Oganpazan
Destaque, Música, Rap Nordeste, Resenha

Um dia das Mães com Afrogueto, OQuadro, Elemento X e Testemunhaz

Um dia das Mães com Afrogueto, OQuadro, Elemento X e Testemunhaz. O escritor Fábio Mandingo relembra essa história importante do rap baiano  

 

Fiz o “Release” todo no Word…, títulos e nomes das bandas em WordArt, com letras em perspectiva e tudo o mais. A coisa era simples, Show de lançamento de disco de dois dos mais destacados grupos de Rap de Salvador: Testemunhaz e Afrogueto.  Era também o show de retorno do Elemento X aos palcos depois de algum tempo, e segundo show da Banda O Quadro, em Salvador. 

A Testemunhaz tinha acabado de encurtar o nome (era Testemunhas da Periferia) e era sem dúvida o grupo de Rap que eu mais gostava, principalmente pela unidade sonora jazzística swingada, sendo uma dos poucos grupos de Rap na época, que era uma “Banda de Rap”, com guitarra, baixo , bateria, e incorporando metais. O Afrogueto vinha de ganhar o prêmio Hutuz como melhor grupo de Rap do Norte e Nordeste, e firmando a formação com Kiko, Oz e Seda, após a ida de DaGanja pro Testemunhaz. 

O Elemento X era (e segue sendo) um dos principais referenciais do Rap Baiano, inclusive pra as bandas da época que iam então consolidando seus trabalhos. Após um período fora dos palcos, o grupo que já tinha conquistado certa popularidade no cenário de Rap Nacional,  retornava metendo o pé na porta  tendo a música Kamikaze (acima), como carro chefe do que representava esse retorno, que era uma permanência. O Quadro, de Ilhéus, vinha chamando as atenções dos amantes do Rap na capital do Estado e também em outros estados. Também era “Rap de Banda”, e o som instrumental se destacava por sua originalidade trazendo sonoridades regionais e caribenhas, dialogando com o que havia de mais recente na cena Rap. 

O show representaria então a unidade e a transição dentro do próprio Rap entre o trabalho já consolidado do Elemento X, e os novos grupos que estavam se construindo e se arriscando em outras linguagens e sonoridades. Idéias sobre “profissionalizar a produção do Rap”, “levar o Rap pra outros espaços”, “melhorar a qualidade de som dos eventos”, “deixar de ser vistos como ‘os meninos do rap’”, faziam parte das discussões da cidade e das nossas discussões, dos grupos e pessoas que continuamente realizavam eventos de Rap no, e em parceria com, o Quilombo. 

Por isso buscamos o espaço do Clube de Engenharia pra realizar o evento. Espaço com maior estrutura, aparelhagem de som zero bala, localização mais central. Apesar do péssimo diálogo com o então responsável pelo lugar e sua mulher, que era na verdade quem mandava nele e no espaço. 

Tudo acertado, Release debaixo do braço, a peregrinação era a mesma de sempre atrás de “patrocínio”: buzu pra JanSkates “dá pra botar uma grana pro evento? Nome no cartaz…pelo menos bote umas rodinha ou um shape pra sorteio…”, buzu pra a Rádio Educativa “sim, programa de Sartorelo, 16 Toneladas. Qualquer 100 reais adianta o lado. Divulgar nos programas da grade. Isso…”, buzu pro Jornal A Tarde “entrega aí pro pessoal da Cultura divulgar o Evento…”, dali pra o Correio, na volta colar cartazes e pedir apoio na Livraria Berinjela (que também costumava apoiar com algum dinheiro), e logicamente a passada em Metal, ali do lado “ porra Metal, bote pelo menos umas tatuagens pra sorteio!!!!”

Tempo vai, mas acho que rolou de cobrir  o custo do Clube de Engenharia. O Show aconteceria na tarde do domingo do Dia das Mães, e quem levasse a mãe ganhava um ingresso promocional. 

O próximo passo era levar os irmãos dO Quadro pro hotel de Cinco Estrelas na Rua do Passo 37, mais conhecido como minha casa, mais conhecido como Quilombo. Tudo certinho, colchão de cada um instalado no chão, acho que Rangel levou mais uns lençóis e colchonetes.  Isso no sábado. Por volta da meia noite, a fauna e a flora da Rua do Passo resolveram dar as caras, e um dos vizinhos começou a gritar pro vizinho de baixo de minha casa que ia matar e fazer e acontecer, enquanto arremessava garrafas de cerveja na direção dele. Dois engradados voando depois, us ômi chegou, quebrou o vizinho no pau, jogou no fundo da viatura, e a paz voltou a reinar na madrugada. Lembro de Jeff me perguntando: “mano, aqui é sempre assim?”, “não mano, claro que não. Aqui é tranqüilo.”

