Underismo lançou o EP R3sídu0$ (2018) trazendo à luz uma renovação do rap que está sendo construída nos subterrâneos da cidade de Salvador!!
A cidade de Salvador completou recentemente 469 anos, o aniversário da maior cidade negra fora da África, mas que até hoje, quase meio milênio depois segue tratando a absoluta maioria dos seus filhos e filhas como escravos descartáveis. Nesse final da segunda década do recente século XXI, o rap, a música mais ouvida no mundo, quando realmente ligado a cultura hip hop tem sido o responsável artístico por produzir as melhores crônicas sobre esse cotidiano sofrido.
São centenas de meninos e meninas, homens e mulheres, ao longo de toda Salcity, produzindo visões estéticas em rimas e beats, graffite e dança, sobre os mais diversos problemas, atacando a politica genocida, se auto afirmando, tentando resgatar seus irmãos e irmãs do caminho da morte. Um alto exercício de transformação responsável pela sublimação da falta de perspectiva que a vivência de jovens e adultos encontra, diante de uma sociedade nojentamente racista, classista, machista e tudo de ruim chegando até o fascismo que emerge hoje em nosso país.
O coletivo Underismo é uma dessas forças artísticas que chegou agora no final do mês de março com seu EP de estreia nomeado: R3sídu0$ (2018). Formado por oito cabeças, que se definem como 8 corpos celestes dentro desse seu universo musical de criação e compartilhamento de vivências. Senpai, Alfa, Trevo, Ponci, Ares, Kolx, Dj Moura e Flip na produção, são os nomes ou “astros” que respondem pelo coletivo. E os caras estreiam com um trampo sólido e com o frescor libertário e revoltado de que apenas a juventude é capaz.
Mas de que “resíduos” se trata mesmo nessa estreia em disco, quais os restos que nos são apresentados e melhor, de que modo se dá essa apresentação? Um primeiro sinal trazido ao longo das 8 faixas é o humor, sim, a capacidade de rir de si mesmo e da desgraça ao redor que é necessário pra manter a sanidade de alguém minimamente atento a avalanche de problemas que nos cerca.
Signo presente já na “Intro”, quando DJ Moura erra a rima e Trevo segue rimando mesmo depois do fim do beat. Cafeína em excesso, pressa e falta de experiência juvenil e sinceridade capaz de transformar o erro em acerto. A produção classuda de Nobru com a utilização de um sample onde o trompete guia melodicamente o beat – hoje o jazz tem cara de sério – traz um delicioso contraste.
Alertando-nos para a realidade pornográfica que a jovem senhora da cidade de Salvador nos quer participantes, Ponci, Senpai e Kolx, produzem em “$alva4dor P0rnStreet” uma especie de manual de sobrevivência para essa selva. Diante da barca de Caronte nesta Hades-Salvador, essa matilha pula a catraca ou vai para trazera da embarcação e começa um sessão de freestyle, e nesse processo de atravessamento do rio Léthê o esquecimento não é uma opção. Uma produção com o selo de qualidade HeadB, diretamente do Canadá fortalecendo com seu excelente boompulso que também segue na faixa seguinte.
Em “1003moção” o beat novamente um boombap dessa vez com uma percussãozinha rastafári discarada, é o palco sonoro por onde Alfa, Ares e Ponci, esses seres do under desfilam um sincretismo politico, artístico e religioso. O primeiro chamando-nos atenção para a relação divergente entre o individual e o coletivo, e mostrando que o importante é que ao enaltecer a própria negritude esse esforço siga rumo ao coletivo. O segundo atualiza a figura de Zumbi aos nossos tempos, a luta seguindo a mesma, no pique resistência quilombola seremos taxados de Demônios Racista Reverso, com orgulho. Já o terceiro, escurece o discurso demonstrando a necessidade permanece de que é preciso enaltecer as pretas.
E é seguindo nesse pique que Sued empresta sua bonita voz para o refrão de “Igreja Pentencostal do 8º Dia”, com Trevo, Ares e Alfa. Somente a poesia é capaz de transmutar o conteúdo da linguagem que associa um homem negro ou seus deuses em demônios. E esse exercício é feito aqui pelos mc’s ao se ligarem a deuses “estranhos” como Anúbis e Ares, mas no final das contas se auto reconhecendo como sagrados.
A linha estética do pagodão é mantida agora na forma mesma do canto, incorporando a forma do refrão presente nos “pagodão”, com referência ao Kannário, em “BVIL3DVUND3R”. Aquela pegada libidinosa e gastante aqui é no modo hard, falando sério de modo engraçado, os caras conseguem aquilo que o filosofo chamou de Ridendo Dicere Severum (É rindo que se diz o severo). Um síntese muito interessante da verdadeira cultura jovem de salvador, que agrega Edcity, ÁTTOOXXÁ e Vandal no mesmo ecossistema, com aves mais raras como Beirando Teto. Mimoso groovando (um dos Ogan’s dos beats?) tudo no beat originalíssimo, Senpai, Alfa e Trevo, assumindo as rimas com a mesma qualidade em alto nível que percorre o disco inteiro.
Fechando o disco a reunião das linhas em “Movimento Retilíneo dos Largados”, uniformemente conscientes e talentosos, a reunião desses variados astros ao fechar o disco é o gran finale. Maconha, São Jorge, Meridian e café do bom, rolê no Campo Grande, vida resgatada pela arte das quebradas, transformando-se em conhecimento. Subvertendo Harry Potter, Todo Mundo Odeia O Chris, em linhas cheias de referências que passam com tranquilidade de Carrossel à Machado de Assis, sem perder a visão de que o inimigo é Caruso. Brincadeira de gente grande, pretos informados e alertando os irmãozinhos e irmãzinhas sobre a vida e as armadilhas que estão esperando um falha pro bote!
Um excelente EP, uma estreia realmente pesada e original, com linhas singulares, trazendo beats de produtores quase ou totalmente desconhecidos. Mix e master em sua maior parte fruto da expertise que Dactes tem desenvolvido. Certamente R3sídu0$ (2018) é uma das melhores coisas que ouvimos esse ano no rap nacional, Salvador segue subindo o nível em suas produções e o Underismo precisa ser escutado e visto. São jovens que demonstram nesse disco de estreia um verdadeiro (Extended Play) Jogo Extendido, que na Bahia podemos tranquilamente chamar de Jogo Solto, a qualidade de sua arte traz-nos um doce sabor de liberdade nessa cidade suja e escrota, cheia de problemas, com corpos jogados nas ruas, um cerco filho da puta sobre toda uma população que nesse momento não consegue encontrar futuro algum a frente.
Eis que dos fluxos subterrâneos dessa cidade maldita, surgem 8 jovens negros, Underismo tornado beleza emergindo de onde a elite nem desconfia. Escutem: