Vandal lançou o single FÉH, neste último agosto, com produção de Hayllan e uma reflexão muito forte sobre a arte de viver DEHVERDADEH!
“Indústria do Rap nas mãos de Senhor de Engenho”
A participação de Vandal no disco em homenagem a Sabotage, na faixa “Aracnídeo” deu o que falar, mas certamente os problemas apresentados ali em um formato de carta aberta à cultura Hip-Hop permanecem. A cultura negra e periférica no Brasil passa sempre – pelo menos desde a Bossa Nova – pelo viés da gourmetização (embranquecimento) para se tornar consumível, e com o rap não foi diferente.
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O Samba, o Sertanejo, o Reggae, são manifestações musicais que tinham um imenso predominio negro desde sempre, mas a industria cultural supremacista branca no Brasil, fez sempre questão de embranquecer, gourmetizar os temas, para tórna-los produtos vendaveis. É sempre bom lembrar que a crítica musical no Brasil até alguns anos atrás não abordava o rap nacional como uma expressão musical importante, e não precisamos dizer qual a cor dos nossos críticos, né?
De diversas maneiras, ao longo dos anos Vandal se tornou o estraga festas, aquele que coloca gosto ruim nas coisas. Sua simples presença no cenário e as marcas que de modo pioneiro o artista soteropolitano imprimiu no rap nacional ao longo dos últimos 10 anos é um incômodo, um apêndice purulento do rap nacional. Que demonstra como o mainstream nacional só pode ser habitado por artistas domados, seja tematicamente, seja nas concessões e fechamentos apontados por Vandal em Aracnídeo.
Em um cenário marcado cada vez mais pela presença de “vencedores”, artistas que conseguiram enriquecer, reverberando mantras de sucesso e de riqueza, uma música como “FÉH” é mais um tiro, um corte nos pulsos de um cenário podre. A “fé” no trabalho, talvez seja uma das coisas mais maléficas que o capitalismo imprimiu em sua era neo liberal. Jogando trabalhadores de diversas áreas – inclusive – a artística dentro dessa linha ilusória, que quer esconder o que realmente está por trás de qualquer nível de ascensão financeira, social e ou artística.
A meritocracia que é vomitada por muitos, a ilusão de que o “seu trabalho” prosperou por que “você” é talentoso, é das coisas mais nefastas que qualquer pessoa com o mínimo de senso crítico pode acreditar. Vivemos em um cenário onde se tornou “cool” falar sobre terapia, como sinônimo de busca por auto desenvolvimento, sem o mínimo de questionamento sobre as estruturas que adoecem
Falando diretamente de Salvador, na mesma cidade em que Vandal surgiu e por onde transita, vemos um fenômeno histórico se repetir. Houve um tempo, onde a classe média branca de Salvador se referia às culturas negras e periféricas como coisa de “Brau”. Vandal é tipo um elo perdido de quando era OK, dizer que negros eram “Braus” “baixo astrais”. É louvável que de todas as formas Vandal mantenha um modo de ser, vestir, agir, cantar, produzir arte que vai de encontro a todas as formas glamourosas que a negritude abraçou nas redes sociais.
Vandal escolheu o mês de agosto – agora findo – para lançar o single FÉH, onde seu catolicismo – fora de moda, cafona – e uma clara homenagem a Batatinha em seu centenário caminhassem juntos. Para quem não conhece, Batatinha foi um dos maiores sambistas da história da música brasileira, dono de uma discografia impecável composta por discos como o Toalha da Saudade (1976). Nascido Oscar da Penha em 1924, Batatinha é mais um dos nossos grandes gênios da negritude Brasileira que não recebeu em vida o reconhecimento devido a sua obra. Ele faleceu em 3 de Janeiro de 1997, aos 72 anos. Já Irmã Dulce, foi uma freira que se notabilizou pelo cuidado com pessoas pobres e desvalidas, tendo dedicado toda a sua vida a obras sociais, em 2013 ela foi beatificada e em 2019 se tornou a primeira santa nascida no Brasil.
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É destas duas fontes que Vandal bebe para construir o conceito presente no seu single FÉH. A melancolia estética presente no samba de Batatinha se une a luta social pelos negros e pobres da cidade de Salvador que foi a obra da vida de Irmã Dulce. O MC escreve assim mais um capítulo de sua obra em que trabalha dentro da noção do inadequado, aquele que não consegue se inserir nas estruturas, o pária, o que ele próprio chama DEH VERDADEIROH. É o que está em jogo desde o princípio da arte de Vandal. Mas por que agora? Porque só agora, uma música falando das dores? Porque nos parece, é a verdade que ele carrega ao longo de seus discos e EP’s, singles e audiovisuais, mas somente agora tomou um formato radical em forma de canção.
