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“Vaso Ruim” de Bonsai, Vector, Gust e Ciano é o disco que o Rap Nacional precisava! – Artigo

Vaso ruim

Produzido pela dupla Ciano e Gust, “Vaso Ruim” dos MC’s Bonsai e Vector é um disco que coloca a percepção do rap nacional em pauta!

““Autor” é uma função que remete à obra de arte (e, em outras condições, ao crime).”

Discos como “Vaso Ruim” contribuem muito para nossa percepção de algo que está faltando em um certo momento de um cenário artístico e cultural. Bonsai e Vector trazem uma lírica nova, uma estética que mescla o melhor de duas escolas do rap nacional atualizando uma perspectiva que nós precisávamos mas não lembravamos. As produções de Ciano e Gust atualizam com excelente qualidade a sólida base e tradição do boombap/drumless, gerando uma identidade musical própria ao trabalho. 

A estupidez de acreditar que é preciso ofertar o que o público quer é risível e uma demonstração de que não se sabe bem o que é arte. Não existe arte comercial, o público não sabe o que quer, pois se soubesse faria arte. É neste sentido que o quarteto formado por Bonsai, Vector Coletivo Delta, Ciano e Gust são capazes de nos lembrar o que estava nos faltando, o que desejávamos ouvir mas não sabíamos bem o que era. 

O bom mocismo espiritualista, o clima de prosperidade neoliberal que tomou conta do rap mainstrean, a alta rotação de lançamentos em linha de montagem fordista, o aumento de um público que adentrou o rap via classe média branca e uma negritude rendida a discursos meritocráticos, não acha nada aqui em Vaso Ruim. Bonsai e Vector formaram uma dupla para nos mostrar que o que desejávamos era uma mescla de Kamau com o Consciência Humana, para ficar em duas referências paulistas de uma estética underground e gangsta nacional!

E é exatamente nesse ponto que Bonsai, Vector, Ciano e Gust cozinharam um disco onde a cultura Hip-Hop retorna à margem para gerar um objeto estético que coloca em xeque as formas, o conteúdo e o próprio sentido do Rap hegemonicamente produzido hoje. Os valores marginais não incorporados pela cultura dominante que se compraz em diluir o Rap Nacional, para que este se transforme em um produto mais ao agrado dos consumidores é aquilo que Vaso Ruim questiona e quebra. 

Erigir um trabalho deste tipo exige posicionamentos corajosos, e as duas primeiras músicas após a introdução “Os Dois Lados da Mesma Moeda” determinam sobre o que estamos falando aqui. Já se posicionando de saída com esta intro que aborda a questão de como a cultura dominante muitas vezes incorpora valores marginais, para lhes gourmetizar. As faixas “Fita Dada” e “Reiki” expõem os dois lados da moeda que constituem o trabalho e ao mesmo tempo o cerne da crítica presente em Vaso Ruim. 

Enquanto na primeira música “Fita Dada”, através de um storytelling sobre um assalto, os caras trazem o óbvio – não visto e ou cinicamente não dito – de que para quem vive nas periferias, é dois palitos para se tornar saudade. Em “Reiki”, os caras tiram um braba com os “rappers espiritualizados” que vendem uma aura de pureza e retidão, mas que como todos os outros humanos, demasiado humanos, possuem falhas, erros e entre a imagem comercializada e a vida erigir um abismo. 

Nos parece, que é exatamente nessa tríade inicial que Vaso Ruim conecta às escolas do gansgta e do boombap under nacional. Produzindo um disco que reúne o melhor dos dois mundos, recortando aqui um momento, uma intenção que chama a atenção do ouvinte, para os aspectos mais marginais da cultura Hip-Hop que foram ao sabor do “espírito do tempo” devidamente “gourmetizados” para que o Rap nacional seja um produto consumível pela classe média branca frequantadora de festivais.

“Eles querem um preto com arma para cima, num clipe de favela cantando cocaína”  

Quem acompanha o rap nacional nos últimos 10 anos, dificilmente não irá associar  a linha que os caras soltaram para Baco Exu Do Blues, na faixa “Balaclava e Simulacro”: “Isso não é ficção igual as músicas do Baco”, à música “Bluesman”. O disco que alçou o MC baiano ao imenso e inegável sucesso, trazia na sua primeira faixa a música título, uma ode estranha a tudo que foi aceito pela cultura supremacista branca ser automaticamente visto como bom. Porém, sem o mínimo de senso crítico sobre quais, historicamente foram os preços pagos para essa aceitação.  

