Tyler The Creator, IGOR e o conflito das suas personas artísticas ao longo de uma obra em franco desenvolvimento, leiam esse artigo, entenda
Ouvi recentemente algo dito por um crítico de cinema, Pablo Villaça, que se encaixa bem ao meu sentimento quando parei para ouvir IGOR pela primeira vez. Ele disse em um vídeo no Youtube, quando comentava sobre o novo filme do Tarantino, que o bom crítico é aquele que escreve não sobre o filme que ele queria ver, mas sobre o filme que ele viu. A fala tinha outro contexto mas me fez refletir sobre como é fácil para determinados artistas “lerem” o público para entender o que ele quer ouvir. Eu me tornei um apreciador da obra do Tyler nos últimos anos e como tal obviamente criei expectativa em relação ao seu novo disco e esperava por algo. O que eu posso dizer depois de ouvir o disco em loop durantes algumas semanas é: que bom que nem todos os artistas dão ao público o que ele quer.
O entendimento de que subverter as expectativas e criar algo genuíno é um bem em si mantém a arte viva dentro de um contexto de mercado. Tarantino, assim como outros grandes diretores, soube fazer isso no cinema e Tyler, the Creator com certeza faz isso como poucos no RAP e diria que na música como um todo. A sonoridade do disco é algo espetacular e possivelmente seu ponto alto. Percebe-se nitidamente a influência que a obra do Kanye West tem sobre ele. Kanye que aliás participa pela segunda vez de um álbum do Tyler, sendo a primeira em Smuckers, do disco Cherry Bomb, e agora na faixa PUPPET, mostrando que a admiração é mútua. Há diversas outras participações de peso no disco, das costumeiras como Frank Ocean, Kali Uchis e Pharrell Williams às novas como Solange, Lil Uzi Vert, Playboi Cart, entre outras. Algo que me chamou muito a atenção e que foi pouco comentado pela crítica foi o conceito do disco. Como eu demorei bastante para escrever essa crítica eu vou me permitir entrar um pouco no conceito e recomendar reviews como o do Rap Shit e do Miojo Indie que se debruçaram mais sobre a sonoridade. Mas pra falar disso vai ser necessário introduzir alguns conceitos dos discos anteriores e de outra grande obra contemporânea, a trilogia Frankenstein da Universal.
– Mas o que Frankenstein tem a ver com isso?
A trilogia cinematográfica da Universal é composta por Frankenstein (1931), A Noiva de Frankenstein (1935), que não entra no escopo do disco, e O Filho de Frankenstein (1939). A história do primeiro filme, baseada no livro da Mary Shelley, é conhecida. Um doutor cria um monstro composto por partes de corpos humanos e pede ao seu assistente que busque um cérebro para, através de choques elétricos, dar vida ao monstro. Seu assistente, Fritz, comete um erro e entrega ao doutor o cérebro de um assassino. Dr. Frankenstein ergue o corpo em uma plataforma para que ele receba o choque de um raio e isso anima o monstro que por causa do cérebro assassino exibe impulsos violentos e luta com seu mestre.
Em “O Filho de Frankenstein” Wolf von Frankenstein retoma o trabalho do seu pai. Com a ajuda de Igor ele reinicia as experiências com o monstro para refrear os impulsos assassinos dele, mas Igor tem uma intenção diferente de Wolf e aqui surge o ajudante que serviu de base para a nova persona de Tyler, EEE-GORE ou EYE-GORE como no filme de comédia O Jovem Frankenstein (1974), protagonizado por Gene Wilder, de onde Tyler tirou inspiração para essa brincadeira com a pronúncia do nome. Igor é acossado pela população por morar no castelo de Frankenstein e por ter uma aparência estranha e o pescoço quebrado. Seu desejo é usar os impulsos assassinos do monstro para atacar aqueles que o fizeram sofrer. Igor foi usado em outros filmes de monstros da Universal e está atrelado a uma aura mágica e uma imagem intermediária entre homem e monstro. Algo interessante a se notar é que a imagem do Igor (Tyler) na capa do disco, devido ao jogo de luz, a camisa preta e o penteado, tem um formato retangular, possivelmente fazendo referência ao visual do monstro de Frankenstein da Universal que com o tempo se tornou sua aparência padrão. No clipe de IGOR THEME surgem várias imagens dele com diferentes fisionomias, mas em todas elas ele está meio que com uma cara abobada, como a do monstro de Frankenstein. Ou seja, na imagem de Igor há certa alusão ao monstro e mais a frente vai ficar claro o porquê disso.
