de Deus, sabe? Poder conhecer meu herói e o cara que se tornou meu mentor e me ajudou por tanto anos… Ele foi tão bom comigo! Só pela oportunidade de observar de perto todo o amor e respeito que ele tinha pela música já foi uma grande inspiração. E ele ainda é uma grande inspiração para mim.

Ele realmente amava música profundamente (6:30) e essa convivência que tivemos significa muito pra mim. Apenas observar ele e ver como ele se comportava, entende? Isso por si só já era muito especial. Dizzy estava sempre pensando em música, sempre, o tempo todo. Ele sempre comentava sobre como estava querendo e tentando incorporar coisas novas em seu estilo e a paixão dele pela música era tão grande que ainda me emociona e me influencia até hoje.

7 – Você pode falar sobre algumas das gravações que fez com ele?

Fiz algumas gravações com ele ao longo dos anos. Fizemos a primeiro em Cuba e a segundo quando eu estava com minha banda tocando na Finlândia com o álbum “To a Finland Station”, que foi lançado em 1983.

Depois fizemos uma gravação em vídeo – na verdade diversas delas – pela Europa com a Orquestra das Nações Unidas. É um registro em vídeo que realmente se tornou muito popular por muitos e muitos anos. É um grande privilégio para mim e uma honra poder dizer que toquei com ele tantas vezes.

8 – Existe um filme de 1987, chamado “A Night In Havana: Dizzy Gillespie in Cuba”, e tem também outro lançado em 1990 (“Dizzy Gillespie and The United Nations Orchestra: Live At The Royal Festival”), que foi gravado um ano antes e saiu tanto em CD, quanto em DVD. Você pode falar sobre essas gravações? Acho que são documentos lindos e que contêm muita história.

É um verdadeiro registro da história, é algo que guardo muito perto do meu coração porque poder tocar com o seu próprio herói, é uma oportunidade que não se surge todos os dias. E quando isso acontecer, você deve estar preparado e claro, apreciar cada minuto. 


9 – Arturo, você pode falar sobre a importância dessa família Escovedo para a música cubana, considerando não só onde eles começaram, mas também para onde eles ajudaram a levar a música? 

Oh sim. Eles são ótimos músicos, cara. Todos eles têm tocado música latina, mas com um toque de jazz também e, claro, são bastante respeitados na indústria. Já toquei com todos e é sempre uma grande experiência.

10 – Você pode falar sobre o seu primeiro contato com a improvisação? Quando você pensou: é isso que eu quero fazer da minha vida?

No começo comecei a tocar música tradicional cubana na minha aldeia. Depois fui para a escola para fazer um treinamento clássico por dois anos e meio e até aquele momento nunca tinha ouvido falar sobre jazz ou qualquer tipo de improvisação. Mais tarde, no final dos anos 60, quando um jornalista veio até mim e me perguntou se eu sabia o que era Jazz e eu disse que não, ele me apresentou um álbum de Dizzy Gillespie e Charlie Parker.

Era uma compilação de gravações do final dos anos 40 e aquela música definitivamente virou minha cabeça de cabeça para baixo. Foi como se tivessem virado meu cérebro do avesso, sabe? Pense: meu deus, preciso aprender isso e  ainda estou no processo para aprender e entender o que Dizzy Gillespie e Charlie Parker estavam fazendo.

11 – O que você ouve hoje em dia? Que tipo de música lhe interessa?

Sou um grande fã de todos os tipos de música, mas tenho alguns compositores dos quais sou grande fã, como  Chopin… Rachmaninoff. Escuto os concertos para piano de Sergei Rachmaninoff quase todos os dias da minha vida e adoro música brasileira também. 

O que você gosta, pensando em música brasileira? Gosto muito das melodias e mudanças de acordes. Claro que também aprecio bastante o ritmo, sou um grande fã de Bossa Nova e Samba, claro e sabe quem me fez prestar atenção nisso? O Dizzy Gillespie falava sobre isso muitas vezes. Ele dizia: Arturo, você percebe quanta música boa saiu do Brasil? Ele também era um grande fã de música brasileira.

12 – Arturo, tenho uma dúvida: quando conheci sua música, conheci por causa do Irakere. Encontrei algumas gravações ao vivo no YouTube com alguns shows que você fez fora de Cuba, junto com o grupo. Como era o processo para tocar fora de Cuba? Você precisava da aprovação do governo para sair do país e fazer aqueles shows, certo?

Não, na verdade o governo nos usou como trunfo para tentar exaltar Cuba no cenário internacional. Eles nos mandaram para vários lugares e negociavam os contratos. Nós ficávamos apenas com uma quantia mínima, que dava apenas para comer. O governo pegava a maior parte dos cachês e nos usou, essa é que é a verdade.

13 – Quando comecei a ouvir Latin Jazz música cubana, ficou muito claro para mim que muito do que estava acontecendo era na verdade música cubana .

Na verdade, eu nunca fui fã do chamado “Latin Jazz”, pois Dizzy, Mario Bauza e Chano Pozo, enfim, foram eles que criaram essa música – na década de 1940 – e chamaram isso de jazz afro-cubano. Esse era o verdadeiro nome do estilo. Nunca concordei com esses novos rótulos e não concordo com nada relacionado a isso. Para mim, ainda é tudo jazz afro-cubano. Nada mais é do que o ritmo cubano com bebop. É isso. Essa é a combinação e quando você junta essas duas coisas, bem, é uma bomba!

É algo que todo mundo aprecia e eu adoro. 

14 – Em 2000, (10:46) você foi tema de um filme chamado “Love or Country: The Arturo Sandoval Story” Pode falar sobre o processo de elaboração desse projeto?

Essa foi uma ideia da HBO e estou muito grato por eles terem decidido compartilhar parte da minha vida no filme porque todo mundo tem sua própria história para contar. Andy Garcia fez um trabalho maravilhoso e toda a equipe que trabalhou no projeto também. O registro foi feito estará lá para sempre e minha próxima geração de tataranetos será capaz de descobrir como nós chegamos aos Estados Unidos e como lutamos para escapar de Cuba.

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