O blues, o jazz, o rock e obviamente o rap, foram “aceitos” a quais preços? A verdadeira dizimação de artistas negros por todos os meios necessários, na maior indústria musical do mundo no que tange o Blues, o Jazz e o Rock, é hoje um fato aconcarado por centenas de estudos que mostram que o processo de apropriação cultural simplesmente apagou os grandes criadores desses gêneros musicais. 

A grande ficção denunciada no beef acima mencionado, é exatamente o fato de que quem comanda a indústria musical brasileira não quer pretos com armas para cima, cantando cocaína nas favelas. Não que isso seja algo desejável em si mesmo, mas é sempre importante lembrar, que esses eles matam, diuturnamente, na guerra racial de alta intensidade que vivemos no Brasil (Aganju Uh Anti Influencer). 

A que preço o Ocidente aceitou Jesus e Obama como primeiro presidente negro dos EUA? No primeiro caso, através de um embranquecimento e do completo apagamento da religião cristã em países africanos. No segundo e mais recente caso da chegada ao poder de um homem negro, na incapacidade de sanar problemas herdados como as guerras do Iraque e do Afeganistão, servindo para um marco histórico de um homem negro impotente diante da máquina capitalista e supremacista branca dos EUA. 

Questões óbvias demais ao ponto de nos fazer pensar que a música em questão é na verdade um xiste da busca por aceitação e consequentemente representação a qualquer preço. E neste sentido, Vaso Ruim opta por não suavizar o discurso, não retirar as arestas da vivência negra em periferias do Brasil que sim, infelizmente estão ampla e intrinsecamente relacionadas com o crime e com a violência genocida do estado brasileiro. 

-Leia nossa resenha do disco Bluesman do Baco Exu do Blues 

“Dentro daquele apartamento lá o cara fica alienado, sai na rua e vê um moleque de 10 anos, sem camisa e toma o bagulho dele, é inadmissível um moleque de 10 anos tomar meu bagulho, playboy da mole pra caralho né mano?” 

Bonsai & Vector Coletivo Delta

São 16 faixas que compõem o “Vaso Ruim”, o disco foi lançado pelo selo fundamental para o under nacional hoje: “samosamosamo”! Importante dizer que não estamos diante de um grupo, mas de 4 artistas que se uniram em torno de um projeto de criação, Bonsai e Vector Coletivo Delta são dois MC’s com alguma quilometragem no under, Ciano e Gust dois produtores que também já possuem uma caminhada interessante. Já acompanhava esses artistas ali no soundcloud por ligações com outros que eu já tinha resenhado. 

Os quatro são um exemplo em bloco com o “Vaso Ruim” do quanto o nosso underground está com os pulmões inventivos bombeando oxigênio para o nosso rap. E de que forma projetos coletivos possuem uma força grande quando artistas se unem produzindo batidas de um coração insubmisso. Bombeando para o corpo da produção do Hip-Hop o que de fato é relevante e questiona criticamente e com potência contracultural o que está posto, dado, rendido. 

Nesse “Frankenstein” estético, musical e poético que chamamos under nacional, recortando o boombap/drumless feito nos últimos 4 anos em nosso país, o que possuímos é uma riqueza de perspectivas que não encontram unidade, a não ser na própria cultura Hip-Hop. O interesse da indústria é o de inviabilizar e invisibilizar outras narrativas, outras formas de pensar e ser hip-hop como uma forma de ser, fixando uma standardização do que significa ser negro no Brasil, de quais ideias e de que visão de mundo podem e devem circular. 

A produção de Ciano e Gust é certeira demais ao utilizar os drumless com parcimônia, focando nos boombapão pesados, sujos e de climas tensos. Evitando dessa forma se confundir com outras produções do “under” que tem utilizado mais os loops e drumless. Da mesma sorte, a utilização de samples é muito criteriosa diante da escolha lírica dos MC’s, não há utilização de citações facilmente identificadas de trechos de clássicos da música nacional ou internacional. Utilizando recortes instrumentais para a construção tantos dos “beats” quanto dos “drumless” os caras criam uma ambientação sonora que deixam o ouvinte atento aos MC”s ao mesmo tempo que se esmeram em uma construção musical quase minimalista. 