-Trilogia WOLF e o nascimento do monstro
A trilogia WOLF é composta pelos discos Bastard, Goblin e WOLF. Eu recomendo, pra quem quiser se aprofundar um pouco mais nela, o artigo da Vice [1] e uma discussão no fórum do Genius que apresenta os aspectos gerais da história narrada nos três discos e encerrada em Sam is Dead, do disco The OF Tape vol. 2 [2]. Em linhas gerais Tyler passa por uma análise que dura os três discos em que ele reflete sobre sua infantilidade, dificuldade em se relacionar afetivamente com outras pessoas, bullying, suicídio, problemas para lidar com a fama e principalmente sobre as consequências do abandono paterno. A cronologia da história é bastante discutida entre os fãs do Tyler. Eu optei pela ordem Bastard-WOLF-Goblin-Sam is Dead por achar que faz mais sentido dentro da narrativa. Tyler utiliza diversos alter-egos que representam aspectos que ele precisa reprimir pra amadurecer. Esses aspectos podem ser agrupados em raiva, violência e infantilidade.
Dr. TC é apresentado em Bastard como o psicólogo que realizará algumas sessões com ele para tentar trabalhar sua raiva. Nesse contexto ele é a representação do superego do Tyler que tenta controlar seus impulsos destrutivos através dessas sessões de terapia. Ace, the Creator, que já havia sido utilizado por Tyler nos trabalhos anteriores da Odd Future como pseudônimo para produzir e rimar em algumas faixas anteriores aos discos solo, em Bastard representa o impulso para o suicídio e a raiva. Tron Cat é a violência, a voz na cabeça do Tyler que o manda fazer coisas ruins. No álbum WOLF surgem outros dois alter-egos, Sam e Wolf. Sam é a representação da infantilidade, imaturidade e dependência. Ele compõe o triângulo amoroso do disco, junto com Wolf e Salem, namorada de Sam. Wolf no álbum homônimo parece ser um duplo do Tyler. Alguém em quem ele projeta tudo aquilo que ele não é e o que ele intimamente desejava ser na adolescência. Ou seja, o que Tyler fez em Wolf foi quase um Clube da Luta fonográfico. Wolf é apresentado nos clipes de Goblin, primeiro álbum de Tyler, quase sempre de moletom, encapuzado e com uma máscara verde. Além de representar esse duplo Wolf também representa, sob o vulgo de Wolf Haley, o Id do Tyler que faz oposição ao superego (Dr TC) e o pseudônimo que Tyler usa para dirigir seus clipes. Em Sam is Dead Tyler deixa claro o que a trilogia de fato representou. Sam is Dead é a morte da imaturidade do Tyler e a passagem para a vida adulta. No clipe é encenada uma guerra, que lembra a guerra do Vietnã, e Tyler vestido de militar mata seus alter-egos com tiros na cabeça. Em Flower Boy alguns desses alter-egos fazem uma pequena aparição no clipe de 911\Mr. Lonely mas não têm grande importância no disco. Feitas as apresentações, vamos voltar para Igor.
-IGOR e o retorno ao mundo de Tyler
Em Igor Tyler se vê novamente em um triângulo amoroso, mas dessa vez ele não disputa uma mulher com outro homem e sim um homem com uma mulher. Isso fica claro em versos como, “Man, I wish you would call me (skate), By your name ‘cause I’m sorry (four)” e “‘Cause this parka is Comme, you’re my favorite garçon”, entre outros. Call Me By Your Name é um filme de 2017 que narra o relacionamento amoroso entre dois homens, os personagens Elio e Oliver, que aliás são citados em outra uma faixa solta do Tyler, Gelato [2], e “Garçon” em francês significa garoto ou menino. O álbum é dividido em três partes. A primeira (faixas 1-5) mostra Tyler se apaixonando, na segunda (faixas 6-9) a tensão é introduzida através da figura da Ex, o que culmina em Igor tentando tomar conta da situação e no fim do relacionamento, e na terceira parte do disco (faixas 10-12) Tyler cai na real e passa a agir de forma mais madura. Tendo essa contextualização como base nós podemos voltar ao conceito. Na trilogia Wolf, indiretamente a fonte dos outros problemas do Tyler é a falta da figura paterna, fato sobre o qual ele se ressente nos três discos. Nesse sentido os alter-egos são o efeito da ação do pai (Dr. Frankenstein) de abandonar Tyler no nascimento. Sendo assim, o monstro de Frankenstein dentro da narrativa do álbum novo são justamente os alter-egos da trilogia Wolf amalgamados em Igor. Ao se deparar com esse triângulo amoroso e não saber o que fazer o inconsciente de Tyler (Wolf von Frankenstein) busca esses alter-egos para lidar com a situação. Igor é o alter-ego responsável por liberar os demais através da figura dele mesmo e usar os impulsos destrutivos do antigo Tyler para resolver a situação. Por isso a fusão Igor-Monstro na capa do disco, porque o Igor representa tanto a vontade de trazer o monstro para se vingar da Ex quanto a própria manifestação dele.
