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Tyler the Creator, Dostoiévski e a idealização da mulher

Música e Literatura no novo artigo de André Clemente mostrando curiosos paralelos entre Tyler the Creator e o escritor russo Fiódor Dostoiévski

Imagine a cena. Metrô lotado, final de tarde, eu em pé com um livro de bolso na mão, encolhido entre os passageiros, e com Flower Boy tocando nos fones. Nesse cenário eu tive o insight para escrever esse texto.

O livro em questão era Noites Brancas, do Dostoiévski. Era a segunda vez que eu lia esse livro, mas pela coincidência de estar ouvindo Tyler the Creator naquele momento percebi algo diferente em relação à primeira leitura. O escritor russo e o rapper americano têm alguns paralelos interessantes na forma como abordam os temas da idealização das mulheres por parte dos homens e das tensões nas relações assentadas nessa idealização.

Nesse sentido separei duas obras de cada artista para discutir um pouco sobre a idealização nesse contexto de amor romântico e as possíveis consequências disso. Vou dividir isso em dois textos pra ninguém dormir enquanto lê. Esse primeiro terá Noites Brancas e She, e o próximo texto será com A Dócil e IFHY.

Noites Brancas e o amor de verão

A novela Noites Brancas, ao contrário dos demais livros de Dostoiévski com seu apelo político e existencial, tem um tom aparentemente característico do romantismo. O enredo gira em torno de um triângulo amoroso entre o protagonista sem nome, “herói” da história, Nástienhka e seu pretendente.

Os dois se conhecem em uma típica cena de romance clichê, partir daí iniciam uma amizade e passam a se encontrar para conversar durante as noites brancas, fenômeno que ocorre nos verões do Círculo Polar Ártico em que o sol permanece próximo à linha do horizonte, mantendo a claridade durante a noite.

Dostoiévski usa diversas metáforas visuais durante a obra, que utilizam a mudança da estação, a beleza das flores e até mesmo o clima e as noites brancas, para descrever uma mudança de estados entre a solidão, o amor e a desilusão vivida pelo protagonista. O personagem principal é definido como um homem solitário e, acima de tudo, um sonhador assim como seu par, Nástienhka. Ela mora com a avó que prende sua saia a dela por um alfinete, simbolizando o aprisionamento moral sobre o qual as mulheres estavam submetidas no século XIX e como muitas continuam até hoje.

Após a apresentação dos personagens se estabelece o momento de tensão e surge o terceiro elemento desse triângulo. Nástienhka diz que está apaixonada por um homem, inquilino da sua avó, que viajou para fora de São Petersburgo prometendo pedir sua mão ao voltar, mas que havia retornado há três dias e ainda não tinha procurado ela. Nesse momento o protagonista sugere que ela escreva uma carta para seu pretendente cobrando uma atitude. Eles escrevem a carta, entregam e aguardam no lugar marcado, esperando o pretendente de Nástienhka. Ele se atrasa e, pensando que o pretendente não iria chegar, os dois começam a fazer planos de se casarem, até que ele surge, Nástienhka parte com ele e o protagonista termina como começou, sozinho.

Esse parece ser um enredo romântico comum, bastante característico da literatura da época. Mas, como diz Saramago no Homem Duplicado, a verdade inteira exige que estejamos atentos aos subtextos ou às entrelinhas.

Dois pontos da narrativa ilustram bem o que eu quero dizer. O primeiro é o momento em que o protagonista conta sua história para Nástienhka. Ele fala sobre como é um homem solitário e sonhador, e como trata os outros como amigos enquanto os outros não o enxergam dessa forma. Aqui o autor deixa claro como o personagem faz esse monólogo de forma pedante e a todo momento se colocando como o herói da história. Em alguns momentos ele inclusive deixa escapar risadas.

Outro instante esclarecedor é quando Nástienhka e o protagonista discutem a possibilidade de mandar a carta ao pretendente dela, para lembrar do compromisso que ele assumiu. No momento em que ele sugere que ela escreva a carta e ela prontamente se nega, o protagonista diz: 

“– Mas por que não, afinal? Por que é que não pode ser? – continuei pois meu plano começava a agradar-me… – Não, não, isso não está certo. Seria quase como colocar-me à frente dos seus olhos. – Ah, que menina esta – interrompi-a eu sem ocultar o meu sorriso”. 

Esse subtexto que Dostoiévski insere na obra mostra que ao contrário das obras românticas convencionais os personagens em Noites Brancas não são puros. O “herói” em alguns momentos do livro parece uma aranha tecendo uma teia em volta da presa. Já a mulher busca se libertar da avó, o que nesse contexto significa se casar com um dos dois homens. Isso mostra como os anseios dos protagonistas são conflitantes. Nosso “herói” é um tipo de sonhador que usa a imaginação como uma forma de escapar da solidão da realidade. O  imaginário nesse sentido funciona como uma forma de segurança e ao mesmo tempo como uma possibilidade de exercer controle. Já Nástienhka vive literalmente aprisionada. Nesse contexto o sonho para ela é uma forma de libertação. Essa diferença  é importante porque ela estabelece uma forma de tensão.

A idealização é um elemento basilar na noção de amor romântico construída na literatura e propagada na sociedade. Ela passa por adequar a realidade aos anseios de quem a distorce, enquanto o sonho de liberdade implica em ser aquilo que é. O sonhador nesse contexto é alguém que preenche as características do outro com aquilo que ele deseja. Nesse movimento psicológico existe uma noção implícita de poder. Uma tentativa de controle sobre a realidade que é expressa na relação e na expectativa de que as atitudes do outro correspondam aos desejos daquele que as idealiza.

Nessa obra específica essa relação não se concretiza. A personagem feminina vai embora com seu par e manda uma carta para o protagonista explicando a situação. Nosso “herói” desenha um cenário sombrio na própria cabeça, fica na iminência de amaldiçoar o casal, mas no fim das contas agradece a Deus a possibilidade de viver um momento de felicidade, mesmo que efêmero.

Aqui vale ressaltar dois pontos. O primeiro é que os personagens em Dostoiévski são sempre profundos e ambíguos em termos de moralidade. O mesmo personagem é capaz de cometer atrocidades e bondades sinceras. Isso ganha um contorno máximo em Crime e Castigo, em que o protagonista é capaz de matar uma velha agiota e ao mesmo tempo pagar o velório de uma pessoa que ele mal conhece, com o pouco dinheiro que ainda lhe resta.

Nesse sentido, o final de Noites Brancas não é algo absurdo. O segundo ponto a ser ressaltado é a forma como Dostoiévski utiliza algo tão popular na época como as obras românticas e consegue com isso provocar uma reflexão que bate de frente com essa visão pura dos personagens românticos e da idealização como forma de exaltação da figura feminina.

Mas a pergunta que não quer calar é: o que isso tem a ver com Tyler the Creator? A resposta é: tudo. 

She e a normalização do absurdo

Tyler the Creator é um artista controverso e talvez o ápice dessa controvérsia esteja presente em Goblin, primeiro álbum do rapper. O álbum faz parte da trilogia composta também pela mixtape Bastard e pelo álbum posterior, Wolf. Aqui, cabe uma ressalva. Meu objetivo com esse texto não é fazer uma defesa da obra do Tyler ou dos pontos problemáticos presentes nela e sim focar em um aspecto da obra que me fez refletir sobre o que eu exponho aqui.

Quando o Tyler lançou Flower Boy eu tinha ouvido pouca coisa dele e não tinha gostado tanto do que ouvi. Mas dois clipes me chamaram muito a atenção e me fizeram enxergar parte da obra dele com outro olhos: She e IFHY. As músicas estão inseridas no contexto da história contada na trilogia, mas o que me chamou atenção foi como os clipes funcionavam de certa forma sem a necessidade de contextualização da história narrada durante os três discos.

She também possui um triângulo amoroso, e aqui começam os paralelos com Noites Brancas. Tyler, assim como Dostoiévski, busca utilizar no clipe uma estrutura narrativa popular e conhecida por muitos de nós, os filmes adolescentes das décadas 80 e 90. Frank Ocean representa no clipe o namorado valentão e Tyler o cara que quer conquistar a mocinha, chamada apenas de “She” (“ela” em inglês) durante o clipe. A diferença básica é que Tyler aplica um recurso oposto ao utilizado por Dostoiévski. Enquanto o escritor faz uso da sutileza o rapper se vale do absurdo.