Jabazinho da ECAD pago, Ordem dos Músicos conversado, licençazinha da SUCOM paga. Hércules ficou na bilheteria. Queria lembrar quem foi que apareceu com esse Segurança de dois metros de altura, na pegada Suge Knight, chamado Jesus. De Cajazeiras. Contratei. Jesus trouxe um outro cara pra fazer a segurança interna. Devia ser um apóstolo. Contratei. Se Jesus era por nós, tava tudo certinho. 

O Show começou às 16 em ponto. Em horário de baiano. Uma seis. Jesus conversando paporra sobre que ele fazia e acontecia no tempo que era polícia…porra, Jesus cabuloso. Já era noite. O salão estava lotado. A área externa que tem a vista pra a Baía de Todos os Santos cheia de gente fazendo a cabeça e escutando o som. 

OQuadro já mostrava que ia ser uma das principais bandas do Rap brasileiro. Som potente, funkeado, batida salseada, vocais  de Rans, Freeza e Jeff se encaixando muito bem , instrumentos bem amarrados numa roupagem quase Skate Punk. Eu perdi boa parte do show atento nos processos da bilheteria. Até ter segurança a respeito da segurança de Jesus. Subindo e descendo vendo como estava o controle de, como tava o som, como tava os horários. O certo é que estávamos todos numa curiosidade mortal pra ver da colé daquela banda de Ilhéus que vinha chamando a atenção de todos. E a cena geral era dois três negos nas rodinhas assistindo o show da banda, mão na frente da boca dizendo “pooooorraaaaaa, que porraaaa é essa? Bom demais!!”… Potência! Potência que se estabeleceu como realidade, e segue…

Embora seja demais exigir da memória após os anos 90, creio que em seguida veio o Afrogueto, que naquele momento, era o grupo rebelde que representava o início do que se poderia chamar de “Gangsta Rap Baiano”, embora ainda representasse uma transição entre o Rap de “protesto , consciência e reflexão”, e o Rap que tratava de assuntos mais mundanos como drogas, lazeres e prazeres (espinafre,cerveja e vinho…).  Kiko, Osório e Seda  conseguiram encaixar os vocais com as bases do Dj Mário, de uma forma que a energia das apresentações se mantinha do início até o final. Desde quando a multidão gritava :  “Gueto, Gueto, é o som do Afrogueto”, Gueto, Gueto…”, até a Oração em Rap que é a música “Saca La Máscara”, que ainda hoje me arrepia cada vez que escuto. Sem contar a basezinha descarada do Dead Prez em “Parece que é Fácil”, que como muitas das outras músicas, nos convocava pra uma reflexão pesada sobre o dilema do indivíduo periférico. Tanto Kiko como Osório, seguem em caminhadas “lindas e elegantes”, década e meia depois, fazendo Rap de qualidade e obrigando quem escuta a parar pra refletir.

Dj Leandro e Dj Índio (que era também o Dj da Testemunhaz), seguravam o balanço entre uma banda e outra. A gente botou uma iluminação dissifudê, com piscas coloridos, estrobo, fumaça e os carai. Porra, só gente preta bonita, todo mundo novinho, rsrsrsr cara lisaaaaa. 

Abrimos o show da Testemunhaz com os Berimbaus, eu e Hélio, na mesma pegada da abertura do Cd. A gente tinha pegado o costume de fazer umas rodinhas de Capoeira no meio dos shows, jogava eu, jogava ele, jogava Lee, jogava Madureira, Ananias fazia uma graça…”não mexa comigo que eu não mexo com ninguém, mas se mexer comigo pega, se mexer comigo tem…”, e aí o som começava com a porrada Jazzística da bateria de Soneca debatendo com o baixo de Rangel e a guitarra de Branxer no início do “quem diria que estilo natural assim existiria?”, até a gravidade de “Falo o que Penso”. 

Ao que me parece, o som da Testemunhaz já era outro, no sentido positivo, dos poucos meses entre a gravação do disco, até esse lançamento. A incorporação dos metais de Manchinha dava uma pegada musical mais rica e swingada no instrumental da banda, que já era muito boa. Um exemplo era a música que tinha o refrão, “não dá pra parar, então vou seguir, um passo em falso a ponte vai cair…”, que tinha um groove que vixe… e creio que não ficou em nenhum registro.  Em outra que eu também desconheço registro, Dimak exercitava sua metralhadora vocal numa velocidade que deixava todo mundo atordoado, no Speed do “…do laço desembaraço, a todos os irmãos, aquele abraço…” . A mensagem positiva batia certo em “A Missão”, e a defesa do Rap independente vinha na voz de Daganja em “Boa Cultura”, uma diss, discreta.

Creio que somente Soneca não deu continuidade à carreira no Rap. DaGanja e Rangel, já vinham de uma caminhada relevante no Quilombo Vivo e no Afrogueto, seguem gravando discos que a cada lançamento colocam o Rap Baiano um degrau acima, e o mesmo pode ser dito de Fall, Dimak e Sereno, que seguem colocando o povo pra pensar dançando e dançar pensando. Branxer segue groovando sua guitarrinha hendrixiana e mergulhando fundo nas artes plásticas. 

Encurto, porque eu sou fã, então encurto, pra não pecar por excesso, mas creio que esse disco e o primeiro de Dão são os discos nacionais que mais tocaram em minha casa… Então encurto.

Creio que pagamos Jesus e o apóstolo, e ficou 100 conto pra cada banda. Pagamos Hércules. Não lembro dos Djs terem recebido. Creio que sobrou 80 conto pra mim…kkkkkk. Satisfeito paporra. Mas ou menos isso aí, se a memória não me engana completamente. 

Finalizar o show com Elemento X era um fato histórico. Primeiro, porque era o maior grupo de Rap da cidade. Influência direta e indireta para os demais. Sejam os grupos que davam continuidade ao que eu posso chamar de “Rap de Conselho de irmão mais velho”, sejam os que inovavam comportamental e musicalmente. Tudo isso fica muito exposto na música de retorno do grupo: “Kamikaze”, que retratava as várias questões enfrentadas pelo grupo e sacramentava, “onde consciência houver, pra quem não levou fé o Elemento X tá de pé ! ” Segundo, porque se bem me lembro era justamente o show de retorno do grupo aos palcos depois de um hiato relativamente longo. Terceiro por que…deixa quieto…

Gomes e Dinho ( Angoleiro de valor!!!)  traziam nos vocais a harmonia dos tempos do canto coral das igrejas de São Caetano. Era ‘ôto patamar’, no que diz respeito às interações de vozes e sobreposições melódicas. Dj Edilson (sem dúvidas um dos mais completos DJs de Salvador, pra muito além do Rap), também de São Caetano, conseguia construir o clima de tensão permanente que emoldurava as denúncias, preces e reivindicações das letras sobre nossas tragédias cotidianas trazidas pela chuva, pela violência, pela desigualdade racial. Braços erguidos, punhos fechados, na hora da Oração a Zumbi, música que ainda hoje é uma das que arrepia todas as vezes que eu escuto. Creio que o show finalizou justamente com a música Kamikaze, que é uma porrada musical em todos os sentidos.

Hoje completam-se 15 anos desse Dia das Mães de 10 de maio de 2015. Várias onda. Diz que tem uma gravação por aí. (kkkkkkkkk). Várias saudades, mas tamo vivão e vivendo pra lembrar o que a memória ainda lembra. OQuadro segue firme e forte! É uma pena que as “Obras completas”, de Afrogueto, Testemunhaz e Elemento X não estejam disponíveis pra as novas gerações e “quem viveu viveu.” Assim como outras bandas grandiosas que pararam de tocar (ou não?) como Quilombo Vivo, SAN, Erê Jitolú, Júri Racional, Era Negra, Verbo de Malandro, Sr Râneo,  (vixe, se for puxar na memória não acaba nunca), tenham muito pouco quase nada disponível pra consulta. 

Creio que a memória véa falhou aí em vários momentos…mas foi mais ou menos assim…merecia um show de comemoração…

Esse dia das mães faz 15 anos…

Mandingo, mês de maio do ano do Covid19

-Um dia das Mães com Afrogueto, OQuadro, Elemento X e Testemunhaz

Por Fábio Mandingo 

 

 

Matérias Relacionadas

O mundo visto sob a perspectiva de John Coltrane

Carlim
2 anos ago

Por Dentro da Cena Jazz de UK: Top 5 – Parte 1

Guilherme Espir
6 anos ago

Beer ‘n’ Destroy (2021), o álbum póstumo dos Muzzarelas (SP)

Dudu
4 anos ago
Sair da versão mobile