Por uma questão de concisão eu não vou fazer um faixa a faixa e vou me focar no centro do disco, a parte do conflito. Igor faz diversas inserções nas faixas, embora rime sozinho em apenas uma. Uma forma de identificar essas inserções é através dos barulhos que surgem na música, em geral suspiros profundos e grunhidos. Na faixa NEW MAGIC WAND essa transição fica bastante evidente quando a base muda e em 2:11 surge o grunhido. Logo depois Igor entra com um flow mais acelerado e agressivo. Essa faixa é importante porque a tensão é estabelecida a partir dela. Tyler começa a demonstrar os aspectos de raiva característicos dos seus antigos alter-egos. Algo interessante a se notar é que há diversas expressões dúbias nas faixas que podem se referir tanto ao interesse amoroso do Tyler, quanto a ele próprio ou ao seu alter-ego. Através dessa ambiguidade Tyler insere outro triângulo, dessa vez não um triângulo amoroso e sim pessoal entre Tyler, seu impulso infantil e sua maturidade. Dentro da narrativa esses dois triângulos caminham juntos, o que confere um caráter ambíguo ao significado do disco. Tyler utiliza essa ambiguidade pra criar um discurso de diversas vozes e múltiplos significados. Talvez a faixa que melhor expresse isso seja A BOY IS A GUN. Essa faixa é o segundo estágio que precede o estouro do Tyler. Ela representa a segunda característica latente na trilogia anterior, a violência.
Em A BOY IS A GUN a interpretação mais óbvia da faixa é que a violência associada à narrativa é representada pelo interesse amoroso dele que o trai com a Ex. Essa parece ser de fato a principal linha narrativa evidenciada pelo final da faixa em que ele diz “‘Cause the irony is I don’t wanna see you again (referência à faixa homônima, de Flower Boy), Stay the fuck away from me” dando a entender que ele está se afastando por ter tomado consciência de que esse triângulo amoroso que seu pretendente impõe o machuca e por isso ele usa essa metáfora da arma que o mantém a salvo, mas também pode ser perigosa. No entanto a violência secundária na música é realizada pelo próprio Tyler que ao ver seu par com a Ex “atira” nos dois. Quando isso ocorre surgem barulhos de tiro que representam provavelmente Tyler brigando com os dois por causa daquela situação e expressando a segunda característica da fase WOLF, como dito anteriormente, a violência. Paralelo a isso há uma reflexão sobre o conflito entre o que o Tyler foi e o que ele tenta ser hoje. Isso passa um pouco despercebido porque os elementos que evidenciam essa reflexão são diversas citações a versos e eventos narrados em uma música presente no disco Wolf, IFHY. Nessa faixa Sam, o alter-ego que representa a infantilidade, desconfia de que sua namorada, Salem, está traindo ele com Wolf e ameaça ela. Na descrição do clipe no Youtube Tyler diz que “Wolf Performs Sams Song, Sam Performs Wolf Song”, ou seja, quem atua no clipe é Wolf, embora a música seja sobre Sam. Isso mostra que os dois são na verdade a mesma pessoa e que qualquer um dos dois que estivesse ali iria agir da mesma forma. Tyler em A BOY IS A GUN parece se colocar no lugar de Salem para cair a ficha do quanto ele naquela época se expressava através da violência. Ou seja, durante a música ele vai dialogando com Sam\Wolf e percebendo o quanto esse eu imaturo dele era violento com as outras pessoas e tenta se afastar disso, porque ao mesmo tempo que esses alter-egos o protegiam, tomando conta da consciência dele pra lidar com situações que Tyler não aguentava, eles poderiam ser perigosos para o próprio Tyler e para os outros. Mas vamos aos paralelos, em A BOY IS A GUN Tyler diz “You so motherfuckin’ dangerous, You got me by my neck” e em IFHY há “Look, I wanna strangle you”. Em outra passagem ele diz “Take your hoodie off, Why you hide your face from me”. Wolf se caracteriza em geral com uma máscara verde e um casaco com capuz (hoodie), ou seja, esse verso pode ser uma referência a Wolf. Mais a frente em IFHY Sam\Wolf diz “’Cause I get so fucking mad when you don’t write back… Sorry—I’m passive-aggressive for no goddamn reason” e em A BOY IS A GUN ele diz “Oh, you passive-aggressive? Oh, you fakin’ you’re mad?”.