Por falta de tino comercial, certamente. E a própria música carrega isso consigo, como uma pústula que furada não apresenta nada além da inflamação carregada em seu próprio corpo artístico, pus em forma de rima. Não há metáforas ou jogos de palavra que tornem um estado depressivo, um produto palatável na música de Vandal. Novamente, ele marca o seu estilo hardcore, gritando alto e diretamente, as dores que viver produzindo arte na cultura Hip-Hop, nas trincheiras de Salvador, causam.
“É proibido sonhar, então me deixe o direito de sambar”, Vandal atualiza Batatinha com um rigor inaudito: “Se eu falasse quantas vezes já pensei em me matar, não quero causar galitlhos, só quero desabafar”. Batatinha era tipógrafo no Jornal da Bahia, Vandal não é nada além de pixador e um MC que conseguiu achar na cultura Hip-Hop um caminho para sair do tráfico. Mas não se trata de história triste que de resto não comove ninguém, antes de torná-las arte, e isso Vandal consegue fazer como muito poucos.
Em um tempo onde confunde-se Orixá com signo, Vandal se volta para o culto a Santa Dulce dos Pobres. Há muito o candomblé se tornou moeda de troca no mercado simbólico das redes sociais e o “catolicismo” o mais fácil dos alvos dos “lacradores”. Haja vista que, ao longo de mais de 2000 anos, a história da igreja católica enquanto instituição foi responsável pela justificação ideológica de diversos massacres. No entanto, a FÉH segue sendo algo de cunho pessoal – ou pelo menos deveria – e pode-se buscar verdades e forças por diversos caminhos, Vandal escolheu a Santa Dulce dos Pobres por conta de uma vivência pessoal.
É o que dá sentido, ou que pela falta de sentido segue sendo um não assunto pessoal para quem é ateu por exemplo, como eu. Porém, a história existe independente de nossas crenças e nesse jogo entre o individual e o coletivo, Vandal abraçou como símbolo de sua fé, o exemplo da Santa Dulce dos Pobres, alguém que dedicou a sua vida – e isso é um fato – a cuidar dos desvalidos. Encontrando aí, um exemplo de resistência no qual se identifica com relação a sua própria missão no rap nacional.
Neste sentido, Vandal é o Anti Coach que vende prosperidade colocando-se com sua obra como um dos batalhadores da cultura Hip-Hop nacional, como um dos grandes MC’s surgidos nos últimos 10 anos no país. Se doando de corpo e alma, do lixo ao luxo, para uma luta que é sempre imediatamente coletiva, afinal poderíamos e encontramos com facilidade diversos outros exemplos de grandes nomes de excelência da nossa arte de ontem e de hoje, que foram e são excluídos da indústria.
E de certo modo é a essa doação, é nesta chave de pensamento a que estamos remetidos na faixa nova do Vandal. Como dar certo estando de fato do lado dos “perdedores” sem ser coach, sem cantar vitória? É possível? Se o artista não dourar a pílula dos temas que canta, e tornar-se inofensivo aos ouvidos da classe média branca, será que ele será convidado para os grandes palcos de festivais? Será que as marcas, quererão associar-se a ele? Talvez por isso choque muito, alguém ouvir sobre vontade de se matar, ou que um dos maiores artistias da sua geração está chorando no banheiro dos seus shows.
Ora, essa é a situação de milhões de artistas, professores, trabalhadores precarizados e de pessoas que neste milênio, onde a conjuntura política global e a estrutura econômica do capitalismo tardio imprimem sofrimento mental. Tanto a participação cidadã se faz fundamental no campo da construção política, quanto é fundamental que o público passe a ter uma atitude de maior apoio aos artistas que “dizem” gostar.
Comprar ingressos, merchandising, engajar, são atitudes políticas também quando se refere ao underground, pois estamos falando na sustentação de artistas que são imensamente explorados na era dos streamings. Aprender a selecionar e propagar o tipo de arte de que se gosta, sem ter o seu gosto formulado por algoritmos é também fundamental. Enfim, o underground agradece, a este tipo de público e certamente a artistas que diante de todo esse cenário não se calam e permanecem, obrigado Vandal!
Escute!
-Vandal é o “ANTIH KOACH”, com uma reflexão sobre a força da arte e da FÉH!
Por Danilo Cruz