Um Passeio No Mundo Livre S/A, com uma discografia pulsante e atual a banda pernambucana atravessa a história com muita luta e inventividade
Se há uma materialização da palavra hibridismo musical sem dúvidas é o Mundo Livre S/A, a banda é punk com DNA no samba e inspirações na latinidade em suas composições e arranjos, também pudera, o berço do grupo é a quarta pior cidade do mundo, até início dos anos 90, a mesma Recife cantada por Science. Por falar nisso, uma grande injustiça é feita quando se fala dessa banda, há uma preguiça para ao expressar a importância do trabalho de Fred Zeroquatro e demais, limitando mais de 30 anos de correria como “a banda irmã da Nação Zumbi”, a mesma preguiça que está presente quando se aborda o manguebit, resumindo-o de maneira pobre, como a mistura de rock com maracatu. Ora, onde está o funk? O soul? O Hip Hop? A embolada, a ciranda, o coco???, do mesmo modo que é compreensível que os holofotes estejam sobre Chico e sua Nação, é inaceitável limar a trajetória do Mundo Livre, um verdadeiro crime ambiental, pois atenta contra o ecossistema desses caranguejos com cérebro.
Rato montou o Trapaça, ainda no período de ditadura, época que era membro do MR8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), um ano antes da abertura política, mudou de nome para Zeroquatro, último dígito do seu RG, e também alterou o nome da banda, para Mundo Livre S/A, usando como referência os discursos do estadunidense Ronald Reagan, só não mudou seu anseio de tacar fogo no sistema. Depois de várias formações e duas demos, o pessoal de Candeias se encontra com a galera de Rio Doce e aí nasce o Manguebit, com todo seu simbolismo e elementos. José Telles dá o salve para o Carlos Eduardo Miranda, na verdade uma bronca: “Como não tem nada acontecendo em Recife?”, em resposta a uma matéria da revista Showbizz, em que o produtor era um dos responsáveis. Desta comida de rabo nasceu a turnê do Mundo Livre e da Nação Zumbi pelo Sudeste, a mangue tuor, resultando em contratos, de Chico Science com a Sony, pelo selo Chaos, e o Mundo Livre pela Warner, com o selo Banguela, criado por Miranda e pela banda Titãs.
Com produção de Charles Gavin, e mais tempo do que o planejado, enfim sai o disco de estreia do Mundo Livre, isso em 1994. Samba Esquema Noise traz influências de Jorge Ben não somente no título, mas na forma de fazer música, a sensacional mistura do cavaquinho com as guitarras pulsantes dava a cara da banda, e isso por si só já mostrava um diferencial a sua “irmã”, afinal estamos falando da cena pernambucana, tão versátil e diversificada que nem a palavra Pernambuco quis repetir suas letras. Músicas como “Manguebit”, “Cidade estuário”, “Livre Iniciativa”, “Musa da Ilha Grande” e “Sob o Calçamento” transformam o álbum em um depósito de sucessos.
Em 1996 vem a famosa prova do segundo disco, imprensa e fãs tiveram que seguir Guentando a Óia do Mundo Livre, com uma sequência tão espetacular como a primeira, os malungos eram realidade na efervescente cena do rock dos anos 90. Com um disco mais elétrico e político que o anterior, onde as críticas sociais foram mais acentuadas, sobrando até pro plim plim como na faixa “Militando na Contrainformação”. Nesse álbum se encontra um registro raro de um feat entre o núcleo fundador do Manguebit, Chico Science participa de “Destruindo a Camada de Ozônio”, dobradinha que voltaria a acontecer somente em 2000, no Rádio S.AMB.A da Nação Zumbi, onde Fred dá o ar da graça.
Em 1998 fizeram um Carnaval na Obra, mexeram o bolo de ameixa, essa é a expressão exata, provando que quem tem bit tem tudo, isso para mostrar (também!) “Édipo, o Homem Que Virou Veículo”, narrando num samba de roda a situação dos transportadores de bicho-de-pé, condição comum das palafitas recifenses. Seguindo a liturgia de a cada dois anos lançar um álbum, em 2000 é apresentado o disco Por Pouco, numa pegada mais compactada, simples e que se aproximou mais do grande público, isso não quer dizer que veio um trampo meia boca, ao contrário, a contundência e técnica nunca abandonaram o MLSA. Faixas como “Mexe Mexe”, “Melô das Musas” e “O Mistério do Samba” são hinos que ajudaram a popularizar essa jóia.
Quebrando a sequência de lançamentos a cada dois, desta feita o grupo esperou quatro anos e nos entregou O Outra Mundo de Manuela Rosário, um dos disco que os fãs guardam com carinho especial. Aqui o Mundo Livre apostou no conceitual, algo que desconecta essa das demais obras. A começar com o eu poético personificado pela moça do título, uma mexicana criada por Zeroquatro e através da qual a banda fala de política, da primeira à última faixa, sem dúvidas o disco mais denso da banda, comprovando que a vida se fez de loca. Em 2011, Fred faz uma homenagem ao seu notebook, um Semp Toshiba que já tinha aguentado muita coisa e foi a principal ferramenta de trabalho do músico que o usou como uma mina para garimpar canções, nascendo aí o disco Novas Lendas da Etnia Toshi Babaa, aqui também há o reencontro com um velho amigo, BNegão, que participa da faixa “Constelação Carinhoca 7324”, ainda há a marchinha “O Velho James Browse Já Dizia” (não leve a mouse!), a faixa “Nenhum Cristão Na Via Láctea” e a radiofônica “Ela É Indie”.
Dois anos se passam e o MLSA volta com disco, mas num projeto de releituras, onde chamam para o embate a irmã caçula, manguegirls e mangueboys vão ao delírio com Mundo Livre S/A VS Nação Zumbi, onde cada qual regrava sete faixas da outra, o Mundo vai de samba rock, indie, g-funk e rap para recriar clássicos da Nação e do eterno Chico. Enfim, chegamos ao caótico ano de 2018, com muita coisa acontecendo ao mesmo tempo e a política brasileira em erupção, pois flertava-se com a possibilidade de eleger um fascista, o que infelizmente de fato ocorreu, enquanto um golpista ocupava a presidência, paralelo a isso tínhamos a ascensão do hipócrita “cidadão de bem” e da polícia com carta branca para fazer as chacinas que sempre fizeram.
A resposta para esse estado de coisas foi um disco conceitual e político, mais rock n’ roll que os demais, esse bebeu das águas punks de algum boteco fuleiro de Recife, e subverteu a ordem batizando o trabalho de A Dança Dos Não Famosos. Mostrando a agressão, por parte da polícia, ao manifestante Matheus Ferreira da Silva logo na capa, dando com isto o tom do disco. Canções como “Batismo NukGruvk”, “Meu Nome Está No Topo da Sagrada Planilha”, “Eletrochoque de Gestão” e “A Maldição (Das Páginas Que Não Viram)”, mostram a irreverência jovem com o peso do talento musical desses dinossauros.
Mundo Livre S/A é punk rock com cavaquinho é Hip Hop sem beat, e sim com bit, é porrada sonora, poesia suja para além do Cantinho da Graça e da Soparia do Rogê, é um desafio às leis de Science, porém com o respeito e a camaradagem de sempre, são caranguejos da mesma corda. Os recifenses são amostra da diversidade cultural não só de Pernambuco, mas desse país continente, são um ecossistema em constante evolução, a metamorfose do aratu na destreza do gabiru. Então preserve a natureza, ouça os mangueboy e passeie pelo Mundo Livre S/A.
-Um Passeio No Mundo Livre S/A
Por Jeff Ferreira (Submundo do Som)