Não são poucos os momentos em que Tyler parece dialogar diretamente com o personagem de IFHY. Aparentemente Tyler percebe ao mesmo tempo o quanto sua imaturidade e a indecisão do seu pretendente fazem mal pra ele e decide se afastar das duas coisas tentando encerrar os dois triângulos, o amoroso e o pessoal, mas isso não ocorre e nós nos encaminhamos para a próxima faixa, PUPPET.
PUPPET demonstra a última característica do eu antigo do Tyler, a infantilidade. Aqui ela se caracteriza por uma noção de dependência e submissão incondicional que não aparece nos primeiros discos dele. Tyler se coloca como uma criança sob a tutela do seu par, em oposição à faixa anterior em que ele pareceu entender que aquele relacionamento era prejudicial para ele. Tyler diz coisas como “Eu quero sua companhia, eu preciso da sua companhia”, “Eu sou o seu fantoche, você me controla” e ”Eu estou começando a me perguntar se o meu livre arbítrio é seu”. A faixa PUPPET não é a primeira em que ele usa a imagem de um fantoche para aludir à submissão. Na terceira faixa do disco, I THINK, ele diz “I’m your puppet, you are Jim Henson”. Jim Henson é um dos criadores dos Muppets. Aqui no Brasil ele é conhecido pelos filmes dos Muppets e por Família Dinossauro, mas nos EUA ele estourou na televisão com o seriado Sam e seus Amigos, de onde saíram alguns dos personagens de Muppet Show. Isso pode significar uma possível referência ao alter-ego que representa a infantilidade do Tyler, o Sam. Kanye West aparece no final da faixa representando uma figura de autoridade para Tyler, possivelmente sua mãe com quem ele tem mais laços afetivos ou seu pai. Kanye diz “Você perdeu filho e você está tentando encontrar o seu caminho para mim, ele está tomando um caminho que eu odeio ver…”. Ele parece surgir na música pra tentar colocar Tyler nos eixos pedindo para que ele respire. Mas não funciona e Tyler completa o ciclo de raiva, violência e infantilidade, o que culmina em Igor tomando conta da consciência dele.
Em WHAT’S GOOD Tyler estoura e Igor aparece. Essa é aparentemente a única música em que Igor rima durante a faixa inteira. Aqui ele põe pra fora todo o descontentamento e através de sua egotrip habitual basicamente diz “eu sou foda, sou melhor do que todos vocês e não tenho que passar por isso”. Tyler usa o verso “I see the light” como metáfora para essa tomada de consciência em relação ao relacionamento e utiliza a figura do Drácula para dar a entender que esse “ver a luz”, embora necessário, é também algo doloroso. Drácula também faz referência à esse antigo eu do Tyler. Como nós sabemos quando Tyler começou a fazer sucesso o conteúdo de muitas das suas músicas era extremamente violento. Dentro da narrativa que alude a essa briga interna entre Igor e o apelo por maturidade, faria sentido que Tyler voltasse a usar a violência habitual quando Igor toma conta. No entanto, pelo conteúdo dos últimos discos percebe-se que ele mudou e não utiliza mais os versos antigos, mesmo dentro desse contexto narrativo. A forma que ele encontrou para contornar isso foi usar Drácula como citação. Esse personagem remete à faixa Transylvania do disco Goblin em que Tyler mostra o quanto Wolf é misógino. Eu não vou reproduzir os versos aqui, mas o verso “It’s because, I’m Dracula b*tch” é o suficiente para identificar a referência. No fim da faixa, depois de descarregar, ele parece retomar os sentidos e seguir o conselho de Kanye. Durante alguns segundos o verso “I see the light” se repete e é possível ouvir uma respiração profunda, dando a entender que Tyler conseguiu tomar conta da própria consciência de novo, o que representa que ele deseja lidar com a situação de uma forma mais madura e não de forma reativa e violenta.
Nas últimas faixas Tyler ainda tenta a reconciliação mas percebe que o relacionamento de fato acabou (GONE, GONE). Ele lamenta pelo tempo desperdiçado (THANK YOU), diz que não ama mais o Ex (I DON’T LOVE YOU ANYMORE), mas no fim tenta manter uma amizade com ele (ARE WE STILL FRIENDS) dizendo que não quer “terminar aquela temporada com um episódio ruim”. Tyler demonstra que ele de fato mudou e pode lidar com situações difíceis de forma mais madura. Isto talvez seja o que define o disco e também o que contribuiu para que Tyler deixasse de ser visto como alguém igual aos seus alter-egos e se tornasse o grande artista que é atualmente, sua maturidade pessoal e artística.
-Tyler The Creator, IGOR e o conflito das suas personas!