O clipe começa com a câmera focando no nome da rua “Nilbog”, ou goblin ao contrário. Isso define de cara o caráter fantasioso do clipe. A cena corta para o Frank Ocean no quarto da personagem feminina, se escondendo quando o pai dela chega. Entra o refrão cantado pelo Frank e surgem linhas como “as cortinas estão abertas para ver você no escuro enquanto você dorme” e “Você dorme sozinha. Verifique sua janela. Ele está na sua janela”. Assim que o refrão termina surge o personagem do Tyler, o Goblin, dentro do quarto e o tom macabro presente na letra fica mais óbvio. Tyler the Creator utiliza uma estrutura alternando na letra linhas românticas, na visão do personagem, com linhas extremamente violentas que representam a forma como ele lida com a rejeição.

“Um, dois, você é a garota que eu quero. Três, quatro, cinco, seis, sete, merda. Oito vão ser os disparos se você disser não depois de tudo isso. Eu simplesmente não posso fazer isso porque você é linda”.

Ele marca um encontro com ela em um lago. Então entra uma cena, também característica de filmes adolescentes, dele indo de bicicleta com os amigos para o ponto de encontro. Corta pra ele rimando na frente dela no lago, no entanto ele estava apenas sonhando acordado enquanto esperava, quando é surpreendido por policiais e é preso junto com os amigos. No fim a viatura para na frente do gramado dela, os policiais se distraem e o Goblin aproveita a confusão pra ficar de frente pra mulher rimando novamente os versos escritos acima. A quarta parede então se quebra e todos dão tchau pra câmera sorrindo, dando a entender que os dois terminaram juntos.

Mas o clipe não termina no tchauzinho. Quando a câmera corta surge a atriz na sala, rindo enquanto assiste o “filme” protagonizado por ela e pelo Tyler the Creator, mostrando que de fato aquilo era uma comédia adolescente. Essa transição de dentro do filme para a sala de estar dá a sensação de saída desse ambiente fantasioso da rua Nilbog para a realidade. Nesse instante ouve-se um ruído, a câmera sobe em um movimento característico dos filmes de terror, surge o Goblin atrás dela e o clipe termina.

O que expressa de forma mais óbvia o absurdo presente na obra é o contraste entre o que é dito pelo rapper e a forma como o clipe se desenrola. Aparentemente toda misoginia presente na letra é normalizada dentro da estrutura do roteiro, construindo a ideia de que a mulher vai ficar com o Goblin no final, independente do que ele diga ou faça. A mudança de tom no final do clipe mostra que aquilo que é vendido como romântico pode ser na verdade um pesadelo. Isso de certa forma é uma exacerbação das características presentes nesses filmes adolescentes.

Sempre há nessas histórias o adolescente nerd apaixonado pela líder de torcida que namora com o valentão. Está implícito que o nerd é bom independente do que ele faça, então ele só precisa mostrar quem ele é pra mulher e ela vai necessariamente se apaixonar por ele. Se isso não ocorre, e obviamente isso não é mostrado nos filmes, é porque ela é a culpada e merecedora de todo sofrimento que o personagem do Tyler descreve em diversas linhas da música. Ou seja, nesse tipo de filme está presente a mesma noção de idealização e passividade presentes nas obras românticas.

A questão que se põe é o que ocorre quando a cena foge do script e a mulher não corresponde à imagem idealizada, pelo simples fato daquilo não ser o que ela é? Vendo os comentários nos vídeos do Tyler the Creator e percebendo o quanto grande parte dos fãs dele enxergam sua obra de um ponto de vista literal, algo que me deixou um pouco assustado inclusive, percebe-se o quanto é importante questionar sua obra, mas também o quanto é relevante aproveitá-la pra trazer a tona certas discussões que são escassas no nosso meio masculino.

Nós vivemos em uma sociedade que normaliza diversas formas de desigualdade e que produz padrões de beleza, de moral e de comportamento inatingíveis. Em geral a idealização passa pela vontade de ver esses padrões expressos no outro, o que gera choques tanto pela negação dos padrões quanto pela impossibilidade de atingi-los. O que nós precisamos compreender é que não somos agentes passivos. As mulheres vêm se manifestando sobre isso há anos, exemplos atuais no rap não faltam como Karol Conká e Karol de Souza, e nós homens estamos moscando nesse debate.

Precisamos repensar a forma como tratamos as mulheres e como nos calamos frente às atitudes dos nossos amigos e parentes. Nossa meta deve ser levar essa discussão pra conversa entre amigos, o assunto na mesa de bar. Qualquer coisa abaixo disso é inaceitável.

– Tyler the Creator, Dostoiévski e a idealização da mulher

Por André Clemente de Farias

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