Em maio Pedro Salvador lançou o álbum ‘As Novas Aventuras do Mercado-deus’. Uma obra crítica, que nos convida a refletir sobre o nosso tempo.
Um artista inquieto, criativo e sensível
Quem acompanha, mesmo que displicentemente, a trajetória musical de Pedro Salvador irá concordar que o subtítulo acima faz jus ao artista. Pedro Salvador transita por múltiplas sonoridades presentes no arco abraçado pelo rock: prog, hard rock, doom, psicodelia, que podem ser atestadas ouvindo as bandas (Messias Elétrico e Necro) das quais fez parte antes de embarcar na carreira solo.
As referências presentes no som de ambas as bandas foram trazidas por Pedro para seus trabalhos solo, que incorporaram outras mais como o afrobeat, o jazz, o blues, ritmos populares regionais como o coco e a canção popular brasileira em geral. Pedro falou ao Oganpazan a respeito das influências que dão os ingredientes de suas composições, clique aqui para acessá-la.
Pedro, pela forma como combina todos os ingredientes presentes nesse arcabouço sonoro construído ao longo de sua carreira, sempre realizando estas combinações tendo a sensibilidade e criatividade orientando a técnica adquirida, pode ser descrito como grande nome da música brasileira dos últimos anos.
Acrescento o fato do cara vir lançando novos trabalhos, entre singles, EPs e álbuns regularmente desde 2015. Trabalhos que buscam não apenas trazer boas composições do ponto de vista musical, mas também da crítica através de letras que escrutinam o contexto político e histórico atual.
Um álbum conceitual
As Novas Aventuras do Mercado-Deus faz uma crítica ao modo como se dá a deificação do mercado ao ponto das pessoas serem destituídas de sua vontade própria e renderem tributo ao mercado. Este apresentando os contornos de um ser vivo, sugando nossas energias e subjetividade, convertendo-nos através do seu culto a meros mecanismos de consumo.
A faixa que dá nome ao álbum trata dessa total subserviência à vontade do Mercado, sempre nos assediando através das propagandas, estímulos constantes nos induzido a comprar. Se apropriando de nossas “almas” e nos dizendo como nos comportar, o que desejar e mesmo o sentido de existirmos.
Para nos passar essa mensagem Pedro compôs um afrobeat de contornos psicodélicos, que nos coloca numa atmosfera de transe, uma dinâmica que nos impulsiona sem que nos percebamos. Uma forma de encararmos a influência dos mecanismos de estimulo ao consumo operados pelos servidores do Mercado, sempre a nos aprisionar em um transe onírico confortável.
Uma valsa abre o Ep. O Profeta Convoca Às Compras, anuncia de modo afável a onipresença, onisciência e onipotência da entidade que está nos vigiando, punindo e forçando a realizar coisas que lhe provém, fazendo parecer estarmos numa temporada primaveril, ,que não passa de um inverno estéril para quem o serve.
Em O Algoritmo de Notícias Não Mostrará a Revolução, o afrobeat mostra como os algoritmos funcionam de modo a maquiar a realidade e oferecer sempre aos usuários uma bruma de paz e tranquilidade. Memes nos divertem ao tornarem cômico notícias que dilaceram nossas vidas. Nesta faixa a levada afrobeat cheia de swing nos conduz até a guitarra nos introduzir num vórtice psicodélico até seu fim.
Numa pegada bluseira Canto de Guerra traz à tona questões ligadas à realidade dos países colonizados, desde a expansão pré-capitalista servindo de hospedeiro para as nações imperialistas, diga-se EUA e países europeus. Em Mal Para Todas As Curas, Pedro recorre à expressividade da sonoridade instrumental. Num riff de guitarra pesada e temperada de distorção, desenvolve uma melodia caótica e intensa. ,
Já Morrer Feliz lança mão de uma narrativa que relata o cotidiano dos trabalhadores de aplicativos de entrega. Enfeitiçados pela ideologia neoliberal que os convencem de terem a liberdade para escolher horários e jornada de trabalho.
Quando na verdade estão submetidos a uma lógica de mercado cruel, desprovidos de qualquer seguridade social, qualquer direito trabalhista, à mercê do acaso, de quando o acidente o impossibilitará de trabalhar por perda de seu instrumento de trabalho, a moto ou bicicleta, ou da própria saúde.
Pra contar essa história, que é a de centenas de milhares de trabalhadores e trabalhadoras em nosso país, nosso compositor vem de um ritmo regional, que confesso não saber classificá-lo, que imprime à música um andamento “descompassado”, bastante parecido o movimento sempre no limite de quem usa sua bicicleta ou moto para ganhar a vida precariamente fazendo entrega pelos aplicativos sangue sugas.
Finaliza o álbum com uma mensagem de esperança já estampada no título da faixa: Te Aguardo Nas Ruínas do Velho Mundo. Numa música de levada cadenciada revela a visão do fim, que pode ser do mundo ou do mês, não se sabe, afinal, todo fim de mês tem um tom de fim do mundo pra quem é assalariado.
Nessa valsa quem toca é o Mercado e seus idolatras, por isso seguimos bailando uns com os outros ao longo de cada mês, sempre de um lado para o outro, tentando dar conta de lidar com as demandas da vida, nos alimentar, nos vestir, ter onde morar, até aquelas criadas artificialmente pelo Mercado Deus.
Pedro Salvador merece nossa reverência e o reconhecimento de ser um dos grandes nomes da nossa música nos últimos anos. Aqui, abaixo dos radares do mainstream, seguimos atentos e felizes por contarmos com este nome produzindo música com sensibilidade, criatividade e crítica, refletindo o tempo presente no qual vivemos.
As Novas Aventuras do Mercado-Deus de Pedro Salvador foi lançado no dia 08 de maio e está disponível em todas as plataformas de streaming. Podemos resumi-lo como um disco semi-conceitual que conta através de nove músicas histórias sobre o capitalismo contemporâneo e sua necessidade de extinção.
Com composições e produção do próprio Pedro Salvador, mixagem de Vicente Barroso e masterização de Francisco Patetucho. Um lançamento do selo Voragem.