A inserção da fala presente que colocamos acima, e que está no final da música “Chave Micha”, nos dá os outros dois lados da moeda presente em “Vaso Ruim”. Há um diálogo interno que atravessa todo o disco, ao longo de suas 16 faixas, e que diz respeito a uma visão realista presente em nosso cotidiano, de violência e miséria, de escape e de luta. De desumanização e de descarte fácil de vidas negras, de outras possibilidades de uma subjetividade diversa e criativa de uma negritude que não se compraz com meras conquistas financeiras e ou inserções no sistema como mera linha auxiliar do sistema racista. 

Entre a omissão dos que estão inseridos na indústria e o cinismo político de editais, o rap e a cultura Hip-Hop ainda precisa acertar suas contas com visões coloniais do que seja ser preto no Brasil. Entre o assimilacionismo e uma visão independente e nacionalista preta que entende o que é a política em relação aos negros nesse país. Ao buscar um espírito combativo de influência no rap dos anos 90 e uma forma contemporânea do under para o corpo das rimas e das batidas, “Vaso Ruim” rompe com visões que naquela década foram entraves. 

A noção de que não se busca dinheiro com a arte, de que não se é artista quando se está no Hip-Hop, encontra em “Baby Beef” por exemplo, um comentário importante. Onde o famigerado discurso de prosperidade está plenamente vinculado com o caos da violência e da desigualdade presente em nossas quebradas. Afinal, dentro do sistema capitalista estamos todos buscando dignidade, porém São Paulo não é Mauá e Campinas não é capital, logo estamos diante de condições aqui geográficas bastante desiguais. 

É absolutamente pessimista como Schopenhauer, a noção de que o desejo será em algum momento saciado, muito pelo contrário, retornará sempre e sempre, e mais uma vez ao ser conquistado. Afinal, não existe topo para um povo feito de base, que conote visão de vitória coletiva, não existe apenas um tipo de rap passível de sucesso, e aqui o funil do capitalismo, do racismo, da LGBTQIA+fobia e do machismo não deixa as contas fecharem. É nesse sentido que talvez possamos ver uma substância infantil e sonhadora, utópica presente em Vaso Ruim, com o verniz muito bem aplicado de conhecimento e de uma vida adulta centrada, para conjugar o desejo criador e a busca pela transgressão, e porque não pela Revolução. 

“Se eu quisesse rap cês não prestava, cês imprestável nós, inatingível. Trazemos o incomparável, inconfundível, inimitável. No jogo do rap cês tão perdido, bunda na cadeira e na net é jurado. Críticas de quem não construiu nada. E o próprio ego é um dirigível. Trazendo autenticidade, versos indigestos, nós é Indigerível.” Vector Coletivo Delta

A criança de 10 anos que toma os bagulho dos playboys é o personagem conceitual que subjaz à lírica de “Vaso Ruim”. Aquela criança “capeta” que bagunça tudo na sala de aula porque tem saúde suficiente para entender que a merdas das aulas são opressoras, que a professora é racista, que a escola é a fábrica na qual ela não quer trabalhar. É a criança preta que é lisa às formas de cooptação do mundo, suas máquinas de endurecimento e letargia, aquela que bem pequeninha manda os mais velhos tomar no cu e se fuder. 

Cheia de contradições, com problemas de ordem estrutural em sua criação que lhe fazem repetir machismo, mas que incrivelmente sobreviveu e estudou de modo autodidata. Encontrou outras na mesma pegada e ou com pequenas diferenças mas com a mesma intenção pro veneno, e conseguiu plasmar uma obra de arte insubmissa, longe do que os adultos, os portadores do bom senso e do senso comum, vem construindo. Em Vaso Ruim, essa criança alcançou a juventude e nos disse o seguinte com relação a arte e a vida: 

“Eu tinha 20 anos. Não me venham dizer que é a mais bela idade da vida. Tudo ameaça um jovem de destruição: o amor, as idéias, o afastamento da família, o ingresso no meio dos adultos. Custa-lhe aprender o seu lugar no mundo” Paul Nizan

Com “Vaso Ruim” o quarteto Bonsai, Vector, Ciano e Gust deram o seu grito de insatisfação diante do estado de coisas, e transformaram esse grito coletivo em obra de arte. Escute! 

-“Vaso Ruim” de Bonsai, Vector, Gust e Ciano é o disco que o Rap Nacional precisava! – Artigo

Por Danilo Cruz 

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