Trevo – Nada De Novo Sob O Sol (2018) Apresenta um jovem valor do rap baiano, que estreia apresentando muita integridade e madurez estética!
O disco de estreia do rapper baiano Trevo é um daqueles objetos estéticos que, por possuírem características muito ricas em diversas dimensões, nos dá muito trabalho pra encontrar um ponto fixo sob o qual apoiar nossas observações. Pois, a unidade da obra apresentada é fruto de variegadas dimensões, todas muito bem arranjadas aqui, onde música, história, politica, poesia, ancestralidade e vivência se unem num todo irresistível.
O disco Nada de Novo Sob O Sol (2018), já traz no título uma provocação que é excelente como um ponto através do qual podemos começar a pensar esse, que desde já começa a se desenhar como o melhor disco de estreia do ano. Em tempo de hype e alta rotação de celebridades que precisam se vender como a última novidade, o título desse disco já nos chama atenção de saída.
O jovem Iago Roger, o nome civil do rapper Trevo, integrante do coletivo Underismo, nos apresenta um disco que espanta, exatamente pela madurez estética, algo que não deveria emanar, teoricamente, de um rapaz de 19 anos. Musicalmente, poética e discursivamente de uma consistência absurda, o disco dialoga com o Tempo de um modo que é difícil percebermos sua origem.
Exatamente, pela imensa gama de influências presentes, mas sobretudo por uma tensão que percorre todo o disco e que talvez não seja correto colocar em termos de passagem da juventude pra idade adulta. Mas sim, na tensão musical/poética e espiritual entre humano e ancestralidade.
O signo que a juventude carrega desde que foi inventada como categoria sociológica é o da ruptura com a geração anterior. É comum na história da arte, por exemplo, que a juventude busque romper com as velhas escolas da arte, les enfant terribles. A descontinuidade e a busca por revoluções por minutos é a constante da pouca idade, a necessidade de gritar pra conseguir o que se quer.
Caminho inverso faz aqui o rapper Trevo, que busca na história e na ancestralidade as forças sob as quais erige uma obra atemporal, mostrando-nos as diversas tensões e problemáticas que no atual disputam os corpos negros. Colocando essa tensão em termos mais suaves, racionais e musical/poeticamente muito sólidos, sem precisar levantar a voz em momento algum.
No rap nacional de modo geral, essa tensão se traduz em rimas e beats agressivos, onde a reflexão poética toma em geral as formas de denuncia, ora se refugiando no rap de mensagem, ora no underground. A serenidade implicada em toda a construção do seu disco de estreia, nos denota que esse historiador desistiu da academia, para atualizar a força da História Negra em seu jovem corpo negro. Com a ajuda de Filipe Mimoso, o artista faz o disco assumindo um misto de formas, que rasuram muito bem, fronteiras artificiais entre sub gêneros do rap atual.
Recentemente Trevo se apresentou em Salvador durante o show da turnê do pernambucano Diomedes Chinaski, junto ao seu coletivo acima mencionado, Underismo. Além da apresentação das músicas presentes no excelente EP Resíduos (2018), o rapper deu-nos a conhecer Aruanda, acompanhado de Felipe Mimoso, produtor do disco, nas guitarras.
A primeira audição pública dessa música presente no disco que aqui tratamos, gerou verdadeiro frisson nos presentes, e pudemos observar veteranos da cena abrirem sorrisos, e se entre olharem enquanto a música acontecia.
Talvez seja na forma como manipula, atualiza e reenvia a possibilidade de uma Aruanda outra, a chave máxima para entendermos a provocação presente no título e a própria força inaugural do disco. O território musical e poético construído pelo jovem rapper em sua estreia é novo sob diversas perspectivas, mas apesar disto, ou por isso mesmo, plenamente apoiado na tradição.
Se pegarmos apenas o contexto local do rap BA, é difícil pensar NDSS (2018) sem pensarmos na força da obra de grupos como Opanijé, OQuadro e Fúria Consciente, por exemplo. Seja na força da tradição ligada ao candomblé, seja na força do Pan Africanismo, seja na pluralidade musical. Não afirmamos com isso, que o rapper tenha se inspirado necessariamente nessas fontes, no entanto, está tudo lá em germe, o que Trevo transformou em seu, com seus próprios meios e alianças.
Nesse caminho de desenvolvimento de sua Aruanda, que aqui identificamos como o território simbólico racial e politico sob o qual todo o disco se inicia e termina, como uma flecha reenviada ao futuro, o jovem artista contou com excelentes aliados. Tendo produzido com bastante cuidado e durante um tempo que hoje não parece ser muito comum, o disco começou a ser composto e produzido em 2017.
E aqui é preciso ressaltar a importância majestosa da produção musical de Filipe Mimoso, que não só botou “o” beat como cantado em Resíduos (2018), mas tocou diversos instrumentos e produziu todos os beats. Numa diversidade de tons e ritmos que torna o disco uma experiência estética muito bem equilibrada tanto às ideias presentes nas rimas, como nos climas que se sucedem, assim como no próprio tom vocal do rapper. O disco também contou com outro músico, o compositor e saxofonista: Paulo Pitta, integrante da GANA que arranjou os synths e sax.
As vozes femininas presentes trazem um brilho e doçura que contrasta com a dureza de algumas passagens ou e fazem par, como a outra metade da própria poesia que Trevo apresenta. Compositoras/Poetisas são trazidas, as artistas Mara Mukami, Mayara e o Coletivo Frôceta, fazem do feminino uma presença marcante dentro do disco. NDSS (2018) traz em sua lírica mais do que uma defesa do feminino, uma exaltação que caminha inclusive para o reconhecimento da força desse atributo em todos nós.
Os comparsas do Underismo, aqui se fazem presente nas rimas de Senpai, Alfa e Ares e trazem toda essa jovem qualidade, que com o disco solo de um de seus participantes, vem se fazendo uma certeza. Um bando de novos capitães de areia, dessa vez informados, melhor instrumentalizados de modo a não cair nas armadilhas que o sistema – todo construído para lhes apanhar ou cooptar – lhes impõem.
Além desses aliados musicais, o disco recebeu um cuidadoso trabalho imagético pelas lentes da fotógrafa Mayara Ferrão, que constrói a identidade visual através de fotografias analógicas. Uma linda capa que dialoga com a ancestralidade, na medida em que captura o artista, nas águas doces de mamãe Oxum. O selo musical e estúdio criativo GANA, foi o local atual onde NDSS (2018) foi idealizado, sob a batuta dos criadores do mesmo: Felipe Mimoso e Mayara Ferrão.
Mas, ao final e ao cabo, as alianças, as imagens poéticas e os beats presentes em NDSS (2018), produzem uma obra de arte que é pura abertura e ponto de passagem, atravessamento do social pelo mais antigo. Sua novidade, não poderia aqui ser analisadas em termos de flow, rimas, punchlines, ou qualquer outro aspecto técnico, que se são importantes para a confecção do disco, estão devidamente a serviço de uma ideia maior.
São poucos os discos que ouvimos que possuem tamanha força de conjunto, Aruanda é metade e ao mesmo tempo a inteireza que se revela na força de um agenciamento de enunciação que está colocando em jogo toda herança negra em diáspora. Suas lutas de emancipação, seus ritmos, sua literatura, seus griôs, seus anônimos, seus orixás, suas vitimas, tudo isso está presente aqui nesse território musical, triunfantemente.
Não estamos mais aqui diante da Aruanda cantada por Bethânia e eivada de marxismo, mas antes, na presença de uma construção sempre recomeçada, sempre na busca da autenticidade mais preta. Coroada pela exclusividade dos mais diversos signos tornados exclusivos de uma raça auto consciente e porvir. De um lugar onde possamos habitar com dignidade e com a elegância sem esbanjamento que Trevo propõem.
Fuga e imobilidade, esquiva e correria, um jovem corpo negro afiado, um disco sobre as eras, nada de novo sob o sol, apenas mais um protagonista preto, cero. Aruanda é a missão que esse ano é reafirmada com total excelência, é pela liberdade que a tropa avança!