Versu2 na Trama dos Tambores (2020) uma história urdida na intersecção das batidas numa Bahia pouco conhecida, mas radicalmente resistente!!
Utilizo esses exemplos pessoais, que atravessam dois aspectos da minha vida, porque de algum modo esse micro-cosmos está plenamente contemplado no primeiro disco do grupo de rap baiano Versu2. Nosso povo segue sendo exterminado na Roma Negra, e a revolução que Neguinho do Samba operou foi aos poucos sendo absorvida pela branquitude de Salvador que a transformou numa indústria lucrativa, colocando de canto os blocos Afro de Salvador.
Bandas inspiradas no Olodum pipocaram por toda cidade na virada dos anos 80 para os 90, e foram responsáveis entre outras coisas pela socialização e profissionalização de muitos e muitas, dando-lhes uma saída contra o sistema genocida negro que opera no Brasil. Ainda hoje, esse movimento existe e pode ser percebido no fim de tarde em vários lugares da cidade, da Boa Vista de Brotas até o Largo do Retiro.
Como uma das expressões da arte na Diáspora, o Samba Reggae é filho da Bahia e de sua história, assim como essa mesma herança está presente em diversos atores do hip hop soteropolitano, DaGanja é um dos exemplos de maior sucesso. E não é difícil entender que estamos aqui em territórios similares, onde as batidas e o grave conduzem mensagens de libertação, de amor, de resgate ancestral e histórico, de combate às injustiças sociais, enfim de negros cantando em cima de batidas. Mais um ponto fundamental para percebermos nesse agenciamento político e estético promovido aqui.
Esse ano começa com essa “coincidência”, pois o Oganpazan completa 5 anos de caminhada e de algum modo foi o contato com a Versu2 que nos abriu as portas do rap baiano, lá no começo de tudo. Por oportunidade do lançamento do documentário sobre a história do grupo Início Meio Início (2015), dirigido por Fabiano Passos, conhecemos outras peças importantes da cena local e de lá pra cá, muita água passou por debaixo da ponte.
Com o grupo em stand by, acompanhamos os trabalhos solo de Mobbiu, mais notadamente sua mixtape Por Enquanto é Isso (2016), uma parceria com o DJ Indio. Da mesma sorte, estivemos na sintonia das caminhadas de Coscarque, seja em seus trabalhos solo como em sua passagem pela banda Zuhri.
Ao longo de sua caminhada a notoriedade do grupo baiano se consolidou, pois são muitos anos de trabalho e atuação na cultura hip hop, mesmo que “ser notório” hoje em dia principalmente, não renda a atenção necessária. Hoje a Versu2 – que já teve várias formações – se reúne em torno dos mcs Mobbiu, Coscarque e do DJ e produtor Munhoz, e o trio chegou afiado e bastante relevante.
A Trama dos Tambores (2020) produz um diálogo com a recente herança musical do samba reggae e a atual força do rap, em uma chave de boombap “classe A”, fazendo confluir um futuro mezzo tradicional, mezzo afrofuturista. Inspirados no já clássico livro da antropóloga baiana Goli Guerreiro: A Trama dos Tambores Ed. 34, a Versu2 inicia o ano do rap nacional com seu primeiro disco cheio.
Lançado no dia 1º de janeiro, o grupo paradigmático do hip hop nordestino e baiano, consequentemente nacional, já contava com o clássico Apresento Meus Amigos (2011), apresentações fora do estado e uma sólida trajetória trilhada a base de muita persistência e fome de luta. Nos últimos meses eles soltaram alguns singles, e entre eles alguns presentes no disco.
É o karma de quem sempre busca estar na vanguarda: manter a tradição ao mesmo tempo em que joga pra frente com a re-invenção. Aqui os caras demonstram isso inclusive na seleção bem postada de convidados. Na zaga: Nego Gallo, Jorge Dubman e Cadinho. Fazendo a transição do meio defensivo para a criação: Sant, a própria Versu2 na meiuca, e um ataque potente com Jaya Luuck, Nessa, Raoni (ATTOOXXA), Ananda Savitri e Joven Senpa (Underismo), como novos nomes da cena musical, aos quais nós aprendemos a chamar de pontas de lança.
O trio baiano que já tinha inovado utilizando sample da Axé Music em uma de suas músicas, agora aprofundam a pesquisa e vão na fonte, fortalecendo-se como uma das raízes mais importantes de música e poesia de rua no estado. Com esse processo, arrastam um bonde de participações que ao longo das faixas emprestam seus diferentes brilhos, cujo trabalho só engrandece as 10 faixas que compõem o disco. Artistas distintos que vão do espectro do afrobeat, pagodão, pop music, trap, mas que aqui servem/emprestam suas vozes e instrumentos para um trama dos tambores, muito bem urdida e definida.
A Versu2, que na pessoa de Mobbiu esteve presente na Posse Orí, caminhou com uma lendária banda local, Testemunhaz, fundou seu atual grupo, encabeçou incubadora criativa, produziu shows e mais uma porrada de coisas dentro da cena, a trama dos tambores é expressão de uma caminhada que transpira o clamor pela “Liberdade”. Não aquela inconsequente do fazer o que se quer, mas aquela outra consequente do amar aquilo que se tem que fazer, potência para exercer sua própria dignidade.
Coscarque por sua vez que também vem seguindo uma longa estrada no hip-hop e esteve presente em boa parte dos acontecimentos acima narrados, afina sua “Insônia” para transformar nossas atribulações em virtudes. Atualmente além da Versu2, o MC toca o famoso Terceiro Round, por si só um espaço de formação de uma base do hip hop local. Munhoz por sua vez parece-nos aqui o one man band, no sentido de produzir uma série de batidas que funciona assim como um conjunto de caixas, marcações e repiques, só que tudo hi-tech. O trabalho de produção nesse disco é inovador, envolvente, groovado, e bate certo nas caixas. É certamente uma excelente abertura de ano com A Trama dos Tambores (2019), e se você gosta de rap do bom te aviso: “Eu sou Versu2, quem